Menu

Resenha

Quatro peças do jovem Peter Handke

25.8.2015  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: Maurício Alcântara/Bacante

As portas do teatro se abrem e o público aos poucos se acomoda. Toca o primeiro sinal. A cortina fechada estufa por alguns segundos como se alguém dentro do palco nela tivesse esbarrado. Em seguida é possível escutar o som abafado de um móvel sendo vagarosamente arrastado e sussurros, talvez dos técnicos, possivelmente um último acerto de cenário. Ao terceiro sinal, a sala escurece, a cortina se abre e… Não há absolutamente nada no palco, nenhuma cenografia. Ao fundo, apenas quatro atores que caminham até o proscênio.  A luz se acende não apenas no palco como também na plateia e assim permanece durante toda a apresentação, sem variações ou efeitos especiais, enquanto os atores falam diretamente para o público.

“Isto não é uma peça”; “Nós não vamos contar para vocês uma história”; “Nós não estamos representando sonhos, nós não estamos representando destinos”; “Vocês não podem reconhecer vocês mesmos em nós. Nenhum espelho está sendo mostrado para vocês”; “Estas bordas do palco não representam um mundo. Elas são parte do mundo” – esses são alguns dos fragmentos do texto de Insulto ao público que soa como um manifesto pós-dramático ou contra o drama.

Escrita pelo austríaco Peter Handke aos 23 anos, na década de 1960, em tempos de contestação de paradigmas culturais, tal dramaturgia é estranhamente definida como “prólogo” já nas primeiras palavras dirigidas ao público: “Sejam bem-vindos. Esta peça é um prólogo” – afirmação que será repetida outras vezes. O termo parece nomear o desejo de propor a abertura para uma nova teatralidade por meio dessa peça cuja arquitetura se funda na negação crítica de diferentes formalizações da dramaturgia ocidental ao longo da história: “Vocês não veem paredes que tremem. Vocês não ouvem o som espúrio de portas fechando com estalos. Vocês não veem a sugestão de uma cena. Vocês também não veem quebra-cabeças de cena.”

Insulto ao público investe fundamentalmente na possibilidade de interferência sobre a percepção automatizada do público teatral europeu à época. “Vocês não são mais espectadores. Vocês são o assunto. O foco está em vocês. Vocês estão no fogo cruzado de nossas palavras.” Ambição que Handke exercita com conhecimento vertical da tradição cultural queo precede o que dá densidade crítica à sua linguagem, aspecto que propicia o potencial de atualização cênica desses textos que, até onde foi possível pesquisar, jamais foram alvo de montagens profissionais de ampla repercussão no Brasil.

Estas bordas do palco não representam um mundo. Elas são parte do mundo

Experimentar-se na criação de uma teatralidade desdramatizada, sem personagens ou fábula, foi o que buscou o jovem Handke na escrita de quatro peças– Predição, Insulto ao público, Autoacusação e Gritos de socorro – agora reunidas em edição bilíngue, português-alemão, no livro Peter Handke: peças faladas, editado pela Perspectiva e organizado pelo professor Samir Signeu, que também assina a tradução feita diretamente do idioma alemão. No Brasil é bastante comum a encenação de textos teatrais vertidos para o português a partir das línguas francesa ou inglesa. “Toda versão atua como filtro; sempre que possível é bom traduzir do original”, comenta Signeu.

Vem de longe o seu interesse pela produção dramatúrgica juvenil de Handke, tema do mestrado que concluiu em 2005 na Escola de Comunicações e Artes, a ECA-USP, orientado pela pesquisadora Ingrid Dormien Koudela, com quem voltou a repetir a parceria no doutorado, desta vez sobre a “dramaturgia provocativa” de outro austríaco, Thomas Bernhard, estudo concluído em 2011.

Tal formação amplia a importância do livro. Além de trazer os textos das quatro peças citadas – tanto as traduções quanto os originais –, o volume contém ainda análise da inserção no campo cultural da obra desse dramaturgo que, aos 72 anos, ainda hoje é atuante na cena europeia. Autor de peças de reconhecido cunho experimental, além de romances e contos, Handke é possivelmente mais conhecido no Brasil pelas parcerias com o cineasta alemão Win Wenders, amigo de juventude, para quem escreveu os roteiros de O medo do goleiro diante do pênalti (Handke é apaixonado por futebol, informa Signeu) e Asas do desejo, entre outros filmes.

