Crítica Militante
10.6.2016 | por Dirce Waltrick do Amarante
Foto de capa: Acervo Paulo Autran
A estreia, em 1965, de Liberdade, liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, foi um grande sucesso, mas não durou muito nos palcos brasileiros, pois tão logo o regime militar, recém-instaurado no Brasil, se deu conta do conteúdo da peça, ela foi imediatamente censurada.
O tema da peça é, obviamente, a liberdade, escassa ou inexistente no Brasil que vivia sob um regime ditatorial, por isso seu conteúdo não era nada caro a esse tipo de governo, que tolhia a livre expressão de sentimentos e ideias.
Neste breve ensaio, contudo, não me debruçarei sobre o tema da peça, já bastante analisado e estudado pela crítica brasileira. Procurarei aqui investir na análise de sua forma.
Liberdade, liberdade é uma colcha de retalhos de citações dos mais variados tipos, que se vale de passagens que vão de obras literárias, textos e discursos históricos a hinos e músicas populares, como, por exemplo, no fragmento que transcreve o início da Declaração da Independência Americana e um excerto da música Summertime, de George e Ira Gershwin:
VIANNA
Início da Declaração de Independência Americana. Mantemos que estas verdades são evidentes por si mesmas; que todos os homens nascem iguais e são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis e que entre estes estão a vida, a liberdade, e a busca de felicidade.
(Apaga-se luz geral e acende-se refletor sobre Nara e Coro.)
NARA E CORO
Summertime, when the living is easy
Fish are jumping and the cotton is high
Your daddy is rich and your ma’s good looking
So hush, little baby don’t you cry…
(Apaga-se refletor sobre Nara e acende-se sobre Vianna). (FERNANDES; RANGEL, 2000, p. 56-57).
Como lembra Flávio Rangel: “uma seleção de textos não é uma ideia nova no teatro moderno. É nova aqui no Brasil, onde tudo é novo, inclusive a noção de liberdade”. (FERNANDES; RANGEL, 2000, p. 13). Embora, de fato, a seleção de textos ou as colagens não sejam ideia nova na arte, basta lembrarmos dos ready-mades de Marcel Duchamp, parece que vêm ganhando mais e mais adeptos no século XXI, os quais abandonaram em parte, no universo da arte experimental, a ideia de gênio original que tanto afligiu, parece, os artistas inovadores de outras épocas.
Segundo Kenneth Goldsmith,
A escrita conceitual ou não criativa é uma poética do momento, que funde os impulsos da vanguarda do último século com as tecnologias do presente […] a escrita conceitual não faz qualquer alegação de ser original. Pelo contrário, ela emprega intencionalmente táticas de apagamento do ego através da faceta de criatividade, de originalidade, de legitimidade, da apropriação, do plágio, da fraude, do roubo e falsificação de seus preceitos, gerenciamento de informações, processamento de textos […]. (GOLDSMITH apud PERLOFF, 2013, p. 244).
A princípio, a escrita não criativa eximiria o autor da “responsabilidade” pelo texto. Em 1965, numa época de censura, essa ideia poderia ser bastante interessante, pois o autor poderia alegar em sua defesa que não escreveu o texto, apenas transcreveu o que muitos outros disseram, em diferentes épocas. Contudo, é Goldsmith quem alerta: “Escrita conceitual é política; a diferença é que usa a política de outra pessoa” (GOLDSMITH, 2016, p. 23).
Ao final de Liberdade, liberdade, Oduvaldo Vianna Filho explica o fazer dramatúrgico da peça:
Os textos aqui lidos, cantados e representados são da autoria de: Jean Louis Barrault, Geir Campos, Jesus Cristo, Billy Blanco, o famoso compositor e violinista brasileiro Robert Thompson Baden Powell de Aquino, Platão, Moreira da Silva […] A escolha dos textos e o roteiro do espetáculo foram feitos por Millôr Fernandes e Flávio Rangel. Neste exaustivo trabalho, os autores leram setenta e cinco livros […]. Os livros consultados se encontram na Biblioteca Nacional, com exceção de três especialmente subversivos, que foram imediatamente pulverizados no fim do trabalho. (FERNANDES; RANGEL, 2000, p. 123-124).
Mas, como afirma Antoine Compagnon, há nesse processo de escolha de textos ou de fragmentos deles uma leitura pessoal. Ou, como aponta Marjorie Perloff, “é importante lembrar que o texto citacional ou apropriativo, por mais que falte originalidade em suas palavras e expressões, de fato, é sempre o produto de escolhas – e, portanto, do gosto do indivíduo”. (PERLOFF, 2013, p. 276). Na escrita não criativa, diz Goldsmith, “os escritores tornam-se curadores da linguagem, algo parecido com o surgimento do curador como artista nas artes plásticas” (GOLDSMITH, 2016, p. 24).
