Crítica
21.11.2015 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Francisco Cruz
Angélica Liddell diz que “não existe um teatro violento. Mas a violência real”. O que essa reconhecida escritora espanhola leva às suas peças não é senão uma reação a essa violência concreta. Foi essa repugnância que a inspirou a criar espetáculos como Yo no soy bonita, o mais polêmico título da última Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), e Hysterica passio, atualmente em cartaz no Espaço Parlapatões.
Inédito no País, o texto, que merece montagem da Teatro Kaus Cia. Experimental, integra uma trilogia da dramaturga, o Tríptico da Aflição, na qual tematiza os horrores da infância. Aqui, a história do menino Hipólito, decidido a vingar-se dos abusos que sofreu dentro de casa: tem 12 fraturas pelo corpo, a mãe o penetrava com objetos ou com o próprio braço, o pai assassinou mulheres e as enterrou no jardim.
Como em toda a obra de Liddell, o componente performático atravessa o drama. A Alessandro Hernandez, que encarna tanto o protagonista infantil como a figura paterna, cabe o difícil equilíbrio entre essas linhas de força. Não se trata apenas de passear entre dois personagens. Cabe-lhe criar a cena, mas também ser seu comentador. Oferecer uma visão interpretativa, e ser também a chave para que se desconfie dela.
É o expurgo de um núcleo familiar problemático, da falta de amor da mãe e do marido
Não existem leituras unívocas quando se trata do teatro dessa dramaturga. A tirania familiar, a ‘imposição’ do afeto entre pais e filhos são ideias com as quais se organiza o jogo. O que convencionamos denominar como pós-dramático não se refere à ausência do texto. Existe um inegável deleite em sorver as palavras de Liddell, mas o que vai ao palco transcende a dimensão textual e convoca outras artes. Mais que pano de fundo ou ilustrações das ações, as imagens criadas manifestam uma teatralidade autônoma. Cabe notar que essa é a segunda visita da companhia à obra de Liddell, de quem já havia montado O casal Palavrakis.
Em sua encenação, o diretor Reginaldo Nascimento constrói um espaço cênico nada realista. Como se presenciássemos uma releitura contemporânea do circo de horrores, modalidade de espetáculo, muito em voga no século 19, em que se seres humanos deformados ou portadores de alguma deficiência eram apresentados como atração.
Como um desses seres bestificados, a enfermeira Thora (Amália Pereira), mãe de Hipólito, surge dentro de uma jaula. É o expurgo de um núcleo familiar problemático, da falta de amor da mãe e do marido. E, como já denota o título, Hysterica passio, uma menção às mulheres diagnosticadas como histéricas por Freud e Martin Charcot.
A violência que Thora inflige ao filho é manifestação da cadeia de agressões de que ela mesma foi vítima (ainda que tal constatação não se coloque nunca como justificativa). O trágico irrompe nesse drama. Uma cadeia irrefreável de acontecimentos. Emaranhado de impulsos destrutivos que não respeita nossas ilusões de uma humanidade guiada pela razão.
.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C6, em 21/11/2015.
Serviço:
Onde: Espaço Parlapatões (Praça Franklin Roosevelt, 158, região central, tel. 11 3258-4449)
Quando: Sábado e domingo, às 20h. Até 13/12
Quanto: R$ 40 (só hoje, dia 21/11, e amanhã, 22, pague quanto quiser)
Ficha técnica:
Texto: Angélica Liddell
Tradução: Aimar Labaki
Direção: Reginaldo Nascimento
Com: Alessandro Hernandez e Amália Pereira
Realização: Teatro Kaus Cia. Experimental
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.