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Crítica

Zooteatralidade

20.8.2015  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Viviane Silva de Paoli

Em Itajaí

De Esopo a Charles Darwin, estendendo a Franz Kafka e George Orwell, a condição humana encontra na animalidade espelhamentos e contrastes que muito interessam aos campos da investigação e da criação em arte, filosofia e ciência. O espetáculo do coletivo mineiro Pigmalião Escultura Que Mexe explora esse terreno de maneira exasperante.

E isso é bom, alude à estirpe do autodeclarado “teatro desagradável” de Nelson Rodrigues, guardadas as proporções de que o drama aqui assenta sobre outros desejos: o das formas animadas. O boneco e a irracionalidade tocam feridas familiares ao bicho homem e suscitam uma espécie de zooteatralidade para tempos de crise de representatividade que, sabe-se, começa dentro de casa e ganha o espaço público.

A transversalidade artes cênicas/artes visuais coloca a família disfuncional em outro patamar de relação com o espectador que não o mero código psicológico. As situações de abuso, a hipertrofia dos vínculos e a violenta codependência desde a primeira infância constituem, por si só, um material emocionalmente explosivo.

O quadro de todos juntos vai a fundo nesses subterrâneos e se deixa acompanhar por arquiteturas visuais e sonoras indicativas de como o teatro de formas animadas tem evoluído em abordagens para o público adulto em certas praças brasileiras, caso da Belo Horizonte natal do Pigmalião, a mesma do Giramundo, núcleo paradigmático da pesquisa com bonecos em mais de quatro décadas.

Sem a âncora da palavra, o espectador é instigado a partir das sensações pictóricas e sonoras. Não há estrutura cenográfica, mas um desvanecer em penumbras e contraluz passíveis do lugar do inconsciente

A fisionomia suína realista é a tônica nos bonecos e nas máscaras em parte dos atores. Em alguns deles, a manipulação direta é uma extensão do próprio corpo, fusão que lembra a figura mitológica do minotauro: em vez da cabeça de touro, temos a cabeça de porco e o tronco confeccionados. Da cintura para baixo, carne e osso.

Apesar de fonte de alimento apreciada em muitas mesas, o porco é comumente associado à imagem negativa da sujeira, do mau-caratismo. Em cena, o instinto selvagem que pauta a relação do macho, da fêmea, das crias e dos agregados está longe de digestível. Sem a âncora da palavra, o espectador é instigado a partir das sensações pictóricas e sonoras. Não há estrutura cenográfica, mas um desvanecer em penumbras e contraluz passíveis do lugar do inconsciente.

Cena do espetáculo do coletivo Pigmalião que inova em formas aniimadasViviane Silva de Paoli

Cena do espetáculo do coletivo Pigmalião que inova em formas aniimadas

É um espanto que o coletivo ignore em sua ficha técnica o artista ou os artistas responsáveis pelo desenho sonoro poderoso na indução ao raciocino da fala por meio de ruídos e grunhidos, ao que parece programados para o tempo da ação dos manipuladores e, às vezes, incidentais. A sonoridade onisciente – algum grau de silêncio ajudaria a processar o dilacerar constante – corrobora tendência do roteiro a redundar sequências como o ato de amamentar; o atrito pai/filho, mãe/filha; e o espocar do flash da máquina fotográfica simulado pela iluminação.

Plena em conteúdos arquetípicos, ímãs primais, a dramaturgia não-verbal de Eduardo Felix (codiretor da obra com Igor Godinho) atinge seus melhores momentos quando lança mão de percursos e quebras que transcendem os níveis patológicos expostos. Afinal, o que fazer depois de emergir os desvios dos animais demasiado humanos desse clã? Felizmente, não há saídas morais ou prejulgamento na elaboração ficcional. Constata-se e celebra-se a dança das linguagens sem prescrição.

Moram lá nos interstícios da autofagia e da visão da mulher como máquina procriadora – sob a complacência secular das sociedades matriarcais – o pensamento estético desestabilizador que o Pigmalião produz. Embrião de uma cena curta (15 minutos) intitulada O quadro de uma família (2013), o espetáculo O quadro de todos juntos (2014) exemplifica o interesse do coletivo por caminhos desbravadores em oito anos de trabalho e pesquisa.

Simbiose entre criadores-manipuladores e bonecosViviane Silva de Paoli

Simbiose entre criadores-manipuladores e bonecos

Em tempo: na mitologia grega, o rei Pigmalião é um escultor exímio cujo amor por uma de suas criações, Galateia, convenceu a deusa Afrodite a atender ao seu pedido e dar vida à mulher outrora de marfim com quem ele finalmente se casou e teve dois filhos. Ou pode ser lido também como o movediço terreno da idealização… O septeto da criação em análise manipula os bonecos com um registro que pode dar a impressão de “grosso”, numa passagem ou outra, mas isso deve estar correlacionado à imperfeição como estratégia, dadas as distorções vasculhadas.

.:. Escrito no âmbito do IV Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, de 7 a 16/8, em Itajaí. O jornalista viajou e trabalhou a convite da organização do evento.

Ficha técnica:
Autor: Eduardo Felix
Direção: Eduardo Felix e Igor Godinho
Com: Aurora Majnoni, Cora Rufino, Eduardo Felix, Liz Schrickte, Mauro Carvalho, Mariana Teixeira e Marina Arthuzzi
Criação de bonecos: Eduardo Felix
Construção de bonecos, cenografia e adereços: Aurora Majnoni, Cora Rufino, Diogo Netto, Eduardo Felix, Igor Godinho, Leonardo Martins, Liz Schrickte, Michelle Campos, Mauro Carvalho, Mariana Teixeira, Hugo Honorato, Douglas Pêgo e Camila Polatscheck
Figurinos: Maria do Céu Viana
Iluminação: Igor Godinho

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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