Resenha
15.9.2014 | por Valmir Santos
Foto de capa: Reprodução/Faber and Faber
O dramaturgo David Mamet tem mais de 40 anos de relacionamento com o teatro, arte que certamente o credenciou para o cinema, cativo de seus roteiros. Em 2010 ele lançou o livro Teatro, empilhamento de regras de teor revisionista e fruto de longa convivência com os pensamentos e as práticas que forjaram sua visão do trabalho de ator, de diretor, de autor, mais o papel do público, da bilheteria e, sobretudo, dos princípios teóricos da cultura teatral absorvidos desde a juventude em sua Chicago natal.
A edição que acaba de sair pela Civilização Brasileira expõe paradoxos do discurso desse artista. O volume é dominado pela fixação em tornar obsoleta a função do diretor, que ele mesmo já exerceu, elegendo como bode expiatório a geração do Teatro de Arte de Moscou capitaneada por Constantin Stanislavski (1863-1938). Soa leviana a maneira como Mamet tenta desconstruir o ícone russo e seus pares ou discípulos responsáveis pela pesquisa e consolidação de novas proposições para a interpretação e a encenação na virada do século XIX para o XX, incidindo nos demais signos compositivos da cena (texto, espaço, luz etc.), inclusive no trânsito nem sempre fácil das codificações oriental e ocidental.
Escrever que os ensinamentos teóricos de Stanislavski “são um grande lixo” dá a ideia do nível de desqualificação desse material histórico. A abordagem é reducionista e descontextualizada do que vai pelo planeta. Em suma, Mamet afirma que resta pouca coisa de pé de tudo que leu e exercitou em relação à ideia de estúdio-laboratório, treinamento de corpo, voz e técnicas de interpretação.
A leitura evidencia a voz do dramaturgo irreconciliável em sua resistência, esquivo à ideologia, à teoria ou à pesquisa que implicam a presença do encenador. “O diretor não é primordial no teatro. Seu trabalho poder ser, na verdade, dispensado”, anota, convicto dos vieses acadêmico ou totalitário, sendo este um resquício bolchevique, acredita. Delega tudo à autossuficiência dos atores e da dramaticidade.
O dramaturgo associa o sistema naturalista stanislavskiano à psicanálise de Sigmund Freud (1856-1939), alegando reforço de culpas, ensimesmamentos e abstracionismos que sequestrariam as potencialidades do texto. A avidez barateia a complexidade dessa correlação, lembrando que a metodologia outrora soviética ganhou variante nos Estados Unidos a partir da década de 1920, via Stella Adler, Lee Strasberg e núcleos como o Group Theatre e o Actors Studio.
Mamet é incongruente com aspectos sociais e políticos da produção teatral contemporânea, independentemente de circunscrever territórios – no caso dele, o referencial circuito da Broadway.
No plano da ficção, suas peças imprimem estilo que tangencia a obra do inglês Harold Pinter (1930-2008), vide o tratamento às vezes hiper-realista e a notória elaboração formal. Por isso surpreende o arrazoado de Teatro. Todo o raciocínio é construído sob a lente do showbiz. A lógica do entretenimento infere que é preciso “agradar” à plateia, culminando em platitudes do autor como a de que o “teatro é um exemplo magnífico de como funciona um baluarte específico da democracia, a economia de livre mercado”. Se a peça não tocar a imaginação do público, logo deve ser substituída. O pragmatismo encobre nuances da troca teatral que tanto cita, prega, mas não pondera a polissemia em seus apontamentos.
Portanto, artistas brasileiros envolvidos em peças de Mamet estão desafiados a atravessar essas páginas de insolência. Vai ser difícil encontrar janelas. Já abraçaram sua obra Ulysses Cruz e Antonio Fagundes (Oleanna), Francisco Medeiros e Umberto Magnani (Uma vida no teatro) ou Alexandre Reinecke (em fase de produção de O sucesso a qualquer preço, que levou a categoria drama do Prêmio Pulitzer há 30 anos). E é dessa altura da carreira que entrelemos o homem, o artista e o refratário pensador batendo cabeça.
.:. Texto publicado originalmente no jornal Valor Econômico, caderno Eu & Fim de Semana, p. 32, em 12/9/2014.
Serviço:
Teatro
Autor: David Mamet. Tradução de Ana Carolina Mesquita. Civilização Brasileira 176 páginas, R$ 25,00
Trecho:
“Stanislavski, assim como muitos de nós filósofos, foi impedido pela natureza de perseguir seu primeiro amor, a ação. Ou, no caso dele, a interpretação. Sim, sabemos que ele atuava, mas as fotos que o registram fazendo isso evidenciam, para o entendedor, algo bem diferente de um astro dos palcos.
Tal como muitos outros (eu inclusive), Stanislavski apanhou seu amor pelos palcos e sua incompetência neles e transformou de modo positivo essa imperfeição (a visão teórica) que constituía um impedimento para ele enquanto ator, colocando-o em seu lugar de direito — o de diretor. Até aí, tudo bem. Ele conseguia enxergar a peça como um todo e tentava comunicar sua visão para o elenco.
Então, no entanto, ele tentou mais uma vez abstrair suas compreensões específicas (fique aqui; fale assim) e expandi-las em postulados universais. Trata-se das divagações de um teórico sobre um processo que é inteiramente físico e, vamos revelar, quase inteiramente intuitivo.”
(Teatro, páginas 43 e 44)
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.