Crítica
Uma vez expressa com verdade, nascida da necessidade de dizer, não há como deter a voz humana. Quando censurada a boca, ela fala pelas mãos, pelos olhos, pelos poros ou por onde quer que seja. Essa percepção compõe uma das narrativas breves que o escritor Eduardo Galeano imprime em El libro de los abrazos (1989), cujas páginas e lampejos inspiram a dramaturgia do novo espetáculo do grupo Clowns de Shakespeare.
Quem dá as cartas em Abrazo, a obra teatral, são as partituras físicas, sonoras e visuais. As palavras, também elas músculos, são suprimidas em sintonia com os temas do exílio, da opressão e da liberdade na desafiadora abordagem para crianças e seus pais e responsáveis.
O argumento e o roteiro de César Ferrario elegem o imaginário como o lugar do exílio na infância. Contorna a geografia realista das ditaduras dando margem às dores do impedimento de ir e vir. Afinal, não se trata de uma visita em vão ao pensamento e à arte do autor uruguaio de As veias abertas da América Latina.
A dramaturgia coletiva e a direção de Marco França conseguem elaborar em fábula conflitos de natureza social, política e íntima sem ofuscar a poética de uma teatralidade ostensiva nas ações físicas, na musicalidade, na relação com as formas animadas e na espacialidade que tem a ver com a metáfora dos muros, paredes e saídas.
Um losango riscado no chão da cena corresponde ao território de coerção. Quem ali pisa é controlado por forças contrárias, dedos em riste, alarmes que proíbem o mero abraço. Esse obstáculo constitui a deixa para o jogo de invenção do trio de atuadores ao contornar os impedimentos que eles mesmos representam, bem como suas figuras carismáticas impedidas de celebrar o ato fraterno e, portanto, universal.
É quando o espectador se dá conta do quão o prólogo vem a calhar. O papaguear de “nãos” que a criançada ouve dos adultos nos primeiros momentos de vida (e ‘não’ é talvez a única palavra ao longo da peça) permite analogia com os diferentes graus de repressão.
‘Abrazo’ elabora imaginário como lugar do exílio
Na pré-estreia que abriu o festival O Mundo Inteiro É um Palco – Ano 2, organizado pelos Clowns em sua cidade, Camille Carvalho, Dudu Galvão e Paula Queiroz demonstraram afinidades nos tempos e silêncios. Restava ainda dosar a extroversão nata com a sutileza das atmosferas eminentemente afetivas, como quando se é apartado dos seus. A interpretação de Simone Mazzer para Gracias a la vida, concebida exclusivamente para a trilha de Abrazo, comove os mais velhos pela dolência historicamente impingida ao continente.
Com figurino-base nas cores brancas e pontuado por vermelho (uma criação de João Marcelino), os atores transitam bem por figuras ternas, como a avó caracterizada por um xale, ou sisudas, como um militar sugerido pelo quepe, todos denotados pelos respectivos desenhos gestuais que acertadamente não ambicionam a excelência da pantomima, antes uma presença borrada. O revezamento de papeis, lugares e gêneros também empregam dinâmicas próprias.
Debutante na direção, França organiza a sequência de quadros com a agilidade de quem conhece de perto o trabalho de ator e zela pela potência musical, seara que domina há anos e da qual assina ainda direção, composição original e arranjos. Aliás, a música permanece um traço de singularidade do grupo potiguar, conarradora em canto, instrumento e cadência.
Recursos como a sombra, a máscara e as ilustrações projetadas nas portas cenográficas reafirmam ludicidade. A terna relação do trio com objetos e adereços cativa tanto quanto no momento em que tudo é disposto na boca de cena, transmitindo o sentimento de abandono ou separação similar àquele de recolher os brinquedos para a caixa no fim do dia.
Após hiato de oito anos desde a primeira e até então única montagem para crianças – Fábulas (2006) –, o Clowns de Shakespeare delineia em Abrazo um prolongamento de suas pesquisas e, portanto, de sujeições ao risco. Readentra o campo do teatro infantil com uma produção significativa, sobretudo no panorama local. E demonstra coerência com o recente repertório latino-americano iniciado este ano com Nuestra Senhora de las nuvens, passando pela recriação do prosa de Galeano – a temporada no Barracão Clowns vai até o próximo domingo (21/12) – e devendo ser concluída em 2015 com Dois amores e um bicho, do venezuelano Gustavo Ott. Dialogar – ou triangular – com o imaginário latino é uma voragem à altura dos 21 anos de travessia do grupo.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do festival O Mundo Inteiro É um Palco – Ano II.
Serviço:
Onde: Barracão Clowns (Avenida Amintas Barros, 4.661, Nova Descoberta, Natal, tel. 84 3221-1816)
Quando: sábado e domingo, às 11h. Ate 21/12.
Quanto: R$ 10 a R$ 30
Alusões autoritárias permeiam o texto
Ficha técnica:
Dramaturgia: Clowns de Shakespeare
Argumento e roteiro dramatúrgico: César Ferrario
Direção: Marco França
Atuação: Camille Carvalho, Dudu Galvão e Paula Queiroz
Música original, arranjos e direção musical: Marco França
Músicos convidados: Simone Mazzer, Roberto Taufic, Júnior Primata, Samir Tarik, Zé Hilton, Vitor Queiroz
Gravação e mixagem de som: Eduardo Pinheiro e Johnatan Fernandes
Desenho de som (cena Guerra dos Insetos): Fernando Suassuna
Preparação corporal: Anádria Rassyne
Figurino: João Marcelino
Adereços de figurinos e cenário: João Marcelino, Anderson Galdino e Janielson Silva
Máscaras: Janielson Silva e João Ricardo Aguiar
Cenotecnia: Anderson Galdino, Janielson Silva
Ilustrações: José Veríssimo
Animações: Paula Vanina
Filmagem (cena Sombra do Soldado): Carito Cavalcante
Projeção mapeada: Wilberto Amaral
Produção executiva: Rafael Telles
Coordenação técnica de vídeo: Rafael Telles
Supervisão técnica: Ronaldo Costa