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Reportagem

‘Galileu Galilei’ tira o pensamento do exílio

6.5.2015  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: João Caldas

Denise Fraga gosta de ficar à porta do teatro para receber o público. E saber quem vem lhe assistir a cada noite. Aos domingos, reparou, é dia das mulheres ‘arrastarem’ os maridos. “Uns tipos bonachões, que chegam entediados”, conta a atriz.

Durante a temporada de A alma boa de Setsuan, que estreou em 2010, o maior prazer de Denise era observar esses homens descrentes. “E como a expressão deles ia se transformando, o corpo se esticando na cadeira, a boca ficando aberta. Como se estivessem acordando naquele momento”, resume ela.

É para reviver um pouco dessa sensação – de transformar minimamente quem está sentado na plateia – que a intérprete leva mais um texto de Bertolt Brecht (1898-1956) ao palco. Desta vez, a obra em questão é Galileu Galilei, que entra em cartaz dia 15, no Tuca, sob a direção de Cibele Forjaz.

A peça que tomou mais tempo – e rendeu mais inquietações – ao dramaturgo alemão foi escrita e reescrita por ele durante boa parte de sua vida. Chegou a merecer três versões. E, para tornar seu simbolismo ainda mais acentuado, Brecht morreu enquanto a dirigia, um pouco antes de sua estreia em Berlim.

No Brasil, a montagem que notabilizou a saga do cientista italiano, condenado pela Inquisição, estreou em 1968, pelas mãos de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina. À época, os paralelos entre a trama encenada e aquilo que se passava no país eram nítidos. Ameaçado de tortura, Galileu renega as próprias descobertas. Aqueles que detêm a força, podem controlar tudo, até o que é verdade e o que é mentira.

Em um tempo no qual vigoram as liberdades democráticas, os pontos de contato com a fábula são certamente menos óbvios. Mas não inexistentes. “Galileu achava que poderia se aliar ao poder para viver bem e ainda assim conservar sua liberdade”, observa Cibele Forjaz. “Na ditadura econômica em que vivemos, o ‘senhor’ mercado parece não pedir nada em troca, é como se a liberdade fosse irrestrita, mas ele também exige muito. Principalmente, da crença das pessoas. Você tem que consentir na sua ideologia e o que vale é o dinheiro.”

A biografia do cientista que sustentou que o Sol não gira em torno da Terra, como se acreditava até então, conduz a narrativa. No século 17, em plena Contrarreforma, Galileu construiu um telescópio com o qual conseguiu comprovar a teoria de Copérnico. Amigo do papa e apreciador do conforto e dos prazeres mundanos, o cientista supunha ser possível conciliar suas pesquisas à proximidade com o poder.

Evidências científicas, contudo, não eram suficientes para convencer a Igreja, que se sentiu ameaçada pela nova forma de organização do mundo proposta. Ameaçado de tortura pelo Santo Ofício, recuou em suas posições, rechaçando as teorias que havia lançado. Às escondidas, continuou a escrever os discorsi, que levariam adiante a sua revolução científica.

Denise Fraga (agachada) contracena com parte do elencoJoão Caldas

Denise Fraga (agachada) com parte do elenco

Um homem que renega os próprios ideais. Sem desistir deles. Apreciador de pequenos luxos. Mas o primeiro autor preocupado em escrever em italiano – a língua do povo – e não em latim. Brecht encontrou, nesse controverso personagem, subsídio para levantar questões que escapam ao episódio histórico. E esbarram, muitas vezes, em conflitos éticos que o próprio escritor enfrentava. “Galileu carrega em si todas as contradições. É herói e anti-herói. E nos lança uma pergunta: ‘Até que ponto posso ser fiel ao que penso sem sucumbir ao poder vigente?’”, questiona Denise.

Sem encontrar pouso na Alemanha, Brecht foi um eterno exilado. Buscou refúgio na Dinamarca. Depois, na ex-União Soviética. Em seguida, fugiu para os Estados Unidos. E acabou interrogado pelo macarthismo. “Não à toa, Brecht se identificava muito com esse personagem, suas características, seus questionamentos como artista”, considera a diretora.

O papel de um homem que envelhece diante dos espectadores não parece, a princípio, servir perfeitamente a uma atriz reconhecida por seu talento cômico. “Obviamente, não era um papel para mim. Mas, se estamos fazendo teatro, o fato de ser parecido com o personagem é completamente secundário”, crê a atriz. “O que me interessa é o potencial revolucionário dessa história. Tudo isso alcançado por meio do humor.”

Sua entrada em cena se dá sem caracterização. É no palco que ela vai se apossar de uma peruca e de uma barriga postiça – que cresce com o passar dos anos. A seu lado, outros nove atores se revezam em diferentes papéis. Parte deles, havia atuado com Denise em A alma boa de Setsuan, caso de Ary França. Outros, acompanham Cibele Forjaz em seu trabalho na Cia. Livre, entre eles Lúcia Romano e Luís Mármora.

