Crítica
A peça Cuarteto del alba (2013), ou Quarteto do alvorecer, numa tradução livre, emenda falas, sentimentos, sensações, pensamentos, tempos e lugares como num plano sequencia que poderia se passar na cabeça de uma pessoa. O ato rememorativo que o barcelonês Carlos Gil Zamora deseja tornar presente no teatro vem modulado por quatro vozes multifacetadas. Elas são o dínamo de uma narrativa de extrações lírica e pungente.
Em contraste com a literatura brasileira na poesia de Casemiro de Abreu ou na dramaturgia de Naum Alves de Souza – para traçar um paralelo ibero-americano -, a aurora aqui não repousa na infância, mas na inquietude do porvir na vida adulta, quando a maturidade é destilada. Há uma passagem do texto que interpõe o dia seguinte e o dia anterior ao amanhã. “Adiante: o abismo. Detrás: o dever cumprido”. Neste ínterim perpétuo repousa a natureza da obra transcorrida na terceira e na primeira pessoas.
Esse alvorecer mostra em primeiro plano o retrovisor de gerações que viveram intensamente as rupturas históricas, políticas, sociais e comportamentais e deparam com as distopias mais próximas do que imaginavam.
Zamora constata, se emociona, é autocrítico, ironiza e não renuncia à reinvenção permanente desse inventário de belezas e desilusões. Da exposição dos desejos mais íntimos aos abusos da mão pesado do Estado, o painel toca em questões universais do sujeito, da comunidade ou da nação em seus labirintos.
A montagem que passou pelo Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília mostra dificuldades na transposição desse vasto material para a palco. Em sua concepção, o diretor Lander Iglesias atomiza o que o drama sugere como uma costura contínua de inclinações épicas, apesar das razões subjetivas norteadoras.
Os cinco movimentos ou “capítulos” do texto são indicadores das atmosferas interiores e exteriores no percurso dessas vozes em seus ires e vires – “nos disseram que éramos imortais e acreditamos nisso”. A encenação, no entanto, parece ler como momentos estanques que, por sua vez, apresentam outras subdivisões.
Soam apartadas passagens como o desvario lisérgico, a insólita frustração da transa juvenil na praia, o abuso sexual velado de menores, o desbunde da era pré-camisinha, a violência doméstica censurada por vítima e algoz diante do espanto dos filhos, o desespero existencial e a angústia do cidadão confrontado aos dissensos da sociedade.
Nota-se a complexidade das mutações enfrentada pela equipe de criação. No atacado, a direção de Iglesias não expressa as fluências temporal e espacial desses contornos surreais ou de um real maravilhoso. No varejo, porém, o diretor alcança sinergias não expandidas na conjuntura. Que o digam os solilóquios.
Como na viagem do rapaz (por Gotzon Sanchez) que toma ácido e monologa sobre a cor azul do orgasmo e o teto que sente aprisioná-lo tal qual Alice imersa nas distorções literárias de Lewis Carroll. Ou a moça (por Maiken Beitia) que recorda o descobrimento do amor e do seu corpo num crescendo, sentada num balanço que oscila docemente sem demovê-la das evocações viscerais em palavras que traduzem a carnalidade de um beijo.
Já na transição das cenas que compreendem o quarteto de atores em si (complementado por Ricardo Moya e Valery Tellechea) quebra-se o continuum, a correlação de forças. Momentos predominantes que transparecem a preocupação do diretor e dos atuadores – bem preparados tecnicamente – quanto às marcações sobre objetos, adereços e evoluções coreográficas.
O espetáculo resulta, então, refém dessas movimentações em detrimento do ímpeto libertário que o texto propõe. A eternidade pode ser contida no teatro, essa arte efêmera, clama Zamora em seu libelo à luz no fim do túnel, dramaturgo e também diretor que já dedicou metade da vida à recepção crítica e à edição de uma revista especializada em artes cênicas, a Artez.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Texto escrito no âmbito da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.
.:. O site do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 19 a 31 de agosto, aqui.
Ficha técnica:
Texto: Carlos Gil Zamora
Direção: Lander Iglesias
Com: Gotzon Sanchez, Maiken Beitia, Ricardo Moya e Valery Tellechea
Assistente de direção e figurinos: Mariluz Díaz
Música: Iñigo Ibaibarriaga
Luz: Iñaki García
Técnico: Koldo Belloso
Projeções: Bruno Ventola
Produção: Laurentzi Producciones Sociedad Limitada
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.