De acordo com Compagnon:
Quando cito, extraio, mutilo, desenraízo. Há um objeto primeiro, colocado diante de mim, um texto que li, que leio; e o curso de minha leitura se interrompe numa frase. Volto atrás: re-leio. A frase relida torna-se fórmula autônoma dentro do texto. A releitura a desliga do que lhe é anterior e do que lhe é posterior. O fragmento escolhido converte-se ele mesmo em texto, não mais em fragmento de texto, membro de frase ou de discurso, mas trecho escolhido, membro amputado. […] minha leitura já procede de um ato de citação que desagrega o texto e o destaca do contexto. (COMPAGNON, 2007, p. 3).
Copiar textos preexistentes é levar informação de um lugar para outro, segundo Goldsmith, que prossegue afirmando ser essa “uma nova medida para a literatura: nada de verso, soneto, parágrafo ou capítulo, mas, sim, o banco de dados” (GOLDSMITH, 2016, p. 37).
Em Liberdade, liberdade, Millôr e Flávio se valem de uma atividade infantil, a de recortar e colar, às vezes pequenos fragmentos como os seguintes:
VIANNA
Voltaire: Não concordo com uma só palavra do que dizeis, mas defenderei até a morte vosso direito de dizê-las!
TEREZA
Mme. Roland, guilhotinada pela Revolução Francesa: Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!
PAULO
Abraão Lincoln: Pode-se enganar algumas pessoas todo o tempo; pode-se enganar todas as pessoas algum tempo; mas não se pode enganar todas as pessoas todo o tempo!
VIANNA
Benito Mussolini: Acabamos de enterrar o cadáver pútrido da liberdade!
TEREZA
Danton: Audácia, mais audácia, sempre audácia!
PAULO
Barry Goldwater: A questão do Vietnã pode ser resolvida com uma bomba atômica!
VIANNA
Napoleão Bonaparte: A França precisa mais de mim do que eu da França!
TEREZA
Osório Duque Estrada: E o sol da liberdade em raios fúlgidos, brilhou no céu da Pátria nesse instante!
PAULO
Aristóteles: As tiranias são os mais frágeis governos!
VIANNA
Moisés: Olho por olho, dente por dente!
TEREZA
Luis XIV: O Estado sou eu! (FERNANDES; RANGEL, 2000, p. 22-23).
Lembra Antoine Compagnon:
Criança, tenho uma tesoura, pequena tesoura de pontas arredondadas, para evitar que me machuque […]. Com minha tesoura nas mãos, recorto papel, tecido, não importa o que, talvez minhas roupas […]. Não sei ler as instruções, mas tenho-as no sangue, a paixão do recorte, da seleção, da combinação […]. Recorte e colagem são as experiências fundamentais com o papel, das quais a leitura e a escrita não são senão formas derivadas, transitórias, efêmeras. (COMPAGNON, 2007, p. 9, 11).
Ao entrar nessa brincadeira de recortar e colar, diria que Millôr e Flávio imaginam, assim como Montaigne, mencionado por Antoine Compagnon, “falar em seu próprio nome”, quando na verdade não fazem mais que emprestar suas vozes ao discurso do outro (FERNANDES; RANGEL, 2000, p. 142).
Não poderia concluir este breve ensaio “recheado com citações” sem mencionar Bertolt Brecht, mencionado também na peça de Millôr e Flávio. O teatro didático desse dramaturgo alemão teria, parece-me, servido de modelo para a composição de Liberdade, liberdade.
Walter Benjamin afirma que “para fins de confronto, Brecht limitou-se aos elementos mais primitivos do teatro. Num certo sentido, contentou-se com a tribuna. Renunciou a ações complexas. Conseguiu, assim, modificar a relação funcional entre o palco e os atores. O teatro épico, disse ele, não se propõe desenvolver ações. Mas representar condições” (BENJAMIN, 1994, p. 133).
Não seria essa a mesma tática, ou técnica, usada pela peça brasileira ao “recitar” fragmentos de textos que em comum têm o tema da liberdade? Vejamos o seguinte fragmento de Liberdade, liberdade:
NARA
Companheiros… nos mataram…
O melhor homem de Espanha…
(Inversão de luz. Foco só em Paulo.)
