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Crítica

O sublime imponderável. Ou um achado

12.11.2014  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Rafael Mendes/Captura.Me

Aquilo que é da ordem do imprevisto, do acaso, surge calculadamente esquadrinhado no palco para erguer a biografia não autorizada e devidamente inventada de uma mulher e da cidade que mais a forjou para o mundo.

O Grupo Carmin parte de uma frasqueira encontrada numa calçada de Natal, em meio ao lixo, resgatada como possível objeto cênico do futuro espetáculo que abordaria a velhice, então um esboço. Mas o conteúdo dessa caixa – em lugar de frascos, guardava papeis e um lenço estampado – captura os criadores para as pistas sobre a vida ali contida. O real imiscui-se.

Jacy narra história da personagem nascida no interior potiguar, crescida e vivida em Natal, migrada para o Rio de Janeiro e regressada à capital do Rio Grande do Norte. O espetáculo bordeja o documental e o ficcional na apropriação artística da jornada de 90 anos de um ser comum, cuja existência foi atravessada por alguns momentos extraordinários, felicidades miúdas, desamores e um fim marcado por abandono.

A encenação e a dramaturgia dispensam tom memorioso ao cotejar a miríade de informações do início ao fim, no limite do enciclopédico. Assume a evolução temporal dos episódios, mas toma liberdade de cometer infiltrações que, afinal, sustentam uma teatralidade essencial amparada por recursos mínimos e um sentido de performatividade estruturante.

O imponderável configurado na origem espraia-se pelo projeto. A efemeridade teatral é embaralhada aos tempos, espaços e sujeitos evocados. Os atores Quitéria Kelly e Henrique Fontes são eles mesmos e suas transfigurações. Ainda que não caracterizada na atuação de um ou de outro, a presença de Jacy é fortemente nuançada. Desenha-se enquanto personagem porque o espectador identifica-se com suas dúvidas, desejos e convicções, por mais que o procedimento de atuação sugira distanciamento.

Eis alguns dos paroxismos que regem o espetáculo, para bem. Os atores triangulam com um terceiro jogador em cena, Pedro Fiúza, encarregado de manipular o conteúdo audiovisual, às vezes com câmara na mão, sobrepondo objetos e gerando efeitos na projeção ao fundo. O público depara com esse artifício enquanto é enredado pelas vicissitudes de Jacy, pelos comentários irônicos dos atuadores em relação à política provinciana de Natal enquanto decalques de marcas de produtos ou fotos de celebridades saltam à vista. A colagem crítica e bem-humorada instala ruídos que ajudam a ponderar os fatos verdadeiros, inventados ou nem um nem outro: teatro.

De fato, o grupo empreendeu pesquisa de campo movido pela caixa de pandora que abriu. Localizou a cuidadora que esteve ao lado de Jacy até a morte, o motorista de táxi de quem ela matinha um cartão, o funcionário do supermercado que a atendia na hora de fazer as compras. É a partir desses relatos que a dramaturgia entremeia o vínculo com o irmão que serviu as forças armadas, viveu em Natal e com quem ela se correspondia. E, sobretudo, a paixão por um capitão entre os milhares de soldados norte-americanos que aportaram na base naval estrategicamente instalada na cidade durante a Segunda Guerra Mundial. Com diz o texto, naqueles primeiros anos da década de 1940, Natal era um agito só, cheia de “gringo, gente passando fome e gente metida à besta”.

Do teatro de operações bélicas para as operações do teatro documentário.

Entre o nascimento e a morte de Jacy, a cidade saltou de cerca de 70 mil habitantes para 1 milhão. A obra associa o envelhecimento da sua protagonista subjacente à modernidade voraz na fisionomia de Natal, radiografando a decrepitude da urbanidade com a paisagem tomada pelos arranha-céus. Deduz-se que a especulação imobiliária também é uma forma de solidão.

Essa imagem é sintetizada de forma brilhante nos cinco minutos finais, na cena em que os atuadores compõem um aparato surpreendente para uma montagem que fluía despojada. Mas é um dispositivo inteligente que se perceberá coerente, sobre o qual não convém revelar a quem ainda não assistiu à quarta peça do Grupo Carmin, estreada neste ano. É nesse instante que a solução inventiva condensa filosoficamente, Quitéria e Fontes recolhidos na coxia e deixando o engenho falar por si, o quanto viver, assim como fazer teatro, conotam o efêmero como num sopro.

.:. Texto produzido para publicação a ser organizada pela Mostra Internacional de Teatro da Paraíba, a MIT PB. O jornalista viajou a convite da organização.

Fontes, Quitéria e Fiúza contracenam em ‘Jacy'Rafael Mendes/Captura.Me

Fontes, Quitéria e Fiúza contracenam em ‘Jacy’

Ficha técnica:
Textos: Pablo Capistrano e Iracema Macedo
Dramaturgia: Henrique Fontes e Pablo Capistrano
Direção: Henrique Fontes
Atuadores: Quitéria Kelly e Henrique Fontes
Manipulador de imagens e interação de audiovisual: Pedro Fiúza
Assistente de direção: Lenilton Teixeira
Design de luz: Ronaldo Costa
Cenografia: Mathieu Duvignaud
Trilha sonora original: Luiz Gadelha e Simona Talma
Coordenação de produção: Quitéria Kelly
Assistente de produção: Daniel Torres
Designer gráfico: Vitor Bezerra
Fotógrafo: Vlademir Alexandre
Assessor de imprensa: Pedro Andrade
Gerenciadora de mídias virtuais: Danina Fromer

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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