Entrevista
Reproduzimos entrevista com Maria Della Costa realizada em outubro de 2004, ocasião do lançamento da biografia Maria Della Costa: Seu teatro, sua vida, de Warde Marx (Imprensa Oficial do Estado e Fundação Padre Anchieta). Naquele mesmo ano, o teatro que leva seu nome, no bairro paulistano da Bela Vista, completava meio século.
A atriz morreu na tarde de sábado, 24/1, aos 89 anos, em consequência de edema pulmonar agudo. Estava internada havia dias em hospital no Rio de Janeiro. Seu corpo foi velado de sábado para domingo no Theatro Municipal carioca e será enterrado nesta segunda, 26/1, em Paraty, cidade onde passou boa parte da vida.
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Na parede do apartamento, em São Paulo, a silhueta de uma mulher baila entre o azul e o verde. Borrados na tela, são tons que refletem os olhos da autora do quadro, Maria Della Costa.
Trata-se de uma obra de 1992, sem nome, que a pintora bissexta fez a pedido de uma campanha para pessoas com Aids. “Quis pintar a liberdade no espaço”, afirma a atriz. Auto-retrato? “Talvez.” Aos 78 anos, ela admite ter passado boa parte da vida “prisioneira do palco”, puro orgulho.
Ausente da ribalta desde Típico romântico (1992), peça de Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha, dirigida por Maurício Paroni de Castro, Della Costa volta aos refletores na próxima semana. Em São Paulo, o teatro que leva seu nome, e do qual foi uma das fundadoras, completa 50 anos com festa no dia 25. Dois dias depois, autografa Maria Della Costa: Seu teatro, sua vida, de Warde Marx.
Dona de uma pousada em Paraty (RJ), onde mora, Della Costa tem feito as vezes de empresária do ramo de turismo depois da morte do segundo marido, Sandro Polloni, em 1995, um relacionamento de 50 anos. “Não sou dondoca, não nasci em berço esplêndido. Nasci na roça, nasci pobre, passei fome”, diz a gaúcha de Flores da Cunha. A seguir, trechos de sua entrevista à Folha.
O ofício
Sempre fui uma mulher presa à minha arte. Fui uma escrava maravilhosa do teatro, dia e noite estudando, representando. Na minha época, eu representava duas sessões de terça-feira a domingo.
Gianni Ratto
Fomos à Itália em 1953, com a cara e a coragem, eu e Sandro. Dois jovens que não tinham um tostão, praticamente. Chegamos a Milão e nos disseram que o Ratto [1916-2005] era um dos sete melhores cenógrafos do mundo. Conversamos com ele, explicamos que estávamos terminando de construir o teatro. Ele aceitou. Chegando aqui, começamos os ensaios da única peça que ele trouxe debaixo dos braços: O canto da cotovia [de Jean Anouilh]. Calhou comigo no papel de Joana d’Arc, desbravando um teatro ali numa travessa da av. 9 de Julho, onde era tudo mato.
Flerte com o comunismo
Essa coisa social vem desde mocinha. Começou com o Jorge Amado [1912-2001]. Ele escreveu muito tempo em nosso apartamento, quando eu era casada com o Fernando de Barros. O Jorge escreveu O cavaleiro da esperança [1942] dentro do nosso apartamento. Nos levou para conhecer o Luis Carlos Prestes [1898-1990]. Nos levou para a antiga União Soviética, para a China. O Jorge era militante comunista. A mulher dele, a Zélia, tem um livro de memórias que se chama Um chapéu para viagem [1982], inspirado num chapéu que lhe emprestei quando da viagem a Moscou.
Políticos
Eu conheci praticamente todos os políticos. Mendiguei na porta de cada um para a construção do teatro. Alguns me atenderam respeitosamente, outros não. Eu fiquei tão furiosa com o Adhemar de Barros [1901-69], tão nervosa, que tive que citá-lo no livro [o ex-governador de SP teria dado a seguinte ordem a um secretário quando em reunião com a atriz: “Pergunta quanto esse cavalo de raça quer pra eu dormir com ela”]. Ele me perseguiu, tive até que sair de São Paulo. Com Getúlio Vargas foi o contrário. Quando terminamos o teatro, faltavam as poltronas. Fomos ao presidente, marcamos hora. Ele impôs uma condição: “Damos as poltronas, mas vocês têm que dar o teatro para os estudantes e levar espetáculos aos bairros a preços populares”. Concordamos. Naquele dia o Vargas estava com um ar muito cansado. Ele disse: “Olha, gaúcha, sinto que alguma coisa vai me acontecer”. Oito dias depois ele estava morto.
Dois maridos
Eu tinha 15 anos quando casei com o jornalista Fernando de Barros [1915-2002]. Ele tinha muito ciúmes do Sandro, que renunciou aos palcos para me dar lugar. Esse respeito vou carregar comigo até morrer. Um dia, o Sandro disse: “Maria, assim não dá. Ou sou ator ou sou empresário. Não quero te prejudicar. Vou dar lugar a você porque você é melhor do que eu. Vou cuidar de você, ser o seu empresário”. Quando ele morreu, eu me senti órfã. O Fernando de Barros me disse: “Olha, Maria, você teve um grande homem a seu lado, sempre respeitei muito o Sandro, mas a partir de hoje vou ser o seu marido de novo”. Mas “seu marido” por telefone. Ele ligava toda noite, eu em Paraty e ele em São Paulo. Perguntava como foi o dia, sempre dizia que eu era a mulher que amou a vida inteira, ele que foi muito mulherengo. Guardo o carinho dos dois homens que eu tive, duas perdas recentes. Vou te contar: eu sou uma guerreira para aguentar o que aguentei.
A beleza
Nasci uma mulher bonita, mas, se você olhar o meu repertório, vai ver que fiz muitas mulheres gordas e feias. Fiz duas pequenas cirurgias plásticas, mas nunca mexi muito no corpo. Dizem que tenho corpo de garota. Vou ao espelho, olho e agradeço a Deus.
.:. Publicado originalmente na Folha de S.Paulo, caderno Ilustrada, em 21/10/2004, sob o título “Guerreira, Della Costa ressurge em festa e livro”
.:. Leia mais sobre a vida e a obra da atriz na Enciclopédia Itaú Cultural, aqui.
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.