Crítica
O choque de civilizações é uma teoria segundo a qual os conflitos deste século 21 seriam pautados por identidades culturais e religiosas. Foi o que o economista norte-americano Samuel P. Huntington (1927-2008) projetou em meados da década de 1990. Há quem lhe dê razão, por exemplo, considerando as ações terroristas pelo mundo. Como as reivindicadas por radicais islâmicos e respondidas com a mesma moeda por adversários islamófobos. Em alguma medida, a Companhia Nova de Teatro, de São Paulo também proporciona sua visão de choque de civilizações em Caminos invisibles… La partida (2011).
De um lado, o espetáculo acolhe a ancestralidade inca mediada pela presença de músicos ou de atores, a maioria mulheres de ascendência boliviana, sendo estas, intuimos, não-atrizes. De outro, atrita a representação desse material simbólico arcaico (e vivo) com a realidade do mundo ocidental, notadamente o Brasil contemporâneo da indústria têxtil que abastece grifes por meio de oficinas de costura exploradoras da mão de obra barata de imigrantes latino-americanos submetidos a condições de trabalho similares às da escravidão.
Trata-se de cruzamento temático urgente e ousado. Mas as soluções artísticas parecem não alcançar as sínteses desejadas.
Para mediar esses dois ângulos – o da tradição e o da usurpação – opta-se por convenções audiovisuais e midiáticas que desconectam da pulsão ritual
A cultura boliviana surge caracterizada pela essência de sua musicalidade com a presença do conjunto Jach’a Sicuris de Italaque, dedicado a manifestações folclóricas. Soma figurinos típicos, a expressão da língua quéchua, a fisionomia dos povos andinos. Essa dimensão antropológica é acolhida em sua natureza ritualística, sem atalho para uma operação teatral mimética. É o que a dramaturgia e a encenação indicam no primeiro quarto de hora. Até o referencial autóctone ser abduzido pelo curso narrativo que adentra a historia propriamente dita. Passagem para a estrutura ficcional em que uma das nativas vai se juntar a compatriotas que sobrevivem na capital paulista.
Para mediar esses dois ângulos – o da tradição e o da usurpação – a dramaturga, diretora e atriz Carina Casuscelli opta por convenções audiovisuais e midiáticas que desconectam da pulsão ritual que abriu alas. Conceitos como manipulação e maniqueísmo aparecem tanto no abuso da mão de obra feminina como na estratégia dos criadores em introduzir um terceiro olho nessa história, a câmera da cobertura televisiva encarnada em seus piores tons, sensacionalista e superficial.
O roteiro vaga pela porção submundo da cadeia da indústria da moda. O dono do negócio clandestino, também boliviano, dá as “boas-vindas”, mostra logo as regras duras e humilhantes. A cenografia do local em que as mulheres trabalham ganha tratamento estético coerente, ao fundo. Um filó deixa transparecer as máquinas e as costureiras em diferentes níveis, mal iluminadas, num retrato fiel das insalubridades. Na sequência, a desilusão da boliviana recém-chegada com a precariedade cotidiana; o fragrante da polícia na oficina clandestina com uma equipe de TV a tiracolo, a mesma que, em outro quadro, vai entrevistar uma consultora de moda e difundir suas afetações de celebridade.
Esse desvio realista vem a reboque de atuações frágeis. Não por parte daqueles que não têm formação artística, porque escolha clara e fundamental no projeto, mas pelos demais profissionais do elenco, como na intervenção do aparato de segurança federal na hora de ingressar no país. As inserções televisivas esterelizam os potenciais evidenciados na exposição dos universos contrastantes. O caráter performativo é esboçado, mas não se cumpre. Mesmo o aporte documental dos vídeos de Cristian Cancino e Giuliano Conti acabam subaproveitados, um borrão de imagens projetadas que não dão liga, por mais que soem abstratas – pelo menos foi assim na derradeira sessão realizada no Centro Cultural da Juventude, o CCJ, na zona norte, endereço bem programado pela organização da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, justamente a região da cidade que abriga uma feira dominical da comunidade boliviana, na Praça Kantuta, próximo dali.
Com direção artística de seu cofundador, Lenerson Polonini, Caminos invisibles… La partida oferece ao espectador um conteúdo político de impacto. Uma estrutura textual que assume a perspectiva histórica e comunga os saberes da cultura inca. Uma encenação que a incorpora por meio de imigrantes do Brasil de hoje, dando margem ainda para se pensar a crise de refugiados aqui e alhures. A transposição à cena, porém, não contorna precariedades que arma para si.
.:. Escrito no âmbito da 10ª Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.
.:. Leia crítica de Pollyanna Diniz sobre Caminos invisibles… La partida no blog Satisfeita, Yolanda?.
Ficha técnica:
Direção e dramaturgia: Carina Casuscelli
Direção artística e iluminação: Lenerson Polonini
Com: Carina Casuscelli, Cléo Moraes, Rosa Freitas, Roselaine Araújo, Giuliano Pallos e Juan Cusicanki
Núcleo Andino: Richard Rivera, Freddy Wara, Verônica Yjura Quispe, Oscar Condori, Remy Quispe, Sonia Maribel, Janete Aline, Brayan Jorge, Victor Barrientos, Cesar Chui e Kelly Dav
Participação especial: Conjunto Autoctono Jach’a Sicuris de Italaque
Figurinos: Carina Casuscelli
Vídeos e documentação audiovisual: Cristian Cancino e Giuliano Conti
Direção musical: Wilson Sukorski
Concepção espacial e produção: Carina Casuscelli e Lenerson Polonini
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.