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Crítica

Em nome de Maria

2.2.2016  |  por Valmir Santos

Foto de capa: João Caldas Fº

No Brasil, a montagem de uma peça centrada em passagem da vida da Virgem Maria dificilmente escaparia aos traços barrocos da Igreja Católica, como o ornamento, a exuberância e a compaixão. Não é o que acontece em todas as frentes de O testamento de Maria, direção de Ron Daniels para o monólogo do irlandês Colm Tóibín, interpretado por Denise Weinberg. O desígnio da dessacralização é alcançado com palavras críveis e no esquadrinhar de cenas e sonoridades, de modo a gerar imagens e inquietudes na cabeça do espectador mesmo se minimamente influenciado pela cultura judaico-cristã.

O princípio da sutileza formal rege as partituras de corpo e voz da atriz. Ela pisa com firmeza o pequeno tablado de madeira em que explora o território livre da imaginação, ao mesmo tempo racional e suave no dueto cênico com o compositor Gregory Slivar. Rodeado por instrumentos e objetos na margem esquerda do espaço, o artista executa a música que vira texto, respiração e silêncio nessa narrativa épica e, em muitos sentidos, sumária.

Se a fé preconiza verdades seculares por meio da representação da trindade Pai, Filho e Espírito Santo, o que temos aqui é a sustentação de uma quarta voz historicamente abafada

A subversão ao dogma está no cerne do texto de Tóibín, escritor de 60 anos com meia-dúzia de livros traduzidos no Brasil, inclusive O testamento de Maria, cuja origem é o texto dramático encenado em Dublin em 2011 e editado no ano seguinte à maneira de romance.

Ao rasgar o véu da pureza que envolve a figura da “Mãe do Salvador”, o autor a humaniza com a sagacidade da mulher do século XXI ciente dos malefícios do patriarcado sobre a humanidade. Um legado que vem, pelo menos, desde que Deus retirou uma lasca da costela de Adão e o fez senhor do lugar de Eva ao sol, segundo o criacionismo bíblico.

Em vez da imaculada, Denise Weinberg projeta a clareza de consciência da personagem que prefere os fatos às versões. Se a fé preconiza verdades seculares por meio da representação da trindade Pai, Filho e Espírito Santo, o que temos aqui é a sustentação de uma quarta voz historicamente abafada e ousadamente redimensionada por Tóibín.

A esfera do indivíduo vem combinada a outros campos da cultura, da religião e da política. Em seus últimos momentos de vida em Éfeso, numa Turquia submetida a autoridades romanas e judaicas, Maria se vê sitiada em sua casa, freqüentada, a contragosto dela, por “guardiões” do homem de Nazaré crucificado não faz muito tempo. Eles se dizem amigos de Jesus e tentam convencê-la do legado do filho, seus milagres e promessa de retorno; ávidos para registrar a gênese do Cristianismo, religião divisora do antes e do depois no curso dos séculos.

O dueto cênico por Denise Weinberg e Gregory SlivarJoão Caldas Fº

O dueto cênico por Denise Weinberg e Gregory Slivar

Dirigindo-se ao terceiro olho do público, essa Maria faz a arguição de aspectos paradoxais nos Evangelhos que iriam constar do Novo Testamento. Pondera seu testemunho da relação e das práticas de alguns dos apóstolos, os “rapazes” de virtudes nem tão assim, com o “filho de Deus” (e não dela, que o percebe de carne e osso, idiossincrasias e fragilidades). É raciocinando assim, diretamente, sem o jargão bíblico, que o discurso potente dessa mulher diz muito à atualidade de múltiplos fundamentalismos. Maria, diga-se, é um pouco esculpida à imagem da mitologia grega, fonte declarada do autor (Kassandra, Antígona e Electra).

Nas mãos da atriz de reconhecida devoção ao palco – mantendo treinamento e técnica invisíveis na cena –, a personagem carrega ainda vestígios poéticos da Catarina de A megera domada, de Shakespeare, e da Neusa Sueli de Navalha na carne, de Plínio Marcos, papeis que honrou junto ao Grupo Tapa. Tempos fluídos observáveis na lascívia da passagem da língua sobre o lábio; na tempestividade física quando a personagem lembra um encontro festivo em terra de Canaã; ou no ceticismo derrisório ao descrever a ressurreição de Lázaro.

Com o desenho de luz de Fábio Retti a pintar seu rosto e sua aura, contrastando a nebulosidade da parede ao fundo, a atuação de Denise Weinberg parece encontrar um firmamento próprio dos deuses de outros quadrantes dessa arte. As convicções de Maria e o povoamento de outras vozes iluminam o ofício do teatro. Ao que a encenação de Ron Daniels corresponde como se colocasse tudo sobre um tapete, sugerindo a síntese que Peter Brook contemplou em sua obra.

O diretor brasileiro radicado nos EUA aprofunda o abraçamento do espaço vazio concentrando a cenografia numa cadeira e um calhamaço (“manuscritos”) ao chão, na concepção de Ulisses Cohn. O desnudamento valoriza paredes laterais e fundo da caixa preta, como jogou no recente Repertório Shakespeare (Macbeth e Medida por medida). Aqui, o tema do sagrado pelo avesso, a escala não-espetacular e os estados d’alma da atriz e do músico constituem o caminho para a alteridade da crítica almejada por Colm Tóibín.

.:. Leia a crítica de Maria Eugênia de Menezes ao mesmo espetáculo.

Serviço:
O testamento de Maria
Onde: Sesc Pinheiros. Auditório (Rua Paes Leme, 195, São Paulo, tel. 11 3095-9400)
Quando: Quinta a sábado, às 20h30. Sessões extras em 6 e 13/2, sábados, às 18h30. Todas esgotadas.
Quanto: R$ 7,50 a R$ 25

Ficha técnica:
Texto: Colm Tóibín
Tradução: Marcos Daud e Ron Daniels
Concepção, adaptação e direção: Ron Daniels
Com: Denise Weinberg
Música original e execução ao vivo: Gregory Slivar
Cenografia: Ulisses Cohn
Figurino: Anne Cerruti
Iluminação: Fábio Retti
Curadoria artística: Ruy Cortez

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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