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Crítica Militante

‘Fluxorama’, a ordem e o sentido das palavras

17.8.2016  |  por Maria Eugênia de Menezes

Foto de capa: Caio Gallucci

Já se passou uma década desde sua estreia. Mas Jô Bilac continua a ser apresentado como um jovem e promissor dramaturgo carioca. E, não raras vezes, como herdeiro direto de Nelson Rodrigues, um enfant terrible, a emular o estilo e o humor do autor de Vestido de noiva. Fluxorama, obra atualmente em cartaz no Sesc Ipiranga e que já mereceu montagens anteriores, não vem para negar os rótulos que se colaram à persona de Bilac. Contribui, contudo, para matizar essa apregoada identidade de pupilo rodriguiano. Ampliando, consideravelmente, o número de variáveis em jogo na hora de defini-lo dessa ou daquela maneira.

Escrito e reescrito diversas vezes, Fluxorama surgiu em 2009. Estreou em 2013. Mereceu leituras em Londres, Estocolmo e Nova York. E foi modificado nesse percurso. Na montagem carioca, reunia três textos – e não quatro como agora. A direção estava também dividida em três pedaços, sem um olhar único que alinhavasse as partes, como faz Monique Gardenberg no espetáculo visto em São Paulo.

Ao filiar-se ao expediente do fluxo de consciência, Jô Bilac não se furta, contudo, a uma particularidade. Cobre de lugares-comuns aquelas que deveriam ser as mais profundas e verdadeiras reflexões desses personagens

Em sua encenação, Gardenberg se vale de uma identidade visual de traços marcados e reconhecíveis para sublinhar a unidade do que está em cena. Com projeções, compõe cenários que criam não apenas um ambiente onde a ação se desenrola, mas tableaux repletos de detalhes a serem observados: O papel de parede com desenhos de pássaros, as folhas das árvores de uma floresta durante a noite, as quinquilharias que se amontoam em um banheiro. Quando as fábulas narradas se transformam, seu entorno também se altera. Algo, contudo, nos diz que se trata de uma única peça. O expediente faz lembrar aquele utilizado pela artista em O desaparecimento do elefante. Na ocasião, ela também lidava com histórias independentes (uma adaptação de contos do escritor japonês Haruki Murakami) e misturava objetos de cena com projeções de Daniela Thomas – que, agora, assina o cenário ao lado de Felipe Tassara.

Conselho de classe, texto de Bilac levado à cena pela Cia. dos Atores em 2013, evidenciava a maturidade atingida pelo autor. Fluxorama segue por caminho semelhante: mantém firme a vivacidade que tanto impacto causou em Rebu ou Cachorro! – títulos de sua primeira fase –, conserva a exuberância de sua verborragia, só que agora combinada a uma aguda maneira de abordar os temas e a uma prosa mais decantada.

Monólogo de Caco Ciocler versa sobre um ritual de meditaçãoCaio Gallucci

Monólogo de Caco Ciocler versa sobre um ritual de meditação

É fácil perceber o mote a servir de amálgama aos textos enfeixados na peça. Os episódios interpretados por Juliana Galdino, Luiz Henrique Nogueira, Marjorie Estiano e Caco Ciocler versam sobre situações distintas: um acidente, uma maratona esportiva, uma doença degenerativa, um ritual de meditação. Aproximam-se, porém, ao observar o fluxo de pensamento desses personagens.

Todas as formas de expressão presumem o olhar do outro. O discurso, a carta, o diálogo. Mesmo que aparentemente esteja a falar sozinho, o autor de um diário íntimo está a conceber uma narrativa sobre si mesmo que pressupõe a leitura de um outro – ainda que indefinido. Coloca-se, ali, a necessidade de confissão do indivíduo. Nesses monólogos interiores criados por Bilac, dá-se a pretensa captura de um pensamento em estado bruto – sem o crivo da autocensura ou do olhar exterior.

No final do século 19, Édouard Dujardin começou a utilizar a técnica que ficaria conhecida como fluxo de consciência. Expediente amplamente empregado por grandes da literatura que o sucederiam, como Virginia Woolf e Samuel Beckett. Ao filiar-se a essa corrente, o texto de Bilac não se furta, contudo, a uma particularidade. Cobre de lugares-comuns aquelas que deveriam ser as mais profundas e verdadeiras reflexões desses personagens.

