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Crítica

A subversão em Maria: dizer é desobedecer

1.2.2016  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: João Caldas Fº

Uma mulher e tudo o que ela não disse ao longo da vida. Em O testamento de Maria, em cartaz no Sesc Pinheiros, Denise Weinberg assume o icônico papel de mãe de Jesus Cristo e o ímpeto de revelar verdades submersas. No texto do irlandês Colm Tóibín, com direção de Ron Daniels, Maria vem não para reiterar a cristalizada visão beatificada que dela guardamos. Ao contrário, quer embaralhar o senso comum.

Após ver o filho assassinado, Maria vive exilada, constantemente vigiada por homens que pretendem assegurar não apenas a sua segurança física, como também o seu silêncio. Ou, talvez, queiram assegurar que ela encontre as “palavras certas”, aquelas que confirmem a narrativa que estão prestes a escrever.

Atriz encontra elementos suficientes para comandar a cena e desconstruir, usando apenas corpo e palavras, o luto palatável e sereno que nos foi vendido como verdade

Em meio aos rascunhos dos evangelhos, Maria aproveita a breve saída de seu guardião para, finalmente, contar a sua história. Boa parte do ideal feminino de silêncio, recato e resiliência – muito mais em voga hoje do que gostaríamos de admitir – repousa ainda nessa imagem. A Maria que Denise Weinberg apresenta ao público, contudo, tem ódio. Ela não é só perdão e generosidade. Maria maldiz aqueles que a desagradam. Maria sabe ser irônica, tece comentários cheios de sagacidade e sarcasmo. E tem medo. Maria pode ser covarde. E bem menos magnânima do que em nossa imaginação.

Versão do romance homônimo de Tóibín, a peça estreou na ultracatólica Dublin. Depois, foi remontada com sucesso em Londres e Nova York. Pelas descrições e fotografias, é possível intuir o cenário grandioso que acompanhava essa encenação estrangeira – dado que contrasta com a proposta cênica brasileira: restrita a um tablado e a uma cadeira de madeira.

Diferenças à parte, é uma constante que as apreciações sobre a obra, aqui ou no exterior, recaíam, essencialmente, sobre dois pontos: o poder do texto e as oportunidades que oferece à intérprete. Na austeridade do palco quase nu, delineado por Ron Daniels, Denise Weinberg encontra elementos suficientes para comandar a cena e desconstruir, usando apenas corpo e palavras, o luto palatável e sereno que nos foi vendido como verdade. A fúria e a revolta que a atriz traz em sua composição contam de uma dor que não se presta a uma fantasia edificante. Mesmo que essa fabulação tivesse um propósito muito claro: a edificação de uma nova religião. Para ela, o sacrifício não valeu a pena.

Ao ser pregado na cruz, seu filho gritava com fúria. Estava aterrorizado. Não aceitava a morte com resignação. E a sua dor soava tão insuportável que Maria caiu na tentação de se esquecer um pouco dele. Só esse instante de esquecimento seria capaz de salvá-la da completa aniquilação. Enquanto Jesus agoniza, ela quase se distrai e gasta o tempo a contemplar um abutre a eviscerar os coelhos que lhe eram oferecidos.

Denise Weinberg usa  corpo e palavras contra o luto palatável João Caldas Fº

Denise Weinberg atua no drama do irlandês Colm Tóibín

Outro ápice – do drama e do desempenho da atriz – está na visão particular da mãe sobre seu filho. Alguém que ela reluta em enxergar como enviado de Deus. Rememorado com doçura em seus gracejos infantis. Evocado com certo rancor, quando conta como ele se deixou seduzir pela fama e pela vaidade, deslumbrado com o sucesso. Tão carente de aceitação quanto qualquer homem.

Dizer é desobedecer. Contar a sua própria versão da história é, de muitas maneiras, recusar o lugar de ser silente e dócil que lhe estava destinado. Tóibín entrega a essa personagem uma voz que é, em essência, trágica. E de uma tragicidade intimamente ligada ao feminino. Ainda que esse tenha sido um aspecto negligenciado por décadas pelos estudiosos, a forte presença de mulheres nas tragédias é um dado que não escapa às novas análises e, certamente, não escapou ao autor irlandês.

As mulheres de Eurípedes e Sófocles são seres de ação, criaturas imprudentes. Medeia, Antígona, Electra, Hécuba: Poderiam simbolizar o exato oposto do comedimento e da razão. Surgem, tal qual essa Maria, como representações de alguma força natural – avassaladora e incontrolável.

.:. Publicado originalmente em O Estado de S.Paulo, Caderno 2, p. C5, em 29/1/2016.

.:. Leia a crítica de Valmir Santos para o mesmo espetáculo.

Serviço:
O testamento de Maria
Onde: Sesc Pinheiros. Auditório (Rua Paes Leme, 195, São Paulo, tel. 11 3095-9400)
Quando: Quinta a sábado, às 20h30. Sessões extras em 6 e 13/2, sábados, às 18h30. Todas esgotadas.
Quanto: R$ 7,50 a R$ 25

Ficha técnica:
Texto: Colm Tóibín
Tradução: Marcos Daud e Ron Daniels
Concepção, adaptação e direção: Ron Daniels
Com: Denise Weinberg
Música original e execução ao vivo: Gregory Slivar
Cenografia: Ulisses Cohn
Figurino: Anne Cerruti
Iluminação: Fábio Retti
Curadoria artística: Ruy Cortez

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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