Resenha
Na Marcha Republicana que levou cerca de quatro milhões às ruas de Paris em 11 de janeiro passado, um domingo, a companhia Théâtre du Soleil participou com sua conhecida intervenção artística ancorada na figura de uma marionete enorme. A boneca costuma representar a Justiça em evoluções manipuladas por atuadores através de hastes que a mantêm nas alturas, como se viu em 2011 na Praça Syntagma, em Atenas, em frente ao Parlamento grego, quando o povo reagiu ao pacote de austeridades do governo.
Dessa vez, ganhou contornos ainda mais dramáticos a presença da mulher icônica vestida de longo branco e véu esvoaçante, com o rosto sangrando e em brava luta contra um bando de corvos que a atacam, sustentados por varetas.
A Justiça transfigurou-se República naquela que foi considerada a maior mobilização da história do país. Faixa de luto no ombro esquerdo, espada na mão direita, boina vermelha na cabeça e “escoltada” por bandeiras francesas, eis a marionete sintetizando a nação ferida, perseverando a democracia incondicional horas após a série de atentados terroristas que deixou 17 mortos, inclusive parte da equipe do seminário Charlie Hebdo.
Intervir na esfera pública é um traço coerente no pensamento e na prática da companhia da diretora Ariane Mnouchkine, única remanescente do núcleo então estudantil que iniciou suas atividades em 1964. A saber, um projeto artístico de afirmações humanista, política e comunitária; de sublimação cultural do pertencimento; e da consciência universal do outro, percepções cultivadas há meio século.
Não se assiste a uma criação do Théâtre du Soleil sem ser mobilizado pela experiência da imersão. No teatro, isso significa distinção nos modos de acolher o público e de construir o espaço cênico para comungar algumas horas de arte, com direito a intervalo e refeição preparada e servida pelos próprios atores que há pouco estavam em cena. O aspecto convivencial é determinante e espelha o cotidiano de sua sede na Cartoucherie, uma antiga fábrica de munições do exército cujos galpões servem a coletivos cênicos no Bosque de Vincennes, nos arredores da capital francesa.
A ambiência intimista e fraterna, sem que haja interação direta dos intérpretes com o espectador, foi explicitada nos dois espetáculos com os quais o Brasil teve oportunidade de travar contato com a companhia, Os efêmeros (Les ephémères), em 2007, e Os náufragos do Louca Esperança (Les naufragés du fol espoir), em 2011, ambos transformados em filmes com autonomia de voo em relação às dramaturgias de origem.
No campo do cinema, tem-se revelado bastante profícua a ponte de transcriação do tablado para a tela grande, compreendendo pelo menos dez filmes rodados com média de quatro anos entre um e outro, quase todos sob direção de Mnouchkine.
Inicialmente, a diretora resistia ao registro audiovisual, conformava-se com o caráter efêmero do teatro. Até o dia em que assistiu a um trecho de dois minutos restaurados da filmagem de O inspetor geral, drama de Nikolai Gógol (1809-1852), clássico da literatura russa encenado em 1926 por Vsevolod Meyerhold (1874-1940), um dos renovadores dos palcos na Moscou da virada do século XIX para o XX.
Trata-se da cena em que o farsante Khlestakov flerta com a mulher do governador. Por duas vezes um ator pega o dedo de uma atriz com uma colher e o leva aos lábios para beijá-lo. “Quando vi esse trecho, pensei comigo que, afinal, era preciso deixar registros para que se possa ver a linhagem do teatro”, afirma no livro Ariane Mnouchkine (Riocorrente, 2011), em relato à pesquisadora Béatrice Picon-Vallin. “Esses dois minutos de Meyerhold tinham, nem sei, como que me mandado um beijo, ou melhor, ele voltava à vida por alguns segundos…”.
Não por acaso, o nome da companhia incide sobre a arte do cinema. “É um nome que veio por tratar de luz, do calor, da fertilidade da vida. Naquele momento, não pensávamos exatamente no cinema. Mas você tem razão, a luz é seminal para o cinema”, concorda em entrevista a este autor realizada em 2013.
Os náufragos do Louca Esperança condensa as habilidades que a diretora e sua companhia cooperativada por cerca de 70 pessoas construíram no set de filmagem. Invariavelmente, o próprio galpão-sede da Cartoucherie é convertido em estúdio, numa possível alusão ao imaginário da Cinecittà de Federico Fellini (1920-1993).
Com pouco mais de três horas de duração, o filme referente à obra anterior da companhia – atualmente em cartaz em Paris com Macbeth, de William Shakespeare (1564-1616) – ganha edição em estojo de DVD com três discos que somam outras quatro horas e meia de conteúdos extras. Pleno em relatos generosos do processo criativo, esse material suplementar conclama o interlocutor às singularidades da trupe elencadas até aqui.
Durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que exibiu Os náufragos do Louca Esperança, Ariane Mnouchkine observou as camadas de metalinguagem: “De fato, o espetáculo trata de pessoas que fazem cinema. O filme, agora, fala de gente que faz teatro e que está fazendo cinema em cena. Se essa experiência foi bem-sucedida na tela, você vai poder me dizer depois. Penso que é um filme de verdade. Assim espero”.