Não é a primeira vez que a diretora se aventura por esse título. Em 1998, ela já havia montado a peça, tendo Renato Borghi no papel-título. Agora, opta por uma versão mais enxuta – com duas horas de duração e não quatro, como costuma ocorrer. Ainda que tente se manter fiel ao espírito da obra.

Traço onipresente na linguagem épica proposta pelo autor, a música é essencial para a transmissão da história. A trilha, assinada por Théo Werneck e Lincoln Antônio, serve ainda para acentuar o espírito carnavalesco com o qual Cibele contaminou toda a montagem. Presente no original, a cena do carnaval de Veneza ganha aqui novas dimensões. “O carnaval se tornou um mote da montagem. Essa cena é uma grande metáfora da vida e da própria peça”, diz também ela.

Na selva das cidades

Reconhecida por trabalhos de fôlego, como Um bonde chamado desejo (2002) e O idiota (2011), Cibele Forjaz se lança, em 2015, em um extenso mergulho pelas obras de Bertolt Brecht. Além da encenação de Galileu Galilei, a diretora também está envolvida com a pesquisa para a montagem de Na selva das cidades – título que tem estreia prevista para o fim do ano, no dia 2 de novembro. “Será uma experiência que certamente transformará o meu trabalho. Brecht exige muito daqueles que trabalham com ele”, observa a encenadora.

Para colocar de pé sua versão para Na selva das cidades, Cibele percorre um caminho criativo diverso daquele empreendido em Galileu. Com a Mundana Companhia (conhecida por trabalhos como O idiota e O duelo), a diretora tem vivenciado processos de imersão em diferentes pontos da cidade: da Luz, na região central, ao extremo leste da cidade, em Cidade Tiradentes. Entre os atores que participam da criação estão Aury Porto, que é também idealizador do projeto, Carol Badra, Lee Taylor e Luah Guimarãez, entre outros.

Se o espetáculo que encenadora divide com Denise Fraga é uma criação da maturidade de Brecht, Na Selva das Cidades remonta à sua juventude como autor. Escrita na década de 1920, a peça vinha falar de ambição e desigualdades em uma metrópole. “É um texto lindo e extremamente complexo”, considera a diretora. “Daí, a necessidade de pensá-lo coletivamente.”

Para a nova versão, buscou-se olhar para o trabalho feito pelo Teatro Oficina, em 1969. Assim como para a situação de cidades em diferentes épocas. Chicago em 1912 (que é onde se localiza a trama). Berlim em 1923 (local de estreia da primeira encenação). São Paulo, nos anos 1960 e agora.
Na metrópole brasileira, observa-se qual o papel da especulação imobiliária, como a cidade absorve os processos de construção e destruição constantes, e como os interesses das construtoras se sobrepõem ao bem-estar daqueles que deveriam ser donos do espaço público.

Assim como viria a ocorrer nas obras que Brecht escreveria depois, o poderio econômico e sua voracidade já eram escrutinados e questionados aqui. “É exatamente porque tudo parece dado, porque não parece haver nenhuma possibilidade de mudança ou utopia possível que Brecht é tão necessário e tão urgente para este nosso tempo.”

Quem é Bertolt Brecht
Poeta, dramaturgo e encenador alemão, nasceu em 1898. Tornou-se reconhecido por sua teoria do teatro épico, que contestava os conceitos de linearidade e uniformidade do drama. Morreu em 1956.

.:. Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, Caderno 2, páginas C-1 e C-5.

Serviço:
Galileu Galilei
Onde: Teatro Tuca (Rua Monte Alegre, 1.024, tel. 11 3670-8455
Quando: Sexta e sábado, às 21h; domingo, às 19h. De 15/5 a 30/8
Quanto: R$ 50 e R$ 70

Ficha técnica:
Direção artística: Cibele Forjaz
Adaptação/dramaturgia: Christine Röhrig, Cibele Forjaz, Maristela Chelala e Denise Fraga
Com: Denise Fraga, Ary França, Rodrigo Pandolfo, Lúcia Romano, Maristela Chelala, Vanderlei Bernardino, Jackie Obrigon, Luís Mármora, Silvio Restiffe e Théo Werneck
Cenografia: Márcio Medina
Trilha sonora: Lincoln Antônio e Théo Werneck
Iluminador: Wagner Antonio
Figurinista: Marina Reis
Visagista: Simone Batata
Preparação corporal e coreografia: Lu Favoretto
Preparação vocal: Andrea Drigo
Assistente de direção: Artur Abe e Ivan Andrade
Fotos: João Caldas
Programação visual: Philippe Marks
Vídeos: Chico Gomes, Paulo Mosca, Bossa Nova Films
Produção executiva: Lili Almeida
Direção de produção: José Maria
Realização: NIA Teatro. Este Projeto foi realizado através da Lei Federal de Incentivo à Cultura
Apoio: PUC – Teatro TUCA – 50 anos
Transportadora oficial: AVIANCA
Patrocínio exclusivo: Bradesco
Realização: Ministério da Cultura e Governo Federal do Brasil – Pátria Educadora
Serviço
Assessoria de imprensa: Morente Forte

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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