Crítica
Intercâmbio pressupõe reciprocidade. No encontro de sábado à tarde, dia 9, no espaço do grupo Refinaria Teatral no Parque Peruche, bairro de Casa Verde, zona norte de São Paulo, artistas mexicanos do grupo Lagartijas Tiradas al Sol e uruguaios que não constituem um coletivo, na acepção corrente, mas criaram o espetáculo Murga madre, madre murga contavam de largada com uma condição comum além do abraço presumido à arte do teatro: ninguém ali jamais tinha visto a cena do outro. Esse paradoxo regeu a dinâmica que também caracterizou outras tentativas de trocas nas atividades paralelas às obras apresentadas durante a 9ª Mostra Latino-Americana de Teatro.
O espaço da Refinaria, ou Centro de Estudos e Pesquisas Cênicas, como avisa a placa, é um sobrado cujo quintal na parte inferior, nos fundos, foi adaptado para treinamento, ensaios e eventuais apresentações. O grupo existe há seis anos e há três “mora” na casa dos seus cofundadores, o diretor e dramaturgo Daniel Alves Brasil e a atriz Ana Szcypula.
Ainda na garagem de entrada, onde o anfitrião improvisa uma simpática sala de estar estendida ao jardim, com direito a cadeiras e mesinha, o produtor uruguaio Adrián Minutti surpreende-se quando pede aos mexicanos notícias do país da América do Norte. O ator Fernando Barreiro e o técnico Carlos Gamboa relatam o recrudescimento da violência na fronteira com os Estados Unidos nos últimos meses, principalmente no estado de Tamaulipas, palco de conflitos entre organizações criminosas na disputa pelo tráfico de drogas ou destas com os forças federais. A população vive toque de recolher permanente.
Em seguida, o diretor Daniel Alves Brasil convida a adentrar o espaço cênico. Atravessamos o corredor, descemos as escadas e nos sentamos em cadeiras, sofás e pufes diante do palco. A próxima hora é reservada aos exercícios de aquecimento e consequente ensaio dos atores Denis Silveira, Érika Caroline e Renan Lemos. Ana Szcypula não participa porque convocada a uma reunião do Programa de Valorização de Iniciativas Culturais, o VAI, em que o núcleo foi contemplados duas vezes. O Refinaria ensaia Pragas, quarta montagem, cuja estreia deve acontecer em novembro. A protagonista é uma poetisa frustrada que faz de tudo para conseguir emplacar uma premiação literária e tropeça em suas vicissitudes, alegorias da ganância, da vingança e da inveja. Bonecões e máscaras vão ajudar a dar forma à narrativa (também faz parte da equipe a musicista e preparadora vocal Natalia Oliveira).
Brasil, o diretor, conduz aquecimento e ensaio sem que tenha trocado meia dúzia de palavras com os convidados além da calorosa manifestação de boas-vindas. Foi direto à prática. E os convidados, portamo-nos como pacientes espectadores por 60 minutos de “ações fotográficas” e premissas da exaustão física. A tensão não era expressa apenas no corpo dos atores, mas no franzir de testa de quem tinha chegado ali para intercâmbio, mas este parecia ainda não ter se iniciado.
Até que se fez a luz, ou melhor, o café que Brasil prontamente oferece na segunda hora, com direito a bolo, num outro nível do espaço, propiciando enfim a troca de olhares, falares e paladares.
Parece que houve um ruído na comunicação entre o que o Refinaria entendeu como intercâmbio e o que a organização da Mostra sugeriu que assim o fosse, se é que eles se escutaram e se falaram. Quando há escuta há voz.
Apesar do pouco tempo de sede, Brasil já tinha recebido um grupo venezuelano e outro polonês. Por isso, talvez, a sua expectativa de que o intercâmbio preconizava a troca prática, a demonstração de processo. O fato é que havia o teto de duas horas de encontro – tínhamos que retornar ao Centro Cultural São Paulo para a sessão das 18h, do grupo mineiro Espanca!, enquanto os uruguaios passariam no hotel e rumariam para o aeroporto. A compreensão pelos anfitriões fez com que avançassem as observações mútuas. Os uruguaios descreveram sucintamente o seu trabalho com a murga, o cortejo da derivação musical carnavalesca. A produção Murga madre, madre murga estreou em 2002 e virou um fenômeno de público em Montevidéu, contemplada como melhor obra musical daquele ano com o Prêmio Florencio Sánchez, conferido pela Associação de Críticos Teatrais do Uruguai.
Os mexicanos pontuaram sobre o teatro documental que marca a fase do Lagartijas Tiradas al Sol dos últimos cinco anos. O grupo soma uma década de atividades na cena independente da Cidade do México, capital do país. Derretiré con un cerillo la nieve de un volcán é a criação mais recente e traça um panorama de fôlego da história do país sob a chancela do Partido Revolucionário Institucional, o PRI, que retomou a Presidência após 12 anos, em 2012, tendo se perpetuado no poder por 71 anos, entre 1929 e 2000, período abarcado pela dramaturgia apresentada na Mostra.
Quando a roda de relatos se permite o universo particular surge aquele tipo de história inusitada. Adrián, o produtor uruguaio, diz que já viveu no Brasil e conheceu pelo menos 12 Estados, daí a embocadura para o português que tanto despertou a atenção de Erica, atriz do Refinaria.
Já Fernando Toja, o diretor uruguaio, afirma ao jornalista que aproveitou a estadia em São Paulo para visitar Antunes Filho, a quem tem por mestre e conheceu em 1990, durante encontro da Eitalc, a Escola Internacional de Teatro para América Latina e Caribe, em Havana. Oportunidade repetida dois anos depois, também na capital cubana. “Pena que esse tipo de intercâmbio se tornou cada vez mais raro”, afirma Toja. Ele partilha uma das inquietações que ouviu de Antunes: “O que a gente faz com os atores?”, perguntou o brasileiro, para ele mesmo responder: “Ator não tem que falar, tem que aprender a respirar.” Guardadas as devidas ponderações, a frase do coordenador do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT do Sesc SP, assentaria como rubrica propícia a estimular aqueles que se aventuram a caminhar em direção ao outro, esse desconhecido.
.:. Texto escrito no âmbito da IX Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo. A organização convidou a DocumentaCena – Plataforma de Crítica para a cobertura do festival, iniciativa que envolve os espaços digitais Horizonte da Cena, Satisfeita, Yolanda?, Questão de Crítica e Teatrojornal.
Participaram do intercâmbio: Pablo “Pinocho” Routin (dramaturgo e ator), Edu “Pitufo” Lombardo (músico e ator), Fernando Toja (diretor) e Adrián Minutti (produtor), pelo espetáculo “Murga madre, madre murga”, do Uruguai. Fernando Barreiro (ator) e Carlos Gamboa (técnico), pelo grupo Lagartijas Estiradas al Sol, do México. Daniel Alves Brasil (dramaturgo e diretor), Érika Caroline (atriz), Denis Silveira (ator), Renan Lemos (ator) e Daniela Alves Brasil (fotógrafa), pelo Refinaria Teatral, do Parque Peruche, Casa Verde, São Paulo. E Fabia Pierangeli, produtora da 9ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.