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Reportagem

Partituras do totalitarismo

3.6.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Roberto Setton

O poderio bélico que o presidente Vladimir Putin demonstrou na Praça Vermelha no mês passado não saudava apenas os 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. A vitória sobre a Alemanha nazista foi como que presentificada com toda pompa e circunstância pelo governante aferrado às velhas e eficientes estratégias e táticas de propaganda. A parada num sábado ensolarado catalisou o noticiário internacional por meio de imagens endereçadas, sobretudo, ao mundo ocidental, onde alguns países foram aliados da extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas naquele rigoroso e histórico inverno de 1945.

Romancista e dramaturgo inédito em nossos palcos, o britânico David Pownall, de 77 anos, criou uma peça lapidar sobre os controles tentaculares a que uma sociedade pode ser submetida – no caso, nos campos da arte, da cultura e política. Ambientada num salão do Kremlin três anos após a rendição alemã, Master Class, de 1983, chega ao Brasil por meio da direção e adaptação de William Pereira, rebatizada Aula magna com Stálin, em cartaz no CCBB SP até 3 de julho.

Exímio na arte de construir realidades, Josef Stálin (1878-1953) é um dos quatro personagens dessa ficção embebida em fatos históricos. O ditador expõe sua força de persuasão na tentativa de convencer dois dos compositores ícones da música do século 20, o então já prestigiado Sergei Prokofiev (1891-1953) e o jovem Dmitri Shostakovich (1906-1975), a abdicarem do formalismo em suas obras para concerto tidas como “chatas”, antipopulares, logo antissoviéticas. Isso à véspera do primeiro congresso nacional dos músicos sob a batuta do chefe de estado.

O quarto homem nesse tabuleiro é o braço direito de Stálin, Andrei Jdanov (1896-1948), responsável pelas políticas culturais e pelo Departamento de Propaganda e Agitação do Comitê Central do Partido Comunista. A certa altura, o funcionário que impôs o realismo socialista às artes sentencia que a música desarmônica é “ruim” porque exerceria efeito destrutivo sobre as atividades físico-psicológicas. “A parte do cérebro que controla a audição também controla o equilíbrio e o vômito. Então vocês dois estão criando doenças físicas bem como distúrbios mentais”, diz aos compositores, pasmos.

É a linguagem que está em xeque. A manipulação do ato criativo e da liberdade sob a ameaça do cidadão ser banido. “Estamos diante de um teatro de ideias”, sintetiza o diretor William Pereira, 52 anos, mais da metade da vida dedicada a encenar teatro e ópera.

Foi exatamente o universo da música que o atraiu à lombada de The composer plays (1993) na estante de uma livraria estrangeira. David Pownall reuniu em volume único quatro textos em torno das biografias e da genialidade de alguns autores europeus. Além do enquadramento institucional de Prokofiev e Shostakovich, que abre o livro, constam narrativas sobre o italiano Carlo Gesualdo (1566-1613), assassino da mulher e do amante dela, e o britânico Edward Elgar (1857-1934), este também objeto de um roteiro radiofônico na mesma publicação – Pownall é um profícuo criador de histórias para o rádio, são mais de oitenta.

O público não precisa conhecer os músicos retratados porque o texto é autoexplicativo, possuí toques irônicos, trágicos e críticos

O livro caiu nas mãos de Pereira em meados da década de 1990, quando ele se lançou imediatamente à tradução de Master Class. Já era apaixonado pelos compositores russos e ficou encantado pelo modo como Pownall equilibra o horror da opressão e sua contraface, o humor. O hiato de quase duas décadas até a montagem atual é atribuído à resistência de produtores, patrocinadores e inclusive de artistas quanto aos eixos histórico e erudito que supostamente afugentariam o espectador, denotando menosprezo pela inteligência do público, deduz o diretor.

“O que menos interessa é falar estritamente da Rússia de 1948, mas do conflito universal entre o poder da arte tocar as pessoas e a insistência com que alguns governos querem se utilizar dela para justificar fins ideológicos e doutrinários, o discurso político de ocasião”, afirma. “O público não precisa conhecer os músicos retratados porque o texto é autoexplicativo, possuí toques irônicos, trágicos e críticos.”

Em cena, os intérpretes são Jairo Mattos (Stálin), Luiz Damasceno (Jdanov), Carlos Palma (Prokofiev) e Felipe Folgosi (Shostakovich), todos eles imbuídos do desafio de envolver a plateia por meio das imagens derivadas da musicalidade da palavra. Em vez do salão convencional, a cenografia confina o quarteto numa espécie de tumba ou bunker com direito a um piano de cauda. Nas paredes, caixas pretas emolduram retratos de artistas como o pintor Malevich, o poeta Maiakóvski, o escritor Dostoiévski e o ator Meyerhold, entre outros nomes perseguidos por regimes totalitários. Como se suas fichas estivessem arquivadas ali por agentes da repressão, à maneira de um sonoro DOI-CODI, sigla para o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, órgão do Exército atuante na ditadura militar brasileira.

.:. Publicado originalmente no jornal Valor Econômico, seção Eu & Cultura, p. D4, em 1°/6/2015.

Serviço:
Onde: CCBB SP (Rua Álvares Penteado, 112, Centro, tel. 11 3113-3651).
Quando: Quarta a sexta, às 20h. Até 3/7.
Quanto: R$ 10.

A partir da esq., o quarteto Palma, Mattos, Damasceno e  Folgosi Roberto Setton

A partir da esq., o quarteto Palma, Mattos, Damasceno e Folgosi

Ficha técnica:
Tradução, direção e cenografia: William Pereira
Com: Jairo Mattos, Luiz Damasceno, Carlos Palma e Felipe Folgosi
Diretora assistente: Ângela Barros
Direção musical e composições: Miguel Briamonte
Figurinos: Fábio Namatame
Iluminação: Caetano Vilela
Diretora de produção: Flávia Furtado
Assessoria de imprensa: Canal Aberto

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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