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Reportagem

Na linha tênue

13.5.2015  |  por Michele Rolim

Foto de capa: Ligia Jardim

O limite entre o real e a ficção é uma investigação recorrente da Cia. Hiato. O grupo paulistano, apesar de jovem – começou com Cachorro morto (2008), que já esteve em Porto Alegre – vem mostrando que tem talento. Com Ficção (composto por cinco solos) mais o espetáculo O jardim, a companhia faz quatro sessões dentro do Palco Giratório Sesc, até sexta-feira (15).

“A ideia sempre foi entender a realidade e a ficção não como coisas opostas, mas sim como coisas muitos mais interligadas quanto parece. Se a gente fica tentando colocar tanta realidade em cena, é possível fugir da ficção na vida?”, indaga-se o diretor do grupo, Leonardo Moreira. A Cia. Hiato se encaixa em um movimento recente da cena teatral: o de levar aos palcos as biografias dos atores. No entanto, Moreira afirma que não gosta de rótulos – como Teatro Documentário ou Biodrama. “Entendemos que o teatro documentário tem um esforço de colocar aquilo que é a realidade, e não fazemos isso. Estamos colocando materiais reais e ficcionais ao mesmo tempo, sem diferenciar um do outro”, esclarece o diretor.

Para Moreira, esse embate entre uma situação real e uma ficcional sempre foi o jogo central do teatro. “Na peça, as coisas estão acontecendo em um tempo real, por mais que a ficção me diga que é outra época”, argumenta. As montagens da companhia, inclusive, apresentam personagens com nomes dos próprios atores. Conforme Moreira, esta é uma forma de compartilhar com o público que, apesar de existir uma mediação da ficção no palco, há um momento presente – a realidade. “O ator é o mediador desta ficção, não estamos tentando enganar o público. Por mais que você me diga, no palco, que é o Hamlet, estou vendo que você é a pessoa que está à minha frente”, ressalta.

Em O jardim – peça com ingressos esgotados – a dramaturgia partiu da biografia dos próprios atores, fato que fica claro ao final da peça. A trama tem três partes e retrata a saga de uma mesma família em 80 anos. O cenário é dividido por caixas de papelão (as mesmas usadas durante a mudança de separação do diretor) e as cenas acontecem simultaneamente. Assim, é o espectador que cria a sua própria ordem da história.

Já em Ficção é feita a apresentação de cinco solos, no qual cada integrante do elenco criou um monólogo partindo de questões pessoais, colocando em cena um grau mínimo de ficção para criar outra ficção. Hoje (12), serão apresentados dois solos: um de Maria Amélia Farah, que discorre sobre a pressão que sua mãe muçulmana exercia para que ela dançasse; e um de Thiago Amaral, que leva para o palco seu pai – não ator – com quem contracena. Por meio da metáfora de um coelho, ele retoma a relação com este pai que se afastou por seis anos quando descobriu a opção sexual do filho.

No dia seguinte, é a vez de Aline Filócomo, que demonstra insegurança em relação à sua irmã, que surge no palco ao final do solo; e também da atriz Fernanda Stefanski, que revela um crime em família, propondo um paralelo com a agressão sofrida por parte de um ex-namorado, a morte da melhor amiga e textos de Shakespeare. O solo de Luciana Paes faz menção ao seu projeto relacionado à pintora Frida Kahlo e ao pai ausente e depressivo. “A ideia do Ficção é que o espectador ficasse o tempo todo em um lugar de confusão, se perguntando se isso aconteceu ou não”, explica Moreira. O mecanismo lembra o proposto por Eduardo Coutinho em Jogo de cena.

A finalização do projeto Ficção ocorre com a montagem 2 Ficções, recente criação do grupo, que acabou ficando de fora das apresentações em Porto Alegre por motivos de agenda. “A questão é que uma discussão pública pode decorrer de algo privado. Não é ser narcisista, a ideia não é essa, olho muito mais como um sacrifício: vou usar a minha vida para discutir aquilo. A exposição é muito mais dolorosa do que vaidosa”, completa.

.:. Publicado originalmente no Jornal do Comércio, caderno Viver, p. 1, em 12//5/2015.

.:. Mais informações sobre a programação do 10º Festival Palco Giratório Sesc RS, aqui.

Jornalista e mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisa em torno do tema curadoria em festivais de artes cênicas. É a repórter responsável pelo setor de artes cênicas do Jornal do Comércio, em Porto Alegre (desde 2010). Participou dos júris do Prêmio Açorianos de Teatro, do Troféu Tibicuera de Teatro Infantil (ambos da Prefeitura de Porto Alegre) e do Prêmio Braskem em Cena no festival internacional Porto Alegre Em Cena. É crítica e coeditora do site nacional Agora Crítica Teatral e membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro, AICT-IACT (www.aict-iatc.org), filiada à Unesco). Por seu trabalho profissional e sua atuação jornalística, foi agraciada com o Prêmio Açorianos de Dança (2015), categoria mídia, da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Porto Alegre (2014), e Prêmio Ari de Jornalismo, categoria reportagem cultural, da Associação Rio Grandense de Imprensa (2010, 2011, 2014).

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