O dramaturgo, poeta e roteirista austríaco Peter Handke, 72 anosDeutsche Welle - Alliance/DPA

O dramaturgo, poeta e roteirista austríaco Peter Handke, de 72 anos

Em entrevista a este Teatrojornal – Leituras de Cena o tradutor comenta ter coordenado vários experimentos com alunos tendo como base os textos de Handke – ele é professor de teatro na Escola Recriarte desde 1995 –, exercício que contribuiu para o aprimoramento das traduções. “Procurei ser o mais fiel possível ao original, sem traições, mas também sem germanismos; considerei importante o cuidado com a palavra falada.” Suas escolhas se deram em função daquilo que no teatro os atores costumam chamar de “texto para caber na boca”, significando sonoridade compatível com a palavra dita em voz alta.

Tradução cuidada e compartilhamento de uma produção de pensamento sobre a obra juvenil do autor foram qualidades buscadas nessa publicação que, embora já disponível nas livrarias, ganha nesta quarta-feira, 26/8, uma noite de lançamento especial na sede paulistana do Instituto Goethe. Com início às 19h30, a mesa-redonda gratuita Peter Handke – Diálogos (IM)pertinentes reunirá a pesquisadora Ingrid Koudela, que abordará o diálogo entre Handke e Bertolt Brecht, e a escritora e tradutora literária Simone Homem de Mello para um debate em torno das peças faladas, mediado pelo jornalista Daniel Benevides. Na mesma noite, Samir Signeu fará a leitura pública de trechos escolhidos.

Dramaturgia fundada exclusivamente na palavra – sem qualquer ação física – é aspecto comum às quatro peças publicadas no volume. As ações descritas no parágrafo que abre o presente artigo – falsas ações como arrastar móveis que não estarão em cena – são as únicas indicadas nas rubricas de Insulto ao público, e só existem antes do início propriamente dito da apresentação.

Curiosamente, mais adiante em sua trajetória Handke fará uma nova série de experimentações na vertente oposta, ou seja, escreverá peças que conterão apenas rubricas de ações. Entre elas está O menor quer ser tutor – na tradução de Signeu publicada no volume –, cujo tema é a luta de poder entre dois homens, escrita em 1968 e encenada no Brasil em 2008, sob o título O pupilo quer ser tutor [imagem no alto da página], dirigida por Francisco (Chiquinho) Medeiros, com a Cia. Teatro Sim… Por Que Não?!!!, de Santa Catarina, não por acaso categorizada como teatro-dança nos festivais de que participou. E ainda A hora em que não sabíamos nada uns dos outros, de 1991, encenada em São Paulo em 2002 por Marcelo Lazzaratto e com 16 atores da sua Cia. Elevador de Teatro Panorâmico assumindo as 300 figuras criadas pelo autor num jogo cênico que torna difusa a fronteira entre cotidiano e teatralidade – sem palavras. Outra peça de Handke encenada no Brasil foi Kaspar (2004), com a Cia. de Teatro Os Satyros (SP) – sob o título Kaspar ou A triste história do pequeno rei do infinito arrancado de sua casca de noz –, texto de 1967 que de acordo com Signeu contém muito dos elementos experimentados nessa dramaturgia juvenil.

Ivam Cabral em 'Kaspar' (2004), direção de Rodolfo García VázquezHélio Dusk

Ivam Cabral em ‘Kaspar’ (2004), direção de Rodolfo García Vázquez

“Eu vim ao mundo” é a primeira frase de Autoacusação que, ao contrário do que sugerem o título e o pronome pessoal (eu) no início de todos os parágrafos, nada tem de confissão pessoal ou de abordagem de problemas individualizados. É possível dizer que a peça tematiza a formação da subjetividade no campo da cultura ocidental e as possibilidades de transgressão desse mesmo território. “Eu fui concebido. Eu fui gerado. Meus ossos se formaram. Eu nasci.” São essas as primeiras frases do texto escrito para dois oradores, um homem e uma mulher, sem indicação do autor sobre quem fala qual parte.

Ao longo da peça as falas se deslocam do campo biológico para o da cultura intensificando a crítica social. “Eu falei. Eu expressei. Eu expressei o que os outros pensaram antes de mim. Eu pensei unicamente o que os outros já expressaram. Eu expressei a opinião pública. Eu falseei a opinião pública.” Nos tempos atuais, em que urge debater questões da vida política sem rebaixamentos, as reflexões propostas por Handke nesse texto soam muito pertinentes.

