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Crítica

A memória residual disputada no limbo

7.3.2015  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Carmine Maringola

Na cena contemporânea não raro depara-se com procedimentos criados para sabotar a compreensão. Quando o problema não é fruto de precariedade, o objetivo é estimular o espectador – quase sempre ávido por construir sentido rapidamente – a descartar os elementos mais facilmente acessáveis de seu repertório cultural e escavar um pouco mais fundo no movimento em direção à obra.

É inverso ao descrito acima o procedimento central de Emma Dante na direção de As irmãs Macaluso. Nos primeiros minutos de espetáculo ela faz entrar em cena um batalhão de mulheres marchando em ordem unida que logo assume posição de sentido no proscênio. Com os rostos voltados diretamente para a plateia, cumpre disciplinadamente a missão – com vigor, humor e emoção de atrizes exuberantes – de eliminar todas as tensões e dúvidas sobre temas e personagens.

O prólogo anuncia que a chave de acesso ao espetáculo estará nas relações familiares – as sete irmãs do título se apresentam com tal e traçam o retrato de uma família típica vinculada por afetos profundos e fricções de superfície –, na mobilização de lembranças de infância, por meio de jogos um tantinho sádicos, e de emoções que vão do pranto ao riso, como indicam os figurinos que oscilam do negro enlutado à intensidade das cores primárias nos vestidos caseiros e maiôs de banho. Desde a primeira imagem a tomar o palco a diretora deixa evidente que a linguagem corporal será recurso expressivo relevante na montagem, mais um aspecto bem-vindo aos espectadores, em especial os da MITsp, divididos entre palco e legendas – essas intrusas necessárias.

Porém, como já dito, o movimento do espetáculo é inverso. Aos poucos, a superfície vai sendo escavada e o material que irrompe pouco suporta ser examinando sob o foco de luz do vínculo familiar com sua incômoda potência para atravessar a máscara social. Desse modo, áreas de penumbra, mais ao fundo do palco, começam a ser povoados por figuras que ganham gradativa estranheza e perturbam a percepção, pedindo desvios nos movimentos da sensibilidade.

Resíduo é palavra chave na elucidação de matéria e tema de As irmãs Macaluso. Na face mais evidente, o que insufla vida às personagens é a matéria residual da memória – o tempo é (in)definido pelo ritual familiar de rememoração que traz do limbo seus membros evitando a segundo morte pelo esquecimento. Sabe-se que a diretora trabalha na sua cidade natal, Palermo, sempre com os atores da Companhia Sud Costa Occidentale, por ela fundada em 1999, e com eles vem criando peças que giram em torno da identidade cultural das regiões pobres do sul da Itália, que conhecemos no “modo clichê” – a família siciliana de gestos expandidos, emoções extremadas e violência social canalizada por organizações mafiosas.

Porém, é relevante acrescentar que a encenação de As irmãs Macaluso foi realizada especialmente para participar de um projeto intitulado Cidades em Cena, apoiado pela União Europeia, que convidou encenadores de diferentes países – entre eles o diretor do Teatro da Vertigem Antônio Araújo – para criar espetáculos relacionados à questão “convívio nas grandes cidades”. A informação é relevante porque à primeira vista a concentração do olhar nas relações familiares e restritas a determinada região da Itália parece escolha não pertinente e até mesmo redutora.

Mas a questão central do projeto não apenas está presente no espetáculo como também ganha contundência ao ser examinada com o recurso da individualização e a lente do afeto. Os valores socialmente compartilhados nas grandes cidades globalizadas em tempos de capitalismo tardio deslocam para um lugar residual parte considerável da cultura dos povos. E para compensar a humilhação dos que ficam à margem, sobram sonhos de centralidade e fama – questão que rende uma das mais expressivas coreografias do espetáculo envolvendo a figura do craque de futebol argentino Maradona. Não cabe ao teatro trazer à luz o que está na penumbra, mas revelar a existência do limbo. A contundente dança final é signo da potência que pode brotar da impossibilidade, aposta de toda arte.

.:. Publicado no âmbito da Prática da Crítica, uma das atividades da ação Olhares Críticos na 2ª MITsp, aqui.

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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