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Crítica Militante

Antunes examina sonho americano sob luz fria

17.5.2016  |  por Ferdinando Martins

Foto de capa: Inês Corrêa

Ela pegou o bonde certo, mas pensou estar errada. Desejo é um subdistrito em New Orleans, Luisiana, no caminho para se chegar à Avenida Champs Elysée, onde vivem Stella e Stanley Kowalski. O bairro chama-se assim em homenagem a Desirée Clary, ex-noiva de Napoleão Bonaparte. Desirée era francesa, como o nome de Blanche Dubois (Bosque Branco) e de sua propriedade perdida em razão de dívidas, Belle Rêve (Belo Sonho). O bonde e a avenida são mencionados uma única vez no texto de Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams. A propriedade, 18 vezes.

Ganhadora do Prêmio Pulitzer de 1947, a peça estreou na Broadway com direção de Elia Kazan e, no elenco, Marlon Brando e Jessica Tandy. Em Londres, sob a direção de Laurence Olivier, teve como protagonistas Vivian Leigh e Bonar Colleano. A versão cinematográfica de 1951, dirigida por Kazan, foi estrelada por Marlon Brando e Vivian Leigh, que ganhou o Oscar de melhor atriz por esta atuação. Na trama, Stanley Kowalski é um representante da classe operária, a força pobre e produtiva da modernidade, que entra em choque com sua cunhada Blanche Dubois, símbolo da decadente aristocracia rural do sul dos Estados Unidos. Como outros membros da elite agrária, perdeu a propriedade, herdada por ela e sua irmã, para sustentar antigos luxos. O conflito maior da peça inicia-se quando Stanley afirma que na Luisiana, estado onde se casou, vigora o Código Napoleônico, pelo qual ele teria direito aos bens da esposa. Com isso, a falência o afeta diretamente.

Não causa estranheza saber que os ingressos para Blanche, o mais recente trabalho de Antunes Filho, se esgotaram na semana da estreia no Sesc Consolação, São Paulo. Além de se basear em um dos textos mais conhecidos de Tennessee Williams, Antunes Filho é considerado, junto com José Celso Martinez Corrêa, um dos mais importantes diretores em atividade no Brasil. O acúmulo de experiência, a inteligência e a sofisticação de seus procedimentos resultam em obras densas, com muitas camadas de interpretação e minúcias de detalhes e cuidados. Mas, assim como as declarações de Blanche Dubois, nem tudo que está explícito no espetáculo deve ser tomado ao pé da letra. Antunes Filho e Tennessee Williams gostam, ambos, de trapacear o receptor, embaralhando as referências.

As lâmpadas de serviço acesas o tempo todo não destacam nem escondem o que quer que seja, evitando que a iluminação iluda o espectador. A caracterização de Blanche, com o corpo do ator dismorfo com uma corcunda e maquiagem clownesca, impede a identificação catártica

Desde o material de divulgação já se observam elementos que enganam o público. Na página da Internet do Sesc Consolação, onde funciona o Centro de Pesquisas Teatrais coordenado por Antunes Filho, está escrito que Blanche é falada em “fonemol”, uma suposta língua imaginária e que “cada espectador poderá criar e imaginar sua própria dramaturgia, cena por cena”. Ao entrar no espaço cênico, a plateia recebe um resumo da peça, explicando o que acontece em cada parte do espetáculo. Seria necessário ignorar esse roteiro para criar e imaginar outra dramaturgia. Além disso, o texto é conhecido de boa parte do público, devido às muitas montagens e adaptações já feitas e até mesmo ao bordão “eu sempre dependi da caridade de estranhos” (no original em inglês, “I’ve always depended on the kindness of strangers” – kindness já foi traduzida para o português como “caridade”, “bondade” e “gentileza”).

