Crítica
Em Itajaí
A neutralização do corpo é uma das constantes no teatro pós-dramático. Ele não modula esforço por linhas de emoção ou de identificação. Os atores Denise da Luz e Max Reinert seguem essa percepção à risca em Esse corpo meu? (2014), da Téspis Cia. de Teatro, de Itajaí.
Eles adicionam fortes ingredientes da ação performativa para desconstruir a ilusão cênica e criticar a fixação biológica de gênero, como se as genitálias presumissem o desejo.
Seus corpos-manequins são suportes para samplear o gesto, a vestimenta, a atitude, o estereótipo. Desfilam no palco desvios e deslizamentos do masculino e do feminino com variantes para as transgeneridades.
Na criação colaborativa com a argentina Periplo Compañía Teatral – a direção é de Diego Cazabat –, a partitura física estiliza a glamorização da vida e provoca estranhamentos nos papeis sociais do homem e da mulher, ruídos representacionais a ver com a pele que cada um habita.
O texto-pensamento flutua em voz off sobre a dança dos corpos de Reinert e Denise, que transitam diálogos não-verbais e olhares que dizem muito. A fala gravada funde-se à paisagem sonora desenhada por Hedra Rockenbach, instigando uma dramaturgia que abre paralelos ou surte efeito direto.
A dupla atira-se de peito aberto. Seus corpos-narradores frequentemente vêm do fundo para a boca de cena. A frontalidade desenha como que um corredor-passarela em direção ao público. Também ao fundo, dois painéis lado a lado, de pé-direito alto, são os respectivos guarda-roupas. Atrás de cada um deles Denise e Reinert providenciam as mutações.
as duas companhias se permitiram contextualizações e relativizações históricas, econômicas e antropológicas sutilmente sinalizadas em objetos, adereços e figurinos, ou assumidamente viscerais nos corpos convulsos ou estatelados
A pesquisa da coprodução encontrou níveis sofisticados de associação trabalhando com um material difícil de ser processado. Samplear significa montar. Não bastasse o campo de suas culturas em cruze, as duas companhias se permitiram contextualizações e relativizações históricas, econômicas e antropológicas sutilmente sinalizadas em objetos, adereços e figurinos, ou assumidamente viscerais nos corpos convulsos ou estatelados.
Afinal, estamos diante de diferentes níveis de violência na sociedade, como aquela exercida particularmente sobre o corpo da mulher, do cala boca machista ao fetichismo publicitário e cosmético.
As miniaturas de um carro e de uma boneca mimetizam infâncias emolduradas pelo tempo. Em alguma medida elas eram descondicionadas pela ternura acenada no desfecho.
São imagens políticas que ampliam horizontes e refutam as agendas conservadoras sobre as normatizações da sexualidade, desculpa para o preconceito.
Entre chegar a esse raciocínio e transpô-lo à cena a Téspis e a Periplo, companheiras de intercâmbio desde 2007, conseguiram friccionar heterogeneidades também artísticas. A terceira via é o que Esse corpo meu? mostra equilibrando-se sobre o fio da navalha. Risco superado até durante a apresentação para uma plateia lotada, sobretudo, por estudantes do ensino médio. Apesar de um ou outro espectador incauto, o público em geral fruiu uma obra artística inquietante, além do que é um alento notar a floração adolescente tolerando as diferenças.
.:. Escrito no âmbito do IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, de 7 a 16/8, em Itajaí. O jornalista viajou e trabalhou a convite da organização do evento.
Ficha técnica:
Direção: Diego Cazabat
Com: Denise da Luz e Max Reinert
Diretor assistente: Hugo De Bernardi
Dramaturgia: Processo colaborativo entre a Téspis Cia. de Teatro e Periplo Compañia Teatral
Ambientação sonora: Hedra Rockenbach
Figurinos: Cristine Conde e Denise da Luz
Costureira: Lélia Machado de Melo
Cenário e iluminação: Max Reinert e Diego Cazabat
Cenotecnia: Fer-Forge
Operação técnica: Jônata Gonçalves
Design gráfico: Max Reinert
Fotografias: Lote 84 e Emanuele Matiello
Produção executiva: Téspis Cia. de Teatro
Apoio: Projetos patrocinados através dos editais Iberescena e Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.