Crítica
A dramaturga, atriz e pesquisadora Nina Caetano dispensa a função de porta-voz que fala pelo outro, em geral um sujeito institucionalizado, e transforma a mudez em ato ressonante. Misto de denúncia e metáfora, a performance O espaço do silêncio prioriza a leitura em vez da palavra falada. Não é ela quem lê, mas os outros a quem o acaso bordar com a mulher vestida de vermelho no meio da tarde de um dia útil na Praça da República, no centro paulistano, dentro da II Bienal Internacional de Teatro da USP.
Nas mãos de Nina Caetano ou dispostos sobre um lençol branco vemos e lemos um manifesto impresso (igualmente em vermelho) numa folha de papel sulfite. Trata-se de um relato categórico apoiado em estatísticas e noticiário policial. Há ainda micro-obituários na forma de papeizinhos com três a quatro linhas manuscritas em referência às mortes intencionais – mais precisas assim que o capcioso “mortes passionais”, a protocolar certa fatalidade às vítimas, como se condenadas a um destino do qual não poderiam escapar.
O que a performance ‘O espaço do silêncio’ pretende e dá conta é intervir no imaginário e na realidade sedimentados a sangue’
A estratégia chama à consciência individual um massacre cotidiano e naturalizado. O público é situado acerca da epidemia de assassinatos de mulheres. Um exemplo. No Brasil, a sociedade não reage com o devido assombro aos 179 relatos/dia de violência anotados no primeiro semestre de 2015 pela central de atendimento da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Inércia à qual se indigna a atriz e cofundadora do agrupamento mineiro Obscena.
À primeira vista, o tipo físico pode induzir à fragilidade para quem a vê pela primeira vez no calçamento da movimentada praça. Logo o observador atenta à força expressiva do olhar e dos gestos. O vestido vermelho e o turbante de mesma cor contrastam o lençol branco que usa para forrar o chão. Durante cerca de uma hora a atriz resistirá ao vento forte, pés desnudos, para delimitar O espaço do silêncio, uma manifestação cênica centrada na violência endêmica praticada por “feminicidas”, em geral maridos, noivos, namorados, “ex”, clientes, etc.
É preciso aproximar-se, ir de encontro à ação e ultrapassar as entrelinhas sonoras do ambiente urbano que a tudo concorre na disputa de atenção. O pedestre é tocado pelo movimento de colocar-se in loco, tornar-se ponte para a atriz que expõe a brutalidade por meio de arte incisiva. Sua boca surge tapada por fita adesiva vermelha afixada em cruz. O olhar oscila desolação e agudeza.
Abdicar da convenção da palavra dita ao ar livre inscreve uma dramaturgia de sendas. A sequência do programa soa rumorosa. Colar a fita adesiva sobre os lábios. Exibir o texto-base tal mensageiro em tragédia grega, porém em silenciosidade. Despregar a cruz vermelha da boca. Serrar pedaços da fita com os dentes. Afixar as cruzes no tecido que aos poucos sugere um cemitério cujas lápides correspondem aos papeizinhos também adesivos e enlutados.
Aos homens e mulheres que se abriram à coreografia e seus signos verbais, que não de viva voz, a gestualidade sutil serviu de bom guia de navegação. Uma espectadora leu parte do texto e inquiriu a performer a respeito de algum material complementar, um folheto que “explicasse” mais sobre o que ela acompanhou. Insistiu tanto até que uma pessoa da organização aguardou o momento certo para conversar com ela de lado e contextualizar sobre a dimensões artística e sociológica da proposta. Um espectador, visivelmente alterado, impacientou-se e abordou Nina Caetano com assuntos desviantes, alheios ao que se passava em sua frente. Até que a atriz o tomasse pelas mãos, delicadamente, conduzindo-o até o manifesto, em vão, pois o homem demonstrou a impossibilidade de concentrar-se para ler naquele momento.
Teve ainda a mãe com o carrinho de bebê, a adolescente de shorts e tênis, a mulher que carregava sacolas de compra, entre outras. E teve um homem que vive na rua. Ele passou rente à ação e parou apenas para perguntar ao jornalista do que se tratava. Bastou breve conversa ao pé do ouvido para reconhecer a seriedade do tema e revelar que, em criança, ele via a mãe apanhar constantemente do pai.
As sequelas atravessaram gerações e o que O espaço do silêncio pretende e dá conta é intervir no imaginário e na realidade sedimentados a sangue.
PS: A performance foi apresentada em frente ao prédio da Secretaria Estadual da Educação, na Praça da República, dias após o movimento da ocupação das escolas – em protesto contra o fechamento de algumas delas – expressar nas ruas a atuação singular de alunas na linha de frente das manifestações reprimidas pela Polícia Militar.
Ficha técnica:
Criação e atuação: Nina Caetano, do Obscena Agrupamento
.:. Escrito no contexto da II Bienal Internacional de Teatro da USP (27/11 a 18/12), em ação da DocumentaCena – Plataforma de Crítica.
A DocumentaCena – Plataforma de Crítica articula ideias e ações do site Horizonte da Cena, do blog Satisfeita, Yolanda?, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais e do site Teatrojornal – Leituras de Cena. Esses espaços digitais reflexivos e singulares foram consolidados por jornalistas, críticos ou pesquisadores atuantes em Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. A DocumentaCena realizou cobertura da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp (2014 e 2015); do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília (2014 e 2015); da Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, em São Paulo (2014 e 2015); e do Festival de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte (2013).
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.