Crítica
Conselho de classe explicita a urgência do seu tema com o mesmo pulso experimental dos melhores momentos da Cia. dos Atores em duas décadas e meia. O espetáculo é cirúrgico nos descaminhos da educação ao projetar o microcosmo de uma escola pública sob a ótica dos seus professores, ponte entre aprendiz e sociedade – se esta assim o desejasse. Do diagnóstico alarmante ao rancor seria um triz. Mas o quadro é mais complexo do que a realidade pinta. É sobre ela, realidade, que os criadores incidem dialeticamente, chamando o espectador à assembleia cidadã sem ungi-lo para tal. Um sistema de linguagem bem urdido dá conta disso justamente a partir das precariedades material e pedagógica expostas. E nos deparamos com o tamanho da resignação no país de Paulo Freire, Darcy Ribeiro ou Milton Santos que tanto se indignaram.
Há o estranhamento inicial diante do assunto ventilado no calor da hora das manifestações de junho do ano passado e do registro realista das atuações e do espaço cênico, retrato de uma quadra esportiva abandonada como o equipamento público no todo. Não recordamos de outra montagem da companhia carioca em que a leitura política fosse tão direta (O rei da vela, peça de Oswald de Andrade, por exemplo, conjugava metáfora e alegoria da modernidade à brasileira). Não demora, porém, e os códigos do discurso artístico fornecem outras pistas para além das aparências.
As quatro professoras que chegam uma a uma à reunião convocada para tarde de sábado – Rio acima de 40 graus, quadra presumidamente coberta e abafada – delineiam seus perfis pouco a pouco. É fim de ano e paira um clima beligerante por causa do conflito dos estudantes com a diretora, culminando em agressão e licença médica da referida. O levante dos alunos foi motivado por um deles ser impedido de usar boné, o que dá a medida do pavio curto. O texto costura as idiossincrasias, desalentos e resiliências dessas mulheres que atuam há anos no magistério e encarnam as desventuras cotidianas. E não dá margem para vitimização. São poucos, afinal, os momentos de sopro na lida dessas educadoras. Cabe ao diretor substituto, que comparece de surpresa, tentar mediar e conduzir a escola temporariamente.
O autor convidado Jô Bilac construiu o texto em colaboração com o elenco e a direção. O humor recorrente vem acompanhado de reflexões incisivas e não apartadas das falas coloquiais como uma observação em parênteses. O espectador-leitor segue o fluxo de pensamento com tranquilidade e muita inquietação. É especialmente tocante a correlação estabelecida entre a mobilização dos alunos contra a truculência institucional e a perseverança de Zé do Burro contra a igreja em O pagador de promessas, de Dias Gomes. Rara disponibilidade intergeracional na cena brasileira contemporânea.
Encaixam-se perfeitamente o desenho dramático das personagens, sobretudo das professoras ensimesmadas, e o modo como a encenação de Bel Garcia e Susana Ribeiro desbastam essas convenções. Bilac também planta ruídos nas entrelinhas dos diálogos e dos solilóquios em suspensão, emparelhamento narrativo demarcado pela luz.
A subversão de gênero é um achado que pode soar elementar, mas que se revela uma estratégia e tanta. Estratégia de risco podendo transbordar gratuidade ao menor deslize de gesto, partitura expressiva que denota a natureza feminina em cada um desses homens em trajes masculinos. Não há caracterização. Nem uma bolsa ou sacola a tiracolo os entregam de pronto. Já o que não está suficiente modulado é a voz de um ou outro quando tenta falsear o falsete.
Independente do senão, Leonardo Netto, Lourival Prudêncio (em substituição a Cesar Augusto), Marcelo Olinto, Paulo Verlings e Thierry Trémouroux conduzem com firmeza e carinho as suas mulheres à beira de um ataque de nervos. Neste ponto, uma exceção à “tia” Paloma em atuação memorável de Olinto [na foto no alto] – ele se desloca em cena como uma nuvem e isso tem porquê. A decana corresponde a uma presença espirituosa e catártica do estado de coisas em que suas colegas Mabel, Célia e Edilamar (a da canção de Renato Russo?) estão enredadas e diante do olhar estapafúrdio do diretor novato João Rodrigo, a face da autoridade em seus limites e vicissitudes administrativas, gestoras.
A apresentação do Teatro Funarte Plínio Marcos abriu o 15º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília na terça-feira, dia 19, para um público que lotou os 542 lugares diante do palco em semiarena. E confirmou que a relação espacial menos intimista, como nas temporadas no Rio e em São Paulo, não prejudicou a conexão e a contundência da obra. A cenografia de Aurora dos Campos impacta igualmente pela minúcia: a bola murcha no gol, o orelhão e os armários de aço desgastados, o ventilador enguiçado, as tábuas de compensado grafitadas e os indicativos de que à esquerda intuímos o portão de entrada da escola e, à direita, o corredor que leva às salas de aula e diretoria. Enfim, uma arquitetura da falta de horizontes e da opacidade que também atravancam as almas que por ali circulam.
A Cia. dos Atores capta o espírito de sua época sem forçar a mão da sincronia casual com a agenda nacional das reivindicações difusas e das esperanças por uma sociedade mais crítica. Passado um ano da estreia da montagem, as jornadas de junho ainda encerram incógnitas, não configuram a força exponencial cogitada. Como a peça mostra indiretamente, os desequiílbrios na área da educação explicitam o histórico faturamento pecuniário e político amparado na ignorância da população empobrecida.
Por fim, desconfiamos que a argumentação sensibilizadora de Mabel, a professora de artes da escola que cobra o quinhão da cultura diante da hegemonia desportiva ecoa muito do pensamento da companhia no sentido luminoso da condição humana reavivada pela dimensão estética.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília. Texto escrito no âmbito da DocumentaCena – Plataforma de Crítica, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.
.:. O site do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 19 a 31 de agosto, aqui.
.:. Conselho de classe segue em cartaz no Rio de Janeiro até 31/8, no Teatro Dulcina, aqui.
Ficha técnica:
Texto: Jô Bilac
Direção: Bel Garcia e Susana Ribeiro
Assistência de direção: Raquel André
Com: Cesar Augusto ou Lourival Prudêncio, Leonardo Netto, Marcelo Olinto, Paulo Verlings e Thierry Trémouroux
Voz off (Vivian): Drica Moraes
Cenário: Aurora dos Campos
Assistência de cenografia: Vinicius Lugon
Direção de palco: Wallace Lima
Figurino: Rô Nascimento e Ticiana Passos
Iluminação: Maneco Quinderé
Assistência e operação de iluminação: Orlando Schaider
Trilha original: Felipe Storino
Operação de som: Diogo Magalhães
Fotografia: Vicente de Mello e Dalton Valerio
Identidade visual original: Radiográfico
Consultoria pedagógica: Cléa Ferreira
Direção de produção: Tárik Puggina
Produção executiva: Luísa Barros
Administração financeira: Amanda Cezarina
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.