O fonemol, por sua vez, não é uma língua, pois carece de sintaxe e semântica próprias. É, na verdade, parte do método de preparação de atores de Antunes Filho. O diretor já havia mostrado este recurso em Nova velha estória, de 1991, baseada no conto infantil Chapeuzinho vermelho. No livro Hierofania, o teatro segundo Antunes Filho (Edições Sesc-SP, 2010), Sebastião Milaré discorre sobre o fonemol ao analisar as reflexões a respeito da Ressonância, técnica de voz desenvolvida por Antunes Filho. Nela, os sons são emitidos do fundo dos olhos. Na Ressonância, “la” é a sílaba padrão, pois a partir dela que se conduz o som para além do sistema fonador. O “la” no nome Blanche rompe a consonante bilabial “b”, que obliteraria a passagem do ar. A senhorita Dubois não aceita portas fechadas. Nessa técnica, o ar e o som são considerados pontes entre a matéria e o espírito. Em depoimento para o livro de Milaré, Antunes Filho diz: “Onde estão os sentimentos e as sensações? No fundo dos olhos. Então, o que você aquece com a voz? Os sentimentos e as sensações” (p. 300). Mais ainda, a Ressonância opõe-se à projeção da voz, que é somente um preparo e um esforço físicos. Ressonar é ter consciência da estética da fala e sua ligação com o que está além do corpo. É o que o psicanalista Jacques Lacan chamaria de “parlêtre”, “falasser”, fala e ser como uma unidade. Os significantes do fonemol não estão ligados ao corpo, eles são o próprio corpo do ator ao movimentar o ar e produzir som.

Andrade e Andressa Cabral, ou Blanche e StelaEvelson de Freitas

Andrade e Andressa Cabral, ou Blanche e Stella

Segundo Milaré, “corpo e voz formam unidade física e metafísica – unidade que se apoia no ar, na respiração, configurando possibilidades de representação do drama humano” (p. 286). Essa preocupação com os sons não é alheia ao universo de Tennessee Williams. Ao contrário, a pesquisadora Maria Sílvia Betti destaca no prefácio da coletânea 27 carros de algodão e outras peças em um ato (Editora É, 2013) a proximidade do dramaturgo com a poesia lírica, em seus padrões rítmicos e na composição formal. Para Antunes, vogais e consoantes formam polaridades feminino/masculino, yin/yang, mãe/pai. No fonemol, o que interessa é o som, não a semântica. É a articulação entre o ritmo dados pelas consoantes às vogais que será possível a circulação do ar vital, o ch’i. Em seus primeiros tempos, o fonemol era chamado de “russo”, pois as articulações geravam uma prosódia semelhante à desse idioma.

Com referências que vão dos conceitos de Carl Jung à metafísica de filosofias orientais, diferentes sistemas articulam-se no processo de criação de Antunes Filho. Não se trata, porém, de uma poética racionalista. Ao contrário, as técnicas são criadas para que se rompam as racionalizações, possibilitando a construção de personagens a partir da imaginação e da intuição. A preocupação minuciosa com as poéticas do corpo e da voz para tratar dos maltratados pela sociedade revela a ética de Antunes Filho. Contrária às simplificações e clichês fáceis de serem encontrados nas montagens de textos de Tennessee Williams, Blanche é uma obra que conclama a participação ativa do espectador, que precisa esforçar-se para acompanhar o espetáculo. Como em um quadro impressionista, não existe uma imagem pronta para ser contemplada e consumida, mas sim algo que se forma na experiência do receptor.

No programa da peça, disponível no hall de entrada do público, aparece uma foto de Marcel Duchamp caracterizado com Rrose Sélavy, sua personagem feminina. Assim como Rrose Sélavy/Marcel Duchamp, a protagonista em Blanche é interpretada por um homem vestido de mulher, o ator Marcos de Andrade. Rrose Sélavy tem os mesmos sons da frase “Eros c’est la vie”, Eros é a vida, em francês. A imagem no catálogo remete não só ao travestimento de Marcos de Andrade, mas também ao trabalho com as palavras e a voz e à língua francesa. E, assim como no trabalho de Marcel Duchamp, o travestimento é deserotizado e Blanche Dubois/Marcos de Andrade realiza seus rituais de sedução como mulher, não como travesti. O fato de a protagonista ser interpretada por um homem provoca um efeito de estranhamento que impede a identificação mimética. Esse efeito é comumente buscado no teatro político.

Contrariando novamente algumas declarações do próprio Antunes Filho, não se trata de coincidência Blanche seguir-se a Nossa cidade, trabalho dirigido por ele em 2013. Aliás, coincidência é uma palavra estranha a quem, como ele, acredita em sincronicidades. A partir de um âmbito mais abrangente, em Nossa cidade o diretor subverteu os propósitos do patriota dramaturgo norte-americano Thorton Wilder e empreendeu uma crítica ao imperialismo norte-americano e ao chamado “American way of life”. Diferente de Wilder, Williams não foi um nacionalista convicto. Ao contrário, construiu sua dramaturgia com doses de ironia e sarcasmo que revelam o desespero de se viver em uma sociedade de aparências e veleidades, moralista e arrogante, características que podem também ser conferidas em outras montagens de textos do autor em cartaz em São Paulo no momento, como Gata em teto de zinco quente (direção de Eduardo Tolentino, no Centro Cultural Banco do Brasil até 26/6) e As palavras da chuva (direção de Leonardo Medeiros, baseada na peça curta Fala comigo como a chuva e me deixa ouvir, no Teatro da Rotina por tempo indeterminado). Dessa forma, ao invés de inverter os signos como fez em Nossa cidade, em Blanche Antunes Filho intensificou e deu clareza ao que, no texto original, é somente insinuado.

