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Crítica

A imaginação pela pedra

7.8.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Luis Sandoval

A concepção de La flor de la Chukirawa permite analogia com o Teatro Nô. Assim como a secular expressão japonesa expõe matrizes gestuais, espaciais e rítmicas rigorosamente apoiadas naquela cultura, o grupo equatoriano Contraelviento Teatro reafirma a ancestralidade andina por meio das partituras corporais e vocais da atuadora Verónica Falconi. A protagonista compõe com traços antropológicos a velha camponesa cuja pobreza ou ignorância autodeclaradas contrastam a sabedoria pontuada com aguda visão de mundo.

Ao minar outras noções binárias como oriente e ocidente, primeiro e terceiro mundos ou centro e periferia, o dramaturgo e diretor Patricio Vallejo Aristzábal embaralha os planos do drama dispondo-o com inteligência no espaço cênico onde o silêncio e o vazio também constituem manifestos precisos à narrativa, como se viu na apresentação de ontem no Centro Cultural São Paulo, dentro da 9ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo.

Aristzábal superpõe parábolas em sentidos literais e geométricos. Aos poucos, o espectador percebe a situação da mãe entrevistada por uma repórter de TV, o tratamento superficial diante da dor do outro. O filho da camponesa foi morto servindo ao exército dos EUA em enésima guerra em terras estrangeiras. O texto alude à condição do imigrante alistado nas forças armadas com vistas a se tornar cidadão americano. Geralmente, eles – e não os nativos – são os primeiros enviados ao front.

As predações televisivas e geopolíticas não obscurecem o eixo da obra: o vínculo com os antepassados e a condição humana correlacionada aos elementos da natureza. É dessa perspectiva que os artistas questionam a manipulação da liberdade, não importa se no planalto deserto dos Andes, no centro urbano ou no solo de outra nação. E quem fixa esse diapasão é a voz da camponesa em sua dança interior, capaz de projeções encantadoras. Vide a imagem transbordada de sua fala ao descrever a pele da montanha despregada pela chuva que, com sorte, pode trazer do alto a flor do título.

Durante boa parte da apresentação, a mãe permanece à frente do palco enquanto o filho (Fernando Guayasamín) figura ao fundo, à esquerda, e a repórter (Andrea Díaz), à direita. Os nichos são demarcados por objetos, adereços e tonalidades do foco de luz, manipulando pedras, fogo ou água.

Essa triangulação se desfaz em alguns momentos. Quando a velha se desloca para o plano da memória do filho é tocante como um simples e lento movimento com um lenço sobre o rosto do rapaz deitado em seu colo prenuncia a passagem na hora da morte. Já o avanço da repórter sobre o campo da entrevistada, ou vice-versa, reflete as realidades e pensamentos apartados. Estão em jogo (e em conflito) os vetores arcaicos e modernos do país por onde passa a linha imaginária da metade do mundo. A transcendência passa pelos mortais e pelos anjos sem pieguice.

Os despojamentos da encenação combinados à desordem deliberada no modo de contar essa história tornam peculiar a experiência do público diante da criação do Contraelviento. A teatralidade mora nos detalhes. O olhar é descondicionado. A escuta aguça e encontra imaginação até nas pedras lascadas pelo martelo da camponesa. A elaboração poética de Verónica alça voos sem margem para virtuosismo. Seus colegas não a alcançam tecnicamente e isso não se dissimula. Ao contrário, vê-la como os acolhe é um belo exercício de clareza sobre a totalidade nas artes.

.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Julia Guimarães, do Horizonte da Cena, aqui.

.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura dos espetáculos, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.

Ficha técnica:
Dramaturgia e direção: Patricio Vallejo Aristizábal
Com: Verónica Falconi, Andrea Díaz e Fernando Guayasamin

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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