Engenhoso, o roteiro intercala tempos fluídos: o presente do leitor mirim, o passado ficcional dos utopistas encantados pelo cinema recém-inventado e um segundo passado ainda mais distante na projeção também fictícia do filme, tudo isso sem perder o caráter artesanal da teatralidade, a gênese dessa aventura cinematográfica de tons épicos.
À dramaturgia do espetáculo criada coletivamente, a escritora Hélène Cixous, colaboradora contumaz da companhia, acrescenta o plano narrativo de abertura com uma criança que está no século XXI e lê o romance de Júlio Verne (1828-1905), Os náufragos do Jonathan (Les naufragés du Jonathan), escrito em 1897 e descoberto postumamente.
A ação coronária do filme se passa no sótão do restaurante Louca Esperança, em Paris. Estamos em meados de 1914, às vésperas da Primeira Guerra Mundial. Seu dono, Felix Courage, oferece o piso superior para o cineasta Jean LaPalette improvisar um estúdio. Idealista que rompe com a empresa cinematográfica Phaté em nome da perspectiva artística de seus filmes, ele recruta voluntários entre os frequentadores assíduos da casa e adoradores da sétima arte que justamente florescia no início do século XX.
Acompanhamos, então, como os ideais movem montanhas e são capazes de afetar libertária, igualitária e fraternalmente. Jean e sua irmã Gabrielle, também cineasta, contagiam um grupo de pessoas a rodar um filme mudo, como convém à época, tomando como inspiração a obra de Verne. O enredo retrata a saga de emigrantes que deixam o País de Gales rumo à Austrália, mas encalham na Terra do Fogo, o arquipélago localizado na extremidade sul da América do Sul. Lá, tentam forjar uma comunidade socialista em meio às disputas territoriais de governos chileno, argentino e inglês. Mote para cotejar trechos de documentários relativos a outros conflitos bélicos da Era dos Extremos, o século XX, como interpretou o historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012).
Acompanhamos, então, como os ideais movem montanhas e são capazes de afetar libertária, igualitária e fraternalmente. Jean e sua irmã Gabrielle, também cineasta, contagiam um grupo de pessoas a rodar um filme mudo, como convém à época, tomando como inspiração a obra de Verne. O enredo retrata a saga de emigrantes que deixam o País de Gales rumo à Austrália, mas encalham na Terra do Fogo, o arquipélago localizado na extremidade sul da América do Sul. Lá, tentam forjar uma comunidade socialista em meio às disputas territoriais de governos chileno, argentino e inglês. Mote para cotejar trechos de documentários relativos a outros conflitos bélicos da Era dos Extremos, o século XX, como interpretou o historiador inglês Eric Hobsbawm (1917-2012).
Mas sinopse alguma do mundo dá conta do laboratório social que o Théâtre du Soleil elabora conjugando as artes coirmãs do teatro e do cinema. Em seu libelo pró-sociedade do futuro, o espetáculo abarca questões nevrálgicas para a humanidade, como os processos de colonização, a luta de classes e outros paradoxos do estado, do capital e da igreja.
Em paralelo à ponderada contundência desses contextos geopolíticos, a fatura poética de Os náufragos do Louca Esperança é incomensurável. Uma rodinha no tripé da câmara e, eureca!, ela pode deslizar: o admirável mundo novo do travelling. A câmera à manivela, o advento da grua e a mutação cenográfica a cada piscar de olhos são outros frames dessa obra que convida a “olhar para o que se vê” num oceano de textos e imagens geradores de poderosas visões.
A rigorosidade técnica e o despojamento sofisticado nas sugestões de nevascas e mares revoltos – uma espécie de elogio ao artífice – correspondem às noções de escala, volume e perspectiva que o Théâtre du Soleil imprime em suas produções cênicas sem jamais perder de vista a riqueza dos detalhes. A atuação esmerada é outro trunfo nas mãos de atores bastante à vontade diante das câmeras, conferindo materialidades teatral e cinematográfica como raramente se consegue, vide Maurice Durozier (Jean LaPalette), Juliana Carneiro da Cunha (Gabrielle LaPalette) e Eve Doe-Bruce (Felix Courage). Longe de destacar protagonistas numa empreitada tão orgânica, mas é impossível deixar de citar a contracena de Jean-Jacques Lemêtre, responsável por musicar a obra e investido exatamente do papel de músico com sua quimera de instrumentos. A paisagem sonora é vital para captar tempos tenebrosos ou solares.
.:. Publicado originalmente no site do Sesc São Paulo (Selo Sesc) em 20/2/2015. Texto remunerado.
Serviço:
Os náufragos do Louca Esperança (DVD triplo com duração de cerca de 7 horas e meia, incluindo 4 horas e meia de extras)
Roteiro: Baseado numa criação coletiva do Théâtre du Soleil, escrito em parceria com Héléne Cixous e musicado por Jean-Jacques Lemêtre e livremente inspirado em romance póstumo de Júlio Verne.
Direção: Ariane Mnouchkine
Quanto: R$ 80 (acompanha pôster)
https://www.youtube.com/watch?v=aLaOWPhnj-o
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.