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Resenha

Um teatro para o presente

2.4.2016  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Jangada Films

Jogos para atores e não atores,  lançado pelas Edições Sesc e Cosac Naify, nos oferece o material mais completo entre todos os que foram reunidos por Augusto Boal sobre sua obra, desde que os apontamentos iniciais do que viria a ser o Teatro do Oprimido se deram, no exílio argentino, ainda nos anos 70. Dali em diante o autor criou um formidável repertório de técnicas e pensamento, testado dia após dia na própria prática cênica, boa parte dela experimentada junto ao povo, inicialmente na América do Sul e na Europa. A presente edição tem base na última versão, revista por Boal em 1998, e nos sucessivos acréscimos feitos a edições estrangeiras até meados dos anos 2000, consolidados na versão alemã de 2013. A este material já substantivo a atual edição brasileira assimila ainda, entre outros apêndices, duas entrevistas, uma delas inédita em português, e o prefácio do autor para a edição inglesa de 1995.

Boal antecipa em boa medida o que o teatro busca hoje com recorrência: o deslocamento das técnicas de atuação e encenação na direção das ruas, dos fatos vivos do dia a dia, nas chamadas ‘performações’ do presente ou nos ‘teatros do real’

O livro é dividido em quatro capítulos e acrescido de quatro apêndices. No primeiro capítulo relata-se as experiências iniciais, na Europa setentista, das diversas práticas do Teatro do Oprimido (Teatro-Imagem, Teatro Invisível, Teatro-Fórum). Nos dois capítulos seguintes é detalhado com mais precisão o repertório técnico propriamente dito. Primeiro, os exercícios de base stanislavskiana que pautaram a fase nacionalista do Teatro de Arena, em que Boal seria um dos colaboradores fundamentais. Depois o arsenal de jogos mais notadamente identificados  com o Teatro do Oprimido e, por fim,  o capítulo  que  formula uma avaliação “provisória” do Teatro-Fórum, em que o autor opera a dialética aplicável  a todo o sistema – aquela que deve confrontar os elementos estruturais do Teatro do Oprimido com a necessidade de modificação das práticas conforme o contexto social:

“O desenvolvimento em múltiplas direções do Teatro-Fórum em tantos países do mundo determina, inevitavelmente, uma revisão de todos os conceitos, de todas as formas, estruturas, técnicas, métodos e processos. Tudo é reposto em questão. Só não se pode repor em questão os mesmos princípios do Teatro do Oprimido, que é um método complexo e coerente. Esses princípios são: 1) a transformação do espectador em protagonista da ação teatral e, através dessa transformação, 2) a tentativa de modificar a sociedade, e não apenas de interpretá-la”. (p. 293)

Esta disposição para ver nos procedimentos técnicos não um corpo imexível, um fim em si mesmo, mas um conjunto de saberes cujo estatuto estético, como também ético, é a própria necessidade de ajustamento útil ao meio, é o que move toda a trajetória de Boal e a sua arte de intervenção. É preciso proteger  os princípios gerais – a possibilidade de fazer do espectador do teatro burguês o “espect-ator”, aquele que não só olha como também age; e a ação como coisa modificadora. Mas não para preservar uma ‘descoberta’ formal. É preciso proteger os princípios porque eles auxiliam o jogo a partir de modos livres de subjetivação, da construção de narrativas em que a própria ideia de estética teatral tem que ser mobilizada a favor de um ato do ser humano no qual a beleza, essencial ao estético, não se desvincula dos insights político-filosóficos nascidos da compreensão do atuante sobre o seu lugar e sua possibilidade de intervir no curso do mundo.

No livro há recorrentes passagens e em diferentes épocas nas quais Boal alerta para o fato de que a percepção destes processos deve evitar o ensimesmamento, que não pode ser tomado como ponto de chegada. Por exemplo,  quando enumera as  ‘técnicas gerais de ensaio’:

“…é necessário distinguir sempre a vontade (que pode ser o resultado de uma psicologia caprichosa) da necessidade social. A vontade é a necessidade. Além disso, também são interessantes, do ponto de vista da improvisação, as vontades contra as necessidades: Eu quero, mas não devo”. (p. 265)

Em contrapartida, compreender estas ações estritamente como instrumentos da voz coletiva também é em alguma medida desconhecer os rumos que elas foram tomando no decorrer do tempo e no reconhecimento do processo histórico, com a emergência de questões políticas cada vez mais pontuais. Se o Teatro do Oprimido nasce, de fato, como instrumento de luta revolucionária e no contexto de uma sociedade altamente polarizada, ele se amplia (de maneira não pacífica, certamente)  para tentar compreender, em termos atuais, a complexa relação entre sujeito e sociedade. A este impasse, localizado nas fronteiras entre a luta social e as demandas mais específicas da subjetividade, Boal responde com clareza, abrindo caminho para o alargamento dos campos de intervenção do TO, o que de fato ocorreu através de métodos como o Arco-Íris do desejo, avizinhamento entre teatro e terapia: “o Teatro do Oprimido foi criado para servir as pessoas – não são as pessoas que servem o Teatro do Oprimido”. (p. 388)

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Talvez seja nesta mesma direção que Sergio de Carvalho aponta quando no posfácio indica para o perigo de o ‘arsenal’ dar no lugar  contrário daquele para o qual foi pensado, sendo gerido pela superfície, sem a complexidade dialética necessária para fazer da apropriação dos meios do teatro proposta por Boal um lance de real efeito crítico; ou sendo tomado como mero lance retórico alinhado às formas mercantis do esteticismo:

“…mesmo em ambientes de esquerda é preciso um esforço narrativo enorme para que as pessoas considerem possível conectar o caso doméstico a uma pressão social mais geral, sem saltos fáceis do particular ao geral. Sem maior perspectiva política e dialética na escolha dos temas e formas, a tomada dos meios de produção teatral pode ser imaginária e se converter num elogio difuso, ainda que prazeroso, às virtudes libertárias da ação estética”. (p.  407)

De todo modo, como sempre, uma obra é algo no movimento vivo do mundo. E com Boal certamente não será diferente. E assim é que além da utilidade documental desta edição de Jogos para atores e não atores, junta-se ainda uma perspectiva alentadora se pensarmos o livro à luz da cena contemporânea, inclusive a experimental. Não há dúvida de que o tempo a justificou, a respaldou, foi em direção a ela. Resguardados, naturalmente, os pontos de chegadas e os propósitos, não será demais dizer que Boal, no seu desejo em amalgamar fato estético e processo social, antecipa em boa medida o que o teatro busca hoje com recorrência: o deslocamento das técnicas de atuação e encenação na direção das ruas, dos fatos vivos do dia a dia, nas chamadas “performações” do presente ou nos “teatros do real”. Estes nada mais são que a aproximação entre arte e vida que o notável homem de teatro experimentou o tempo todo. Não como mero artefato, novidade de temporada, e sim como o projeto persistente para um teatro justo, estética e politicamente. Como é comum na biografia dos grandes artistas, trata-se do projeto de uma vida inteira.

.:. Publicado originalmente no site do Sesc SP, na aba Conteudoteca das Edições Sesc

.:. Leia resenha do mesmo livro por Patricia Freitas

Serviço:
Jogos para atores e não atores (416 páginas, R$ 49)
Autor: Augusto Boal
Posfácio: Sérgio de Carvalho
Editoras: Edições Sesc São Paulo e Cosac Naify (2015)

 

 

 

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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