PAULO
Verde que te quiero verde
Verde barco. Verdes ramas.
El barco sobre la mar
Y el caballo en la montaña.
Verde que te quiero verde.
Verde viento. Verdes ramas.
(Inversão de luz. Foco em Tereza.)
TEREZA
O filósofo Miguel de Unamuno, autor de O sentimento trágico da vida, era reitor da Universidade de Salamanca quando os falangistas tomaram a cidade. No Dia da Raça uma cerimônia reuniu as mais importantes figuras do poder fascista. E o general Milan Astray, fundador com Franco, da Legião Estrangeira, discursava:
(Inversão de luz. O foco que estava em Tereza dá lugar a uma luz geral.)
VIANNA
O fascismo vai restaurar a saúde de Espanha!
Abaixo a inteligência!
Viva a morte!
CORO
(Fazendo a saudação fascista.)
Viva a morte! (FERNANDES; RANGEL, 2000, p. 74-75)
Uma outra característica do teatro brechtiano é a interrupção da ação, que impediria qualquer ilusão por parte do público. Assim, vejamos mais um fragmento de Liberdade, liberdade que poderia ilustrar a técnica acima:
Escurecimento
(Depois de um rápido instante, volta a luz geral da cena. Estão Paulo, Nara, Vianna e Tereza.)
VIANNA
(Bem sério, mas neutro, autoritário) – E aqui, antes de continuar este espetáculo, é necessário que façamos uma advertência a todos e a cada um. Neste momento, achamos fundamental que cada um tome uma posição definida. Sem que cada um tome uma posição definida, não é possível continuarmos. É fundamental que cada um tome uma posição, seja para a esquerda, seja para a direita. Admitimos mesmo que alguns tomem uma posição neutra, fiquem de braços cruzados. Mas é preciso que cada um, uma vez tomada sua posição, fique nela! Porque senão, companheiros, as cadeiras do teatro rangem muito e ninguém ouve nada.
(Uma pausa. Depois, Tereza fala.)
TEREZA
Mil e muitas mil são as liberdades humanas. Numa rápida discussão, os autores deste espetáculo conseguiram fixar algumas delas. A fundamental: liberdade física, ser dono do próprio corpo, poder ir e vir livremente. (FERNANDES; RANGEL, 2000, p. 29-30).
Millôr e Flávio parecem buscar o fim didático brechtiano que exige que se elimine o êxtase do chamado teatro burguês. “Meu teatro”, afirmou Brecht, “quer elevar a emoção ao raciocínio”. (ROSENFELD, 2009, p. 303).
Diria que em Liberdade, liberdade, assim como nas peças de Brecht, o público não sai aliviado do teatro, “deve passar, depois”, afirma Anatol Rosenfeld a respeito das peças didáticas do mestre alemão, “uma péssima noite, preocupado”, mantendo-se em estado de lucidez crítica.
Cito, por fim, um fragmento de Liberdade, liberdade que, imagino, ilustra a técnica de colagem da peça, já que se trata de um excerto de Navio negreiro, de Castro Alves, e ao mesmo tempo a sua opção dramatúrgica pelo teatro didático:
PAULO
E existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e cobardia
E deixa-a transformar-se nessa festa
Qual manto impuro de bacante fria!
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio, Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…
Auriverde pendão da minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que à luz do sol encerra
As promessas divinas da esperança…
Tu que dá liberdade após a guerra
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha
Que servires a um povo de mortalha!
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo,
O trilho que Colombo abriu na vaga,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! Arranca esse pendão dos ares!
Colombo! Fecha a porta dos teus mares!
Escurecimento (FERNANDES; RANGEL, 2000, p. 64-65).
.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.
Referências:
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
GOLDSMITH, Kenneth. Texto de Kenneth Goldsmith. Grampo Canoa, São Paulo, n. 2, abr. 2016.
PERLOFF, Marjorie. O gênio não original: poesia por outros meios no novo século. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013.
FERNANDES, Millôr, RAGNGEL, Flávio. Liberdade, liberdade. Porto Alegre: L&PM, 2000.
ROSENFELD, Anatol. A arte do teatro: aulas de Anatol Rosenfled (1968). São Paulo: Publifolha, 2009.
Ensaísta, tradutora e professora do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Publicou, entre outros, Cenas do teatro moderno e contemporâneo (Iluminuras), Para ler ‘Finnegans Wake’ de James Joyce (Iluminuras). Colabora em jornais como O Estado de S. Paulo, O Globo e Notícias do Dia.