Vítima de uma doença degenerativa que lhe rouba a audição, e,gradativamente, o restante dos sentidos.Amanda (Juliana Galdino) pontua suas reflexões interiores com frases feitas. “A grande culpada mesmo é a gordura trans consumida sem receio” ou “julgo que charme e boa educação são fundamentais em um bom convívio social”. Ao enunciar essas frases, a personagem faz mais do que expor suas angústias íntimas. Passa a manipular falas e discursos que circulam na sociedade e torna evidentes as limitações do indivíduo mesmo naquilo que considera salvaguardado da sociedade.

A personagem de Juliana Galdino é vítima de doença degenerativaCaio Gallucci

A personagem de Juliana Galdino é vítima de doença degenerativa

O mesmo ocorre com Luiz Guilherme (Luiz Henrique Nogueira). Preso entre ferragens, na iminência da morte, elucubrando sobre seus últimos desejos, ele diz:

Uva faz bem e uva é um santo remédio, e uva não sai barato, e uva verde nem é tão boa, e uva é um palavra curta e fácil de decorar, e tem a festa da uva, na qual é coroada a rainha da uva, e pisa na uva, e come uva do cacho, e tem uva passa, e tem arranjo de uva, e tem uva na boca do imperador romano, e o batom cor de uva, a raposa e as uvas e etc.

Clichês atravessam os pensamentos daqueles que sobem à cena. Trata-se de um inegável recurso de humor – o espectador ri, se reconhece. Mas é possível supor que há mais em jogo nessa escolha de termos facilmente reconhecíveis. Quando incorporamos e reproduzimos discursos estamos reproduzindo formas de pensar. Mesmo em situações-limite – diante a morte, da doença, da perda –, mesmo quando estamos sós, ainda que nos encontremos encerrados em nossos pensamentos, estamos a lidar com formas de controle que nos precedem.

Considerando que o pensamento não existe segregado da linguagem, pode-se dizer que um discurso não é uma forma de se expressar o que se pensa. Antes, o que um indivíduo pensa é a construção dos discursos que incorporou ao longo da vida. Cada indivíduo capta e realiza como suas as formações discursivas do meio em que está inserido. Uma fala está sempre e invariavelmente citando outras. Incorpora elementos surgidos em outros discursos. Frases já construídas e cristalizadas que não expõem o lastro do ambiente e das condições em que foram geradas.

Luiz Henrique Nogueira vive homem preso entre ferragens e na iminência da morteCaio Gallucci

Luiz Henrique Nogueira vive homem entre ferragens e na iminência da morte

Os monólogos do espetáculo dizem de conflitos capazes de mobilizar a plateia. Valquíria participa da corrida de São Silvestre. Não se trata de uma situação de vida ou morte. Seu drama é localizado, pontual. Mas pode se colocar como espelho de uma infinidade situações cotidianas semelhantes. Desafios, algo inúteis, a que boa parte dos indivíduos se submete por vontade própria. Marjorie Estiano carrega sua personagem com a comicidade presente no texto.  É uma mulher comum. Exausta como uma mulher comum estaria. Cheia de dúvidas e pensamentos e ideias sem importância como qualquer uma em seu lugar. “É bom fechar ciclos. É importante fechar ciclos. É importante levar uma coisa do começo ao fim”: quando diz isso para si mesma, a personagem emite sentenças a serem idealmente cumpridas. Quer acreditar naquilo que repete.

Um discurso não é livre, nos lembra Michel Foucault em A ordem do discurso. Toda a sua produção está sob controle e vigilância. Em outro de seus livros, Vigiar e punir, o pensador francês nos leva a analisar essa produção narrativa a partir de dispositivos disciplinares. O que dizemos – para os outros, para os estranhos, para os mais íntimos, para nós mesmos – são formas de ensinar a ver o mundo e a se comportar diante dele. Seguimos a repetir ordens. Criando pouco. Pensando pouco. A viver e a morrer bestamente.

.:. Escrito no contexto do projeto Crítica Militante, iniciativa do site Teatrojornal – Leituras de Cena contemplada no edital ProAC de “Publicação de Conteúdo Cultural”, da Secretaria do Estado de São Paulo.

Serviço:

Fluxorama
Onde: Sesc Ipiranga (Rua Bom Pastor, 822, tel. 11 3340-2000)
Quando: Quinta e sexta, