Reportagem
19.11.2014 | por Valmir Santos
Foto de capa: Pablo Pinheiro
Brincadeira brotada há 15 anos de atividades formativas desenvolvidas por Helder Vasconcelos em São Paulo e, claro, irradiada do Carnaval de rua de Olinda e do Recife, suas fontes, o Boi marinho abriu no sábado (15/11/) a segunda edição do festival O Mundo Inteiro É um Palco – Ano II. O cortejo percorreu o entorno do Barracão Clowns, sede do Clowns de Shakespeare, grupo realizador do encontro de teatro nacional centrado no trabalho de pesquisa continuada dos coletivos e que consolida sua inscrição no calendário da cultura na capital do Rio Grande do Norte.
O ator, diretor e dançarino pernambucano Helder Vasconcellos é o puxador da brincadeira ao lado dos outros 11 integrantes e pelos menos mais duas dezenas de agregados de grupos locais ou vindos de outros estados para se apresentar na jornada de oito dias de espetáculos e afins, até 22/11.
Uma das características do cortejo é seu estímulo à participação de qualquer cidadão ao longo das evoluções no espaço público. Resultou pequena, no entanto, a adesão de moradores e pedestres do bairro Nova Descoberta, cerca de 30 pessoas que não ligadas diretamente à performance naquela tarde. Um dos acompanhantes de primeira hora, entusiasta, disse que soube da brincadeira por meio da imprensa, veio de pronto e atribui o baixo quórum à influência norte-americana sobre os costumes dos nativos a partir da década de 1940, quando a cidade foi ocupada por tropas daquele país no contexto da Segunda Guerra Mundial. A posição geográfica – o ponto mais próximo dos continentes europeu e africano, bastando atravessar o Atlântico –, converteu-a estrategicamente em “trampolim da vitória”.
“Os americanos tiraram a espontaneidade, as pessoas olham e ficam recuadas, não se permitem brincar”, disse o brincante, do qual não foi possível anotar o nome, entreouvido em plena ressonância do maracatu, olhos marejados pelo ritmo e pela dança que o afetariam desde a infância em Pernambuco, há anos radicado na capital potiguar onde a população teria experimentado Coca-cola pela primeira vez em território brasileiro e o anglicismo ostenta, a começar pelos templos de consumo, um deles batizado Midway Mall.
Mas havia um Boi marinho no meio do caminho e a cultura e a arte cumpriram sua navegação junto aos passantes ou postados nos bares, mercados, farmácias, residências, carros e ônibus. O boi subiu, como se diz, ainda no Barracão Clowns, ponte de encontro, paramentação, afinação dos instrumentos de sopro e percussão e sincronização dos passos e compassos de espera sob comando, apito e fala cantada de Vasconcelos.
O bloco organicamente formado por mulheres, homens e crianças em figurinos de tons dominantemente brancos e vermelhos tomou o asfalto e interagiu com vivacidade.
Misto de mestre de cerimônias, regente e mestre de bateria, Vasconcelos conjumina material autobiográfico e fruto das tradições culturais que subsidiam sua prática e pensamento artísticos em contato com diferentes expressões, como a música, a dança e o teatro. O cortejo enuncia-se como um coro em sequencias de movimentos endógenos e expansivos. Às vezes conforma um espiral e, noutras, uma roda para a evolução do boi de fita. A alegoria traz como um dos “miolos” dessa representação (homem que opera em seu interior) mestre Aguinaldo, com quem Vasconcelos joga um tanto de cavalo-marinho e frevo ao retornar das ruas para o ponto de partida, a sede, sintetizando como essa arte genuína é recriada à luz dos experimentos e fusões de gestualidades e sonoridades.
Como não bastasse, Helder Vasconcelos é um astuto “general da banda”, um franzino vestido de vermelho a entoar ou emendar repentes de acordo com o cenário e a gente que habilmente nota no entorno. Não poderia passar em branco a casa de esquina que replica a fachada cinza de um castelo e que destoa da paisagem suburbana. Aos ocupantes debruçados na janela, ele pergunta – voz ao microfone auricular projetada de caixinha acústica colada ao corpo – se, além do rei presumido, a rainha da vez também daria o ar da graça. Como aqueles, outros moradores abordados demonstraram-se receptivos e entabularam diálogos informais, capturando o acaso para uma narrativa também feita de espacialidades, como a frente do boteco ou a ocupação de duas faixas numa via.
Assim, nas ruas do bairro de nome emblemático Nova Descoberta, onde o Clowns deitou sua casa, o Boi marinho cumpriu, também significativa e simbolicamente, o encantamento pelo outro, esse desconhecido, na abertura do festival O Mundo Interior É um Palco, conferindo espírito de convivência, de mutualidade durante mais de duas horas de percurso.
Ao todo, o festival reúne 14 grupos em torno de nove espetáculos, seis lampejos shakespearianas na Mostra Oi de Cenas Curtas, além de atividades formativas e reflexivas. Gente como Cia. Gira Dança (RN), Coletivo de Teatro Alfenim (PB), Grupo Bagaceira de Teatro (CE), Grupo Carmin (RN), Grupo Magiluth (PE) e Ser Tão Teatro (PB), além do encerramento com o atuação de Julio Adrião no premiado solo A descoberta das Américas, texto do italiano Dario Fo dirigido por Alessandra Vannucci.
A programação completa está disponível no site do encontro, aqui.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do festival O Mundo Inteiro É um Palco – Ano II.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.