Autoacusação propicia ainda ao leitor/espectador um interessante exercício mental ao suscitar um jogo de questionamento sobre comportamentos transgressores: quais podem ser considerados mera bravata e quando são potencialmente transformadores? Suscitar tal pergunta é um dos possíveis efeitos na recepção de fragmentos como: “Eu falei em lugares onde era desrespeitoso falar. Eu falei alto em lugares onde é grosseiro falar alto. Eu falei baixo quando convinha falar alto. Eu me calei num momento onde era vergonhoso se calar. Eu me dirigi às pessoas que eram indignas de interpelar. Eu cumprimentei pessoas que, por princípio eu deveria ignorar. Eu passei sob silêncio minha cumplicidade no crime.”

Insulto ao público e Autoacusação são as duas peças mais encenadas das quatro que compõem o volume. Em vez de provocar vaias e o esvaziamento das salas, as primeiras montagens obtiveram inesperada aceitação em suas primeiras montagens europeias. “Observando a precarização do campo educacional e de formação cultural, um problema que não é mais só brasileiro e mesmo na Alemanha vem ocorrendo, a gente chega a pensar que uma produção juvenil com tal densidade de linguagem talvez não fosse possível nos dias de hoje, assim como sua recepção”, comenta Signeu.

Porém, tal aceitação não se deu sem polêmica. Handke inicia sua produção teatral num período em que boa parte do debate sobre a arte se dava nos termos de uma oposição entre a abordagem histórica – que pensa a arte como espelhamento das contradições sociais e econômicas – e a corrente formalista que busca na obra em si, em seu diálogo com outras criações estéticas, os elementos de análise. Não por acaso, ao compilar na década de 1970 uma série de artigos de sua autoria, Handke, com humor irônico, intitula o volume como Eu habito uma torre de marfim, referência à acusação de “formalista da pior espécie” que lhe foi imputada.

Se tal oposição pode ser redutora, ela absolutamente não contribui para a leitura de Autoacusação e Insulto ao público. No entanto, é possível compreender a origem da pecha de formalista quando se lê Predição, a peça que abre o volume, essa sim um experimento de linguagem, a menos encenada das quatro. Nesse texto o autor brinca com jogos de redundância, repetições e tautologias que levam a produção de sentido a girar em falso e tornam a atividade receptiva bastante árida – “o louco correrá como um louco; o possuído uivará como um possuído, o cão sarnento vagueará como um cão sarnento” – são apenas três das dezenas de frases criadas nesse mesmo diapasão repetitivo.

A última das quatro, Gritos de socorro, propõe um exercício à primeira vista mais instigante aos intérpretes do que para os espectadores. Texto curto – se apresentado no palco do jeito que está proposto não duraria talvez mais do que 15 minutos –, pode se tornar uma ótima ferramenta para cursos de teatro. E, assim como as demais peças, sempre estará aberto à interferência de criadores que podem surpreender com a revelação de aspectos ainda não explorados. Mais um bom motivo para celebrar a publicação – sempre um estímulo para o surgimento de novas montagens.

Cena de 'A hora em que não sabíamos' , da Cia. ElevadorJoão Caldas

Cena de ‘A hora em que não sabíamos nada uns dos outros’, com a Cia. Elevador

Serviço:
Peter Handke – Diálogos (IM)pertinentes
Mesa-redonda e lançamento do livro Peter Handke: peças faladas (Editora Perspectiva, Coleção Textos, nº 32, 240 páginas, R$ 50). Participam a professora e pesquisadora Ingrid Dormien Koudela, a escritora e tradutora Simone Homem de Mello e o pesquisador Samir Signeu, responsável pela organização, introdução e tradução do livro. Mediação do jornalista Daniel Benevides
Quando: quarta-fiera, 26/8, às 19h30
Onde: Instituto Goethe de São Paulo (Rua Lisboa, 974, Pinheiros, tel. 11 3296-7001)
Quanto: grátis

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

Relacionados

Esparrela (2009), atuação, direção e texto de Fernando Teixeira, artista paraibano que lança a autobiografia ‘Trás ontonte’
Gravura de Lerrouge e Bernard a partir do artista francês Jacques Etienne Arago (1790-1854) mostra o movimento de pessoas e o Teatro São João no Rio de Janeiro, sob regime imperial, então principal sala do século 19 no país; detalhe da imagem estampa a capa do livro ‘Teatro e escravidão no Brasil’, de João Roberto Faria