O público escuta no início do espetáculo o slogan “uma história de duas irmãs”. As muitas montagens e adaptações de Um bonde chamado desejo costumam se concentrar na tensão entre Blanche e Stanley. O próprio texto original, que é reproduzido integralmente no espetáculo, não permite afirmar que é uma obra sobre as relações fraternais. A começar pelo nome escolhido para o espetáculo, que não é “Blanche e Stella”. Mais ainda, acreditar que Antunes Filho optou concentrar-se na relação entre as duas não é coerente com o desenrolar da apresentação. Ainda que seja elogiosa a atuação de Andressa Cabral como Stella, não há nada que indique ser sua personagem tão central quando a de Marcos de Andrade.

Qual seria, então, o sentido desse slogan? Se nos concentrarmos nas duas irmãs, a trama estaciona no registro do melodrama, perdendo, portanto, suas dimensões mais potentes. Ao que parece, trata-se de uma possível chave de interpretação, reforçada ainda pelo formato de fotonovela do programa da peça. Um dos artifícios da indústria cultural é justamente apresentar-se como entretenimento, ocultando seu conteúdo ideológico. Fingir ser um melodrama é, portanto, um truque para despistar o machismo de Stanley, a embaraçosa condição de Blanche, a pobreza da casa onde vivem. Antunes Filho, porém, coloca em abundância elementos que traem o viés melodramático. Ao invés do ilusionismo do palco italiano, uma arquibancada improvisada em frente à coxia. As lâmpadas de serviço acesas o tempo todo não destacam nem escondem o que quer que seja, evitando que a iluminação iluda o espectador. A caracterização de Blanche, com o corpo do ator dismorfo com uma corcunda e maquiagem clownesca, impede a identificação catártica.

Felipe Hofstatter e Marcos de AndradeInês Correa

Felipe Hofstatter e Marcos de Andrade

Na entrada, o público é recebido por uma vizinha do casal. Um cartaz traz uma imagem da propriedade perdida, Belle Rêve. A cidade onde se passa a ação de Um bonde chamado desejo, New Orleans, foi colonizada por franceses. Outrora escolhida pelas elites para demonstrar cultura e sofisticação, o francês aparece agora como uma língua empoeirada, um item que de sinal de status tornou-se pedante e desnecessário. Assim como o idioma francês, Blanche também pertence a glórias do passado. Entre seus delírios, empolga-se com jogos de sedução. Em muitas montagens do texto, sua histeria é destacada, como é o caso do recente trabalho dirigido por Rafael Gomes, com Maria Luisa Mendonça encabeçando o elenco, em cartaz no Tucarena até 26/6. Essa é uma opção cênica. Em Blanche, Antunes não descarta esse traço da protagonista, mas o contextualiza de outra forma. Não é considerado somente uma marca particular e psicológica, mas sim a expressão de um destino coletivo. Portanto, é uma peça sobre os Estados Unidos, ainda que o diretor já tenha declarado o contrário.

A referência à decadência sulista não pode ser contornada, especialmente quando se põe em cena o texto na íntegra. Na peça de Tennessee Williams, as referências da peça são notadamente norte-americanas: ação se desenvolve em New Orleans, berço do jazz; os rapazes jogam boliche, esporte desenvolvido nos Estados Unidos no século XIX; quando questionada sobre seu trabalho como professora de literatura, Blanche cita somente os escritores norte-americanos Nathaniel Hawthorne, Edgar Allan Poe e Walt Whitman; Stanley fala de Hollywood. Na montagem de Antunes Filho, os signos que remetem aos Estados Unidos estão presentes: o figurino de Felipe Hosfstatter (intérprete de Stanley) é uma blusa modelo “college” típica de estudantes e jogadores de beisebol (mesmo modelo usado por Marlon Brando no filme de Elia Kazan); palavras como New Orleans e Luisiana são pronunciadas com clareza, apesar do fonemol; os rapazes jogam pôquer, jogo criado no Mississipi. Outra palavra ouvida com clareza é “polaco”, referência à imigração polonesa para os Estados Unidos. Stanley ofende-se ao ser chamado de “filho de polaco”, alegando que sente orgulho de ser nascido e criado nos Estados Unidos. Seus amigos e vizinhos também descendem de imigrantes que foram atrás do sonho americano.

Há de se lembrar, porém, como afirma o sociólogo Max Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, que os valores da sociedade norte-americana se universalizaram, portanto falar dos Estados Unidos é, em larga medida, falar da modernidade ocidental. E, nesse sentido, novamente Blanche se alinha a Nossa cidade, cuja cena final colocava uma garota fazendo pose de Estátua da Liberdade e girando como um bibelô de turista.

Dessa forma, Blanche denuncia a violência de uma sociedade que se vende ao mundo como modelo a ser seguido, ocultando seus problemas e defeitos. Em suas microrrelações, a agressividade é patente. Não se trata do poder bélico mostrado em Nossa Cidade, que fazia referências às guerras, mas sim da dominação consentida e naturalizada. Mesmo sendo uma mulher inteligente, Blanche anula-se como sujeito na busca de parcerias sexuais ou afetivas. Assim, a agressividade de Stanley é vista com naturalidade, algo da essência masculina, Stanley estupra Blanche. Em muitas montagens, a agressão é disfarçada, insinuada – como fizeram Elia Kazan e Rafael Gomes. No trabalho de Antunes, os movimentos de Felipe Hofstatter e o barulho provocado não deixam dúvida sobre o que está acontecendo. Logo em seguida, Blanche é retirada do convívio familiar, com aprovação de Stella. Ela mesma, aliás, já havia justificado a violência que sofrera do marido como algo rotineiro e comum quando as pessoas bebem e se divertem.

É nesse sentido que se tornam compreensíveis os recursos forjados poeticamente por Antunes Filho para se chegar ao universal. Em fonemol é possível falar o que soaria por demais rude em uma língua qualquer. Blanche, única personagem não caracterizada de modo naturalista, é a voz dissonante, que delira para fugir do trágico de sua existência e se recusa a ser cúmplice da sociedade em que vive. A luz acessa no palco e na plateia está pedindo para o público olhar com clareza. As falácias e enganos, por sua vez, estão lá para mostrar as mentiras e dizer que Belle Rêve e o sonho americano estão falidos.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:
Blanche
Onde: Espaço CPT – Sesc Consolação, 7º andar (Rua Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo, tel. 11 3234-3000)
Quando: quarta a sexta, às 20h; sábado e feriado, às 17h. Até 1º/10
Duração: 110 minutos
Quanto: R$ 30 (inteira), R$ 15 (meia) e R$ 9 (credencial plena do Sesc)
Classificação: 14 anos

Ficha técnica:
Autoria: Tennessee Williams
Encenação: Antunes Filho
Assistente de direção: Francieli Fischer
Com: Stella Prata (Eunice), Vânia Bowê (vizinha), Felipe Hofstatter (Stanley), Alexandre Ferreira (Mitch), Luis Fernando Delalibera (Pablo), Andressa Cabral (Stella), Marcos de Andrade (Blanche), Bruno Di Trento (Steve), Luis Fernando Delalibera (jornaleiro), Antonio Carlos de Almeida Campos (médico), Guta Magnani (enfermeira)
Diretor de palco: Luis Fernando Delalibera
Figurinos: Telumi Hellen
Assistente: Tainara Dutra
Adereços: Clau Carmo
Costureira: Noeme Costa
Ambientação: José de Anchieta
Assistente: Emerson Mostacco
Cenotécnico: Fernando Brettas
Trilha sonora: Raul Teixeira
Sonoplastia: Lenon Mondini
Iluminação: Edson FM e Elton Ramos
Produção executiva: Emerson Danesi
Preparação de corpo e voz: Antunes Filho
Programa: Ricardo Muniz Fernandes e Érico Pereira
Fotos: Inês Correa
Pesquisa: Thiago Brito
Assessoria de imprensa: Marina Reis
Agradecimentos: Klaus Kühn e Marichilene Artisevskis

Sociólogo, jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Líder da linha Estudos da Performance e Processos de Subjetivação do Grupo de Pesquisa Alteridade, Subjetividades, Estudos de Gênero e Performances nas Comunicações e Artes. Desenvolve pesquisas nas áreas de história da arte, teorias do teatro, estudos da performance, psicanálise e produção cultural. É, também, jurado dos prêmios Shell SP, Bibi Ferreira e da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA).

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