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Reportagem

A ‘missa pagã’ na cena de Nachtergaele

9.1.2016  |  por Mateus Araújo

Foto de capa: Marcos Hermes

Quando Matheus Nachtergaele está no palco, ele reza uma reza só dele. Mas reza em prece com todos que estão ali, cercando-o de olhares, contemplação e entrega. “O que eu amo no teatro não é um autor ou um gênero. O que me interessa e que eu gosto, desde sempre, nas peças que fiz ou nas que vejo, é a percepção de estarmos rezando sem Deus”, diz o ator.“Pode ser comédia ou tragédia, mas é preciso que haja uma oração laica. O que o teatro faz de melhor é ser uma missa pagã.”

É Nachtergaele quem abre a 22ª edição do Janeiro de Grandes Espetáculos, com o monólogo Processo de conscerto do desejo (se escreve com “sc”), encenado nesta sexta (8) e sábado (9), sempre às 21h. Dentro do Teatro de Santa Isabel, o ator reencontra sua mãe, Cecília, que morreu quando ele ainda tinha três meses de idade. Reencontra pelos versos escritos pela mulher que lhe trouxe ao mundo e que habita dentro dele em memórias e sentimentos. “Meu autor é minha mãe. E o ator de minha mãe sou eu”, afirma. Para ele, a peça “joga luz no escuro”. Com ela, Nachtergaele diz “o que era segredo”. “Depois disso, não tenho mais segredo”, brinca ele.

“Não sou nada místico. Isso tem uma visão psicanalítica e estou usando o que tenho de mais íntimo para falar das dores de todos nós. E não é para chorar, é para sorrir. Porque a vida é assim.” Conscerto nasceu em Ouro Preto, Minas Gerais, em julho do ano passado. Convidado para abrir um festival naquela cidade, o ator decidiu realizar um desejo antigo e narrou em primeira pessoa as poesias de sua mãe. “Chamei Luã Belik (que toca violão) para me acompanhar. Ele colocou músicas que gostava de tocar e eu sugeri outras que mamãe gostava”. O espetáculo, depois, ficou em cartaz no Rio de Janeiro, no Teatro Poeirinha, e pela primeira vez sai do “útero” para chegar a outra cidade.

Busco a sensação e a certeza de que o palco é último lugar no mundo que sobrou para o ser humano rezar sem Deus

De talento reconhecido e admirado em todos os breus desse Brasil, sobretudo pelo seu trabalho na TV e no cinema, Matheus Nachtergaele iniciou, porém, sua trajetória no teatro com o diretor Antunes Filho, aos 20 anos. “Vivi uma experiência radical em 10 meses no CPT (Centro de Pesquisa Teatral, em São Paulo), estudando Nelson Rodrigues. Íamos montar Paraíso Zona Norte, peça de Antunes que unia Os sete gatinhos e A falecida. Ele queria fazer a peça pelo viés da tragédia, e para isso trabalhava, além do universo rodriguiano, o butô e a física quântica. Era uma grande experimento”, conta.

“Por ser muito novo, eu sai da peça antes da estreia, o que obviamente mexeu comigo, mas eu entendo. Eu era muito menino mesmo. Mas a experiência foi fundamental, porque não tinha feito nada em teatro e comecei pegando logo Nelson, Kazuo Ohno e física. Não comecei com Stanislavski e Grotowski, que só fui estudar na Escola de Arte Dramática depois [EAD-USP]. Naquele momento, estava muito puro, me entreguei bastante ao Antunes, e o que mais me marcou foi o contato com o butô”, lembra o ator.

Para Matheus Nachtergaele, cada personagem vivido por ele deve pertencer a uma coerência pessoal de falar do povo brasileiro que vive sob pressão – “ou é um traficante, ou é o amarelinho safado do Grilo, ou é uma travesti de rua, ou é um revolucionário que sequestro embaixador americano”. “Sou um ator que trabalho na TV e no cinema, me adapto às realidades, mas sempre com um ponto de vista: como vou depor pessoalmente? apesar do sotaque, da sexualidade, da classe social, da nacionalidade do personagem e até do sexo do personagem – porque eu já fiz mulheres – sempre sou eu e sempre passa por mim. O momento crucial disso é decidir se devo fazer ou não um projeto. Porque eu faria isso? eu quero falar isso? Quero, então vamos; não, não quero, é um emprego, então não vamos. Se você olhar meu trabalho, como um todo, vai ver que tem esse fio, essa coerência, um tipo de escolha”, explica Matheus Nachtergaele. “No teatro, seguindo essa linha, busco a sensação e a certeza de que o palco é último lugar no mundo que sobrou para o ser humano rezar sem Deus.”

Do CPT, da experiência com Antunes Filho, Nachtergaele enveredou para novas descobertas e experimentos nas artes cênicas. Fundou em São Paulo, com outros artistas, o Teatro da Vertigem, um dos mais relevantes e potentes grupos brasileiros, com o qual o ator ganhou o Prêmio Shell, em 1996, na peça O livro de Jó. À margem do que era feito em São Paulo naquela época e instigados a criar novas percepções cênicas, os atores da Vertigem imergiram em um teatro de rompimento.

“Naquele momento que a Vertigem aconteceu, estávamos todos na condição de jovens pessoas de teatro. Existia o esgotamento do palco italiano (o palco tradicional); existia em São Paulo, na época, uma geração muito ligada ao teatro-dança. Nossos contemporâneos eram quase todos atores-bailarinos”, recorda. “Encenamos em igreja, hospital e cadeia. Antonio (Araújo, diretor do Vertigem) queria explodir com o palco italiano. Queria lugares que mexessem com a história emocional das pessoas.”

E são essas sensibilidades e experiências únicas do teatro que Matheus Nachtergaele busca até hoje nas suas “missas pagãs”. Foi isso que o guiou nas peças da Vertigem; n’A Gaivota (peça que ele fez com Fernanda Montenegro); na Controvérsia, com Paulo José; e em Woyzeck, a última peça que o ator fez antes de Processo de conscerto do desejo. Sensibilidades e experiências únicas e particulares que guiam o ator em mais essa missa pagã que ele celebra conosco, plateia, no Recife.

'Por favor, continue (Hamlet) se passa num tribunalMagali Girardin

‘Por favor, continue (Hamlet) se passa num tribunal

“Eu acho que a gente conseguiu fazer milagres em cima da hora”, diz a produtora e atriz Paula de Renor. Um dos nomes da tríade à frente do principal festival de teatro de Pernambuco, o Janeiro de Grandes Espetáculos, Paula e seus companheiros Carla Valença e Paulo de Castro penaram, mas conseguiram realizar o evento, cuja programação foi anunciada em meados de dezembro.

“De última hora, o BNDES entrou como patrocinador. Com o dinheiro, conseguimos fazer o circuito de música e trazer espetáculos que queríamos”, conta Paula. O evento com 36 espetáculos custou R$ 700 mil e tem ainda patrocínios da Prefeitura do Recife e das secretaria de Cultura e Turismo do Estado.

Pelo segundo ano consecutivo, o Janeiro tem que se desdobrar para dar conta de uma lacuna deixada pelo Festival Recife do Teatro Nacional (FRTN), com relação à programação de montagens vindas de outros estados. Mesmo tendo acontecido em 2015, numa edição extraordinária, o FRTN, realizado pela Prefeitura do Recife, por falta de verba, deixou de lado sua característica de apostar em grandes companhias nacionais.

Nesta edição, o Janeiro de Grandes Espetáculos terá eixo curatorial com tema bem definido: montagens mais politizadas são os destaques. “O que a gente pensou muito foi trazer espetáculos que tivessem a ver com momento político do Brasil. Falamos muito do poder e da poesia, que estão na essência dos espetáculos vindos de fora”, analisa Paula. “Quando a gente fala do poder é daquele de quem manipula a informação, o conflito da justiça, que inverte os sentidos de real ou imaginário, o que encontramos em peças como Por favor, continue (Hamlet)”, exemplifica. O espetáculo do espanhol Roger Bernat e do holandês Yan Duvyendak participa do festival graças ao apoio da Acción Cultural Española em seu Programa de Internacionalização da Cultura Espanhola (PICE).

O foco na poesia do evento tem duas atrações: Inutilezas (RJ), com Bianca Ramoneda e Gabriel Braga Nunes, sob direção de Moacir Chaves, com base na obra do poeta Manoel de Barros; e Maria que virou Jonas ou A força da imaginação, da Cia. Livre (SP), dirigida pela sempre instigante Cibele Forjaz, questionando o que se entende por identidade.

.:. Publicado originalmente no blog Terceiro Ato, do Jornal do Commercio, em 8/1/2016.

Formou-se em Jornalismo pela Universidade Católica de Pernambuco e cursa o mestrado em Artes Cênicas na Universidade Estadual Paulista (Unesp), desenvolvendo uma pesquisa sobre masculinidade no teatro, com foco na obra do Grupo Magiluth. Escreve para a Folha de S. Paulo, UOL Entretenimento e revista Continente. Foi repórter de cultura do Jornal do Commercio, de 2011 a 2016, e titular do blog e da coluna Terceiro Ato. Integrou o núcleo de pesquisa da Ocupação Laura Cardoso (2017), do Itaú Cultural. Coordena a equipe de comunicação da SP Escola de Teatro. E é membro da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IACT).

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