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Crítica

Onde começa a arte não termina a vida

8.8.2014  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Francisco Barreiro

O teatro político não cessa de reinventar. Para dar conta de situações cada vez mais complexas – nas quais não fazem mais sentido os papéis de heróis ou inimigos – as produções cênicas também precisaram recorrer a novas formas narrativas. É difícil encontrar fábulas que possam sumarizar, satisfatoriamente, macro-problemáticas. Mas o “real”, essa entidade indefinível, permanece como um manancial inesgotável para alguns criadores.

Com Derritiré con un cerillo la nieve de un volcán, que integra a grade da atual Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, o mexicano Lagartijas Tiradas ao Sol dá continuidade a sua pesquisa de teatro documental. Nesse recente espetáculo, lançado em 2013, a companhia investiga as origens e a trajetória do PRI – Partido Revolucionário Institucional e as suas muitas décadas de hegemonia no país.

O apego a elementos verídicos adquire um viés de investigação historiográfica: passados alguns anos da eleição do presidente Vicente Fox, em 2000, que rompeu com a perpetuação do PRI no poder, a ambição declarada do trabalho é olhar para trás para entender como e de que maneira uma dominação tão extensa pôde ser possível. Mas, em meio a datas e campanhas presidenciais, o coletivo dirigido por Luisa Pardo e Gabino Rodríguez (que também atuam na montagem), logrou inserir a biografia de uma personagem pouco ou nada conhecida: uma professora, envolvida com as pelejas de um sindicato e antagonista do PRI durante os anos de predomínio político e ideológico do partido. O procedimento lembra o caminho que já havia sido trilhado em produções anteriores, caso de El rumor del incendio, um documentário cênico sobre a vida da também professora e guerrilheira Margarita Urias Hermosillo.

Um dos princípios que guiam o Lagartijas Tiradas ao Sol, desde sua fundação em 2003, é seu ímpeto de borrar as fronteiras que separam vida e trabalho. Na obra atual, o grupo carrega esse propósito para o olhar que lança à trajetória de Natalia Valdez Tejeda. A sua participação “revolucionária” talvez estivesse limitada a uns poucos anos: período em que, depois de deixar a família, na Cidade do México, e refugiar-se em um pequeno vilarejo, passou a dar aulas e a escrever um livro, espécie de inventário do poderio do PRI.

Entretanto, a maneira como detalhes “insignificantes” da vida de Natalia – seu vínculo conturbado com os pais, a postura com a qual sempre se colocou na escola, o relacionamento amoroso desfeito – entram na composição ajuda o espectador a delinear uma personagem repleta de matizes e contradições. Figura que, assim como toda a história a ser contada, não se presta a simplificações ou explicações totalizantes.

O propósito didático nasceu embrenhado ao teatro documental. Desde suas origens, no século 19, esse gênero sempre tratou de aliar-se às fontes documentais com o propósito de esclarecer vínculos da realidade social e alertar o público para o que jaz “invisível”. Não é tarefa trivial embrenhar-se por tal território sem achatar as arestas de algumas questões ou tomar um ponto de vista que elimine as contradições inerentes à práxis política.

Na forma como erigiu Derritiré con un cerillo la nieve de un volcán, a companhia mexicana não escamoteia suas intenções. Toma um ponto de vista muito claro e comprometido para lançar-se em sua revisão histórica. Mas, se salva dos perigos da arte de propósitos pedagógicos justamente por não saber separar o que é a cena e o que é a vida.

.:. Leia a crítica do mesmo espetáculo por Julia Guimarães, do Horizonte da Cena, aqui.

.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura dos espetáculos, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.

 

Ficha técnica:
Coordinación y texto: Luisa Pardo y Gabino Rodríguez
Asistente de dirección: Mariana Villegas
Asistentes generales: Hoze Meléndez y Carlos López Tavera
Con: Francisco Barreiro, Luisa Pardo y Gabino Rodriguez
Video: Yulene Olaizola y Carlos Gamboa
Maquetas: Francisco Barreiro
Iluminación: Sergio López Vigueras
Investigación iconográfica: Josué Martínez
Utilería y arte: Úrsula Lascurain
Colaboración artística: Fernando Alvarez Rebeil y Manuel Parra García
Imagen: Francisco Barreiro
Isadora: Carlos Gamboa
Asesorías/entrevistas/agradecimientos: José Woldenberg, Citlali López, Fritz Glockner, Jorge Pérez Escamilla, Luis En, Juan Rodríguez, Carlos Payán, grupo Taller UVA, Enrique Singer, Felipe Luna y Juan Leduc.
Producción: Lagartijas Tiradas al Sol, Kunstenfestivaldesarts, Dirección de Teatro de la Universidad Nacional Autónoma de México, Festival de México FMX e Interior XIII Cine.

 

 

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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