Artigo
Em sua gênese, em 1989, a Companhia de Teatro Os Satyros emendou o espetáculo infantil Aventuras de Arlequim a dois adultos, Um Qorpo Santo dois e o antológico Sades ou noites com os professores imorais, este no ano seguinte. A trinca embrionária diz muito da identidade artística constituída em um quarto de século de inquietude e transgressão.
Em linhas gerais, a amoralidade do palhaço e servo da Commedia dell’Arte conversa com a disrupção da escrita do gaúcho Qorpo-Santo (1829-1883), crismado José Joaquim de Campos Leão, que por sua vez transluz a natureza humana desnuda em libertinagem, crueldade e perversão sob a pena – e as mãos – de Marquês de Sade (1740-1814), ou Donatien Alphonse François de Sade, aristocrata francês e escritor libertino.
Como os sátiros na mitologia dos povos gregos, seres metade homem, metade animal que acompanhavam o deus Dionísio (do vinho e das festas) em suas jornadas por montanhas e bosques, os fundadores do grupo cortejaram o pendor dionisíaco em contraponto à hegemonia apolínea daquele final da década de 1980. O diretor Rodolfo García Vázquez e o ator Ivam Cabral perseveraram a contramão em termos estéticos e temáticos.
À época, o diretor José Celso Martinez Corrêa, paradigma da consciência “pan-dionisíaca” na cena brasileira, estava prestes a retomar os trabalhos do Teatro Oficina após o exílio condicionado pela ditadura civil-militar. O panorama era dominado pela poética formalista de Antunes Filho e Gerald Thomas, para citar dois ícones, cada um em sua vereda. Nesse contexto, Os Satyros polinizaram um teatro que fala às profundezas.
É o que o público de Piracicaba pode conferir na imersão que o Sesc concebeu para a segunda quinzena de março. São quatro peças daquele repertório, um bate-papo com o diretor García Vásquez e uma oficina sobre os procedimentos recentes de criação. As atividades visam desde o espectador jovem ou adulto apreciador de primeira hora das artes cênicas até os praticantes ou pesquisadores afins ou de áreas correlatas.
Estão programados os espetáculos A filosofia na alcova (Lisboa, 1993, remontada em Curitiba em 2003 e depois em São Paulo); Não amarás e Não fornicarás (ambos integrados ao projeto “E se fez a humanidade ciborgue em sete dias”, São Paulo, 2014), além da produção mais recente da companhia, Pessoas perfeitas (São Paulo, também estreada no ano passado).
A filosofia na alcova é justamente uma transcriação de Sades ou noites com os professores imorais. O campo da sexualidade e a reflexão sociopolítica sobre o antagonismo prazer e castração perpassam também a apropriação dos mandamentos bíblicos Não amarás e Não fornicarás. Corpos presenciais e virtuais reverberam as estratégias de relacionamento nos dias de hoje. Já a dramaturgia de Pessoas perfeitas toma como inspiração as vicissitudes de alguns moradores do centro da capital entrevistados pela equipe.
Na apresentação ao livro Cia. de Teatro Os Satyros: um palco visceral (Imprensa Oficial, 2006), o jornalista, crítico, romancista e ator Alberto Guzik (1944-2010), ele mesmo incorporado ao grupo em certo momento da vida, nota como o “viés transgressor faz parte da alma da companhia”. Tanto no tocante à arte como à luta pela sobrevivência dos integrantes e pela manutenção de um espaço-sede. Vide o percurso dos últimos 25 anos de história após fixar-se no bairro paulistano do Bixiga, transitar por Lisboa, a capital portuguesa, e Curitiba, a paranaense, para finalmente retornar a São Paulo, em 2000, circunscrevendo os territórios físico e simbólico da Praça Franklin Roosevelt, região central da cidade onde passou mais da metade de sua existência.
Em 14 anos radicado no número 214 do local, o núcleo artístico transcende o espaço cênico para se tornar protagonista na esfera pública. Quer em ações que transformam seu entorno imediato – a praça ressignificada em seu espírito de urbanidade –, quer em ações políticas e cidadãs, como a colaboração central na implantação da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, vinculada ao Governo do Estado, e a organização das Satyrianas, maratona anual de 78 horas de arte e cultura dos mais diferentes naipes, tendo alcançado 14 edições em plena Roosevelt, catalisando milhares de pessoas e antecipando o que a Virada Cultural iria representar tempos depois em outra escala. A convivência teatral plasma uma comunidade reinventada a sua maneira – a começar pela tolerância às diferenças irradiada para a cidade, o estado, o país, o mundo.
.:. Publicado originalmente no programa do projeto “Os Satyros em Perspectiva”, que ocupa o Sesc Piracicaba (SP) entre 18 e 26/3.
.:. O site da Companhia de Teatro Os Satyros, aqui.
https://www.youtube.com/watch?v=v96vmtXspEY
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.