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Crítica

Sob o manto da singeleza

19.8.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Viviane Silva de Paoli

Em Itajaí

Sob a pele e o espírito da palhaça Mary En, a atriz Enne Marx abre o espetáculo despontando pela porta lateral do teatro, junto à plateia. Sobe ao palco, recebe o foco de luz e aciona um aparelho sonoro para brincar com um jeito diferente de anunciar os três sinais. O público formado por crianças e adultos (estes na maioria) não esboça reação.

Habituadas a atuar em hospitais do Recife e outras cidades pela ONG Doutores da Alegria, Enne Marx/Mary En e a colega Tamara Floriano, a palhaça Tan Tan, sabem cativar o paciente esquivo, muitas vezes acometido por doenças graves, e não demoram a dobrar o espectador de Itajaí nos primeiros instantes da sessão de Trueque, com a Cia. Animée, vinda da capital pernambucana.

Entre acepções possíveis, “cativar” pode designar encantamento ou sujeição. Esta passa ao largo. O trabalho da dupla é regido pela libertação do imaginário. O desafio é tecer uma relação de cumplicidade, como na delicada abordagem de uma menina da primeira fila que teve sua timidez respeitada e se permitiu interagir, a ponto de “ressuscitar” elefante.

A ponderação das diferenças está no princípio da troca. A expressão-título em espanhol possui larga apropriação no teatro de grupo, como nos processos artísticos do cinquentenário conjunto dinamarquês Odin Teatret e no brasileiro e balzaquiano Lume Teatro, de Campinas – este em ações artísticas e aquele em ações comunitárias e artísticas.

O manto da singeleza na criação da Animée não oculta a dimensão poética na construção de sentidos. Recursos da tradição circense como o timming da assim chamada palhaçaria – o nariz vermelho sutil e os números gregários de mágica, por exemplo – são evocados em sintonia com a força-motriz da musicalidade.

Uma das passagens mais inspiradas aborda o tabu da morte – tema naturalizado no ambiente hospitalar e apagado do convívio em casa, na escola ou no trabalho, a não ser que a “Caetana” dê o ar da graça

Tan Tan concentra as habilidades musicais no canto, no sopro e nas cordas, recorrendo ao trompete ou ao “mano” ukulele, entre outros instrumentos. Mary En encarrega-se mais do contato direto com o espectador, buscando a sintonia fina sem condescendência – porque o instinto da arte do palhaço está em instaurar ruídos, sempre. Ela também canta e toca a bem bolada engenhoca instrumental que a certa altura adentra a cena, construída a partir de canos de PVC e outros materiais – a lembrar os xilofones do grupo mineiro Uakti.

Sucede em Truque uma dramaturgia aberta à proatividade do público. Não há estritamente uma história, mas o encadeamento de quadros. A trupe reivindica e alcança uma simbiose que se dá mais no nível da predisposição à centelha lúdica contida em qualquer sujeito em formação, não importa o estágio da vida.

Uma das passagens mais inspiradas aborda o tabu da morte – tema naturalizado no ambiente hospitalar e apagado do convívio em casa, na escola ou no trabalho, a não ser que a “Caetana” dê o ar da graça. O fim e a despedida do bocal do trompete, ou o “biquinho”, ilustra a química entre as atrizes Enne Marx e Tamara Floriano. Elas elaboram a morte com o “fio da vida” que cai do teto e a ele é enganchada a tal pecinha para ascender aos céus. Posam de cerimoniosas, cantarolam e logo estamos todos rindo da situação hilariante e, como pano de fundo, indicativa da finitude reservada a todos.

A palhaça Mary En rege a cena do espetáculoViviane Silva de Paoli

A palhaça Mary En rege a cena do espetáculo

A apresentação evidenciou a condição ideal de ter o público mais próximo das atrizes. A distância frontal e a altura do palco pressupõem esforço multiplicado das palhaças para transpor o vão e atingir a terceira margem junto com o público.

Ambas coassinam a direção de arte com o diretor do espetáculo, Fernando Escrich. Os coloridos nada berrantes dos figurinos, dos cachos suspensos de luzezinhas, dos objetos e adereços conferem autenticidade ao carrossel infantil das palhaças que aludem à mala do ambulante plantado em praça pública para chamar a freguesia, à empanada do mamulengueiro mambembe e à lona circular que forra o tablado com uma estrela azul no meio. Saudações artísticas à cultura popular sem o saudosismo paralisante, dançando com os mestres para dar uns passinhos adiante com muito tutano e inquietude.

A Animée tem oito anos de estrada, é integrada ainda por Nara Menezes, a palhaça Aurhelia, e compõe com uma quarta atriz, Juliana de Almeida, a Baju, a banda As Levianas, portanto constituída só de palhaças. Outro braço das ações culturais é a realização do PalhaçAria – Festival Internacional de Palhaças do Recife, que vai para a terceira edição.

.:. Escrito no âmbito do IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, de 7 a 16/8, em Itajaí. O jornalista viajou e trabalhou a convite da organização do evento.

Ficha técnica:
Atrizes palhaças: Enne Marx (Mary En) e Tamara Floriano (Tan Tan)
Direção e trilha sonora: Fernando Escrich
Direção de arte: Enne Marx ,Tamara Floriano e Fernando Escrich
Iluminação: Luciana Raposo
Contrarregra: Eli Omena
Técnico de som: Carlos dos Prazeres
Criação e realização: Cia. Animée

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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