Crítica
No Brasil, o carnaval já ensejou um sem-número de criações artísticas. Com sua imensa carga simbólica, a festa pagã foi dar frutos na música, na literatura, no cinema e no teatro. Orfeu da Conceição, a peça teatral escrita em 1954 por Vinicius de Moraes e depois transformada em filme pelo francês Marcel Camus, talvez seja o mais eloqüente exemplo desse trânsito.
Mas não é apenas por aqui que as manifestações carnavalescas encontram eco nas artes. Madre murga, murga madre, espetáculo uruguaio apresentado no contexto da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, também vem mostrar o poderio dessa manifestação popular no país.
Por lá, o carnaval não é a catarse de alguns dias, mas uma festa que se estende por mais de um mês. Em sua forma peculiar, também ganha os palcos e não só a rua. Acontece nos clubes. E carrega consigo a memória da colonização do Uruguai, especialmente, da capital, Montevidéu. As histórias de uma cidade que foi uma dos maiores portos da América Latina na época do tráfico de escravos. A melancolia de chegadas e partidas. A presença dos ciganos que, há pouco mais de um século, começaram a tocar e passar o chapéu recolhendo uns trocados.
Assim nasceu a murga. E é desse ritmo musical que vem tratar o espetáculo de Pablo Routin e Edú Lombardo. Com trajetórias ligadas às festas e bailes carnavalescos, os dois intérpretes ocupam o palco com suas recordações. Oscila-se, constantemente, entre o esplendor do passado e o olhar nostálgico com que acompanham tudo hoje.
Uma das marcas dessa edição da mostra latino-americana é seu vínculo com o teatro do real, buscando dramaturgias de inspiração verídica ou atores que carreguem suas experiências pessoais para a cena. Esses dois murguistas, hoje saudosos do que viveram juntos, reinventam um espaço em que tais aspectos podem ser exercitados. Toda a encenação acontece, essencialmente, do encontro entre eles. E não propriamente de personagens com desenhos e funções dramáticas definidas. A tradição das máscaras e das figuras tradicionais da commedia dell’arte que migraram para o carnaval, como o pierrot e o arlechino, também marca presença em Madre murga, murga madre e diz muito sobre a maneira como as atuações se delineiam.
Entre os números de canções típicas e as revisitas aos velhos clássicos que animaram os salões de baile, o par de atores traz não só reminiscências, mas diálogos que carregam um pouco do nonsense comum às relações de longa data. Quando se sabe muito sobre quem está ao lado, não é preciso dizer tudo, explicar as intenções ou propósitos. As brincadeiras também podem ser despropositadas, podem ser não mais do que evocações de risos de outras épocas. O tempo nos torna cúmplices em muitas coisas.
Tal estrutura narrativa pode garantir à montagem muitos predicados. É possível descobrir o que é a murga e como ela se realiza sem nenhum ranço enciclopédico. Mas existe também uma fragilidade nessa organização. Lacunas que não se fecham. De tão ensimesmada em si, Madre murga, murga madre, por vezes não se comunica. Sobra a música, o real, a beleza. Falta o teatro.
.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Julia Guimarães, do Horizonte da Cena, aqui.
.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura dos espetáculos, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.
Ficha técnica:
Dramaturgia: Pablo Routin
Direção: Fernando Toja
Com: Pablo Routin e Edú Lombardo
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.