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Crítica

Matarile e a relevância concreta da arte

27.8.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Humberto Araújo

Em Brasília

O artista cênico carrega consigo filigranas das mutações entre o início e o fim da sessão, ou da apresentação de ontem para a de hoje. Sequelas física e d’alma segredadas por quem vive de construir presenças provisórias e, num estalar de dedos, põe-se alerta à beira do precipício da realidade. Como a de sustentar companhias e utopias autônomas. Ou de encontrar nexos entre razão, fé e o devido grau de ceticismo para exercer as artes do corpo de cada dia.

Foi reagindo às distopias materiais e existenciais que os artistas da Matarile Teatro estancaram os três anos de suspensão de suas atividades, após 24 anos continuados, reagindo ao estado de coisas com a criação de Staying alive (2013), ou Seguimos vivo. Em vez de esmurrar o muro das lamentações, preferiram saltá-lo trazendo a público um libelo à arte e ao pensamento crítico. A ideologia não morreu, lembram os realizadores.

Impossível perscrutar o espetáculo sem considerar seu lugar de origem, a península da Galícia numa Espanha conflagrada pela crise econômica desde 2008, assim como a Grécia e outros países de uma Europa abalada pelo custo social e pelo discurso financeiro único da austeridade.

Ao pragmatismo das agências globais de qualificação de risco a Matarile responde sem medo de capitalizar as probabilidades do perigo. Demonstra apuro estético e chama o espectador a regurgitar as desesperanças, contemplar epifanias e complementar sentidos nesse trabalho em que os “operários” também estão em busca deles.

Há uma atitude exploratória permanente, inclusive da ossatura física do prédio em consonância com os corpos a deambular

É o percurso que importa: processual. Um inventário elaborado com aridez, caos e beleza. Forma materializada por meio de uma dramaturgia sensorial que engloba fisicalidade, espacialidade, visualidade e sonoridade à maneira de quadros ou estações. Súbito, organizam-se os focos poéticos de uma narrativa porosa e sustentada pela expressividade dos corpos das quatro atrizes-bailarinas.

A dimensão filosófica mora em perguntas, autocríticas e autoironias quanto à  relevância da arte para a sociedade, para o sujeito que foi ao teatro e, claro, para aqueles que a praticam e pensam.

Tudo em cena é expedição. Vai-se adiante com a bagagem da memória para reificar o efêmero, quem sabe eternizá-lo no repertório dos espectadores. E por falar em busca, aquela dramaturgia convencionada pela palavra, residual, insere relatos ou diálogos esparsos com citações a romancistas e pensadores os mais díspares (Stendhal, Roberto Bolaño, Rafael Alberti e Jean Baudrillard, entre outros).

Rut Balbís em cena do espetáculo da Galícia, EsplanhaHumberto Araújo

Rut Balbís em cena do espetáculo da Galícia, Espanha

Em versos do chamado Século de Ouro Espanhol, Francisco de Quevedo fala da necessidade de se conversar com os mortos, escutá-los. O espetáculo-instalação não dissimula a tristeza, o luto. Expõe ossos que estruturam a fortaleza corporal e, ao mesmo tempo, dizem respeito ao fim da existência. A morte paira ainda como a possibilidade de fechar ciclos e abrir outros (o nome Matarile enseja finitude ou fertilização). Já ao citar uma aparição de Tadeusz Kantor, artista do desbotamento, uma das figuras fala em cultivar cores para contrabalancear.

É vã a expectativa de enxergar porto seguro numa dramaturgia em tudo pluralizada, deliberadamente impregnada da relação com o espaço da sala multiuso do Teatro Sesc Garagem, plateia em “U”. Noções de geometria e de volumetria orientam a expressividade tomando para si o vazio nuclear. As intérpretes sobem pelas paredes, deslizam da cadeira, traçam perpendiculares, rodopiam, usam a porta de saída de fundo como área de escape. Há uma atitude exploratória permanente, inclusive da ossatura física do prédio em consonância com os corpos a deambular. O desenho de luz e a paisagem sonora são co-narradores na magistral assinatura conjunta de Baltasar Patiño, pulmões da obra colados à respiração do quarteto.

Enquanto criadora, diretora e cofundadora da companhia, a presença em cena de Ana Vallés veicula um documento vivo dos saberes e fazeres tatuados na memória da pele e da alma. Feito um cicerone, mas relativizando a visibilidade dos holofotes contemporâneos, no limite entre as expressividades abismais e zombeteiras, ela se coloca com marcante generosidade ao lado de Mónica García [imagem no alto da página], Rut Balbís e Janet Novas.

A direteora, criadora e cofundadora da Matarile Ana VallésHumberto Araújo

A direteora, criadora e cofundadora da Matarile Ana Vallés

Estamos diante da sabedoria do corpo amadurecido, do coração amoroso e indignado de Vallés, superando clichês e muitas vezes postando-se recuada, a observar a força centrípeta contagiante e desesperadora de García, expansionista; o movimento complementar de Balbís em sua performance contorcionista em torno do próprio eixo; e a ambiguidade escultórica e vertiginosa nas quedas de Novas, cuja beleza e juventude são plenas e não menos angustiadas na figura seminua que desfila com um abajur cobrindo-lhe a cabeça e segurando o fio à procura de uma tomada para, quem sabe, conectar ideias.

A certa altura, num dos apartes da figura mestre de cerimônias de Ana Vallés, ela lembra que o ser humano, quando mira em algo ou alguém costuma fixar-se naquilo que presumiu, por ansiedade, ignorando o quanto a amplitude do campo de visão pode gerar em liberdade e novas descobertas. Correlação perfeita para a experiência do espectador provocado pela dança-teatro da Matarile Teatro.

O raciocínio serve à contemplação das quatro intérpretes com sólida formação em dança e muita desenvoltura para jogar e às vezes minar a representação teatral. O espectador que conteve o impulso de interpretar encontrou em Staying alive um viveiro para reinventar as utopias e verticalizar as intertextualidades.

Janet Novas em "Staying alive', que retomou o grupo em 2013Humberto Araújo

Janet Novas em “Staying alive’, que retomou o grupo em 2013

Ademais, a companhia galiciana desprende humor peculiar em meio à consistência da pesquisa. Como no trecho em que Vallés afirma que em seu país costumam morrer peixes, árvores, jornais e companhias de teatro… O espetáculo abre com o quarteto entoando Yellow submarine desde a coxia, antes mesmo de emergir ao tablado – artistas saindo da reclusão e dispostos a desempenhar atos cênicos de resistência.

A paródia do espetacular é outra licença que ilustra o artificialismo das passarelas e do glamour de que a vida é uma festa regida pelo deus mercado que a tudo e a todos se impõe. Tanto o globo espelhado de pista de dança como o globo do mapa-múndi falam das esferas artificiais presente na nova ordem mundial ou em níveis comunitário, familiar, pessoal. Em suma, aquela sensação de que muita gente não anda apaixonado pelo que faz e liga no automático, cada qual carregando sua cruz. Haja alongamento mental e corporal para prover revoluções pessoais e políticas. A resposta colaborativa da Matarile é um alento à arte e toca em dilemas locais e globais. A prospecção utópica não é romântica, e sim absolutamente concreta e urgente. Não blasfema a metafísica de Beckett, mas lembra que não é preciso esperar: aqui e agora são suficientes e plurais. Presente, a solitude ativa põe a pasmaceira de pernas para o ar. E sonha.

.:. Escrito no âmbito do 16º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, de 18 a 30/8, em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica. O jornalista viajou e trabalhou a convite da organização do evento.

.:. Leia a crítica de Daniele Avila Small, da revista eletrônica Questão de Crítica, a ‘Teatro Invisível’, outro espetáculo que a Matarile Teatro apresentou no Cena Contemporânea.

Detalhe de maquete cenográfica alusiva ao universo do teatroLilibeth Dantas

Detalhe de maquete cenográfica alusiva ao universo do teatro

Ficha técnica:
Criação e direção: Ana Vallés
Interpretação e coreografia: Mónica García, Rut Balbís, Janet Novas e Ana Vallés
Luz e som: Baltasar Patiño
Texto: Ana Vallés, com a colaboração de Mónica García, Nuria Sotelo e Rut Balbís
Produção e distribuição: Manu Lago
Assistente de direção: Daniel Baamonde
Assistente de iluninação: Miguel Muñoz e Fran Núñez
Técnico: Miguel Muñoz
Produção: Matarile Teatro, em coprodução com AGADIC – Xunta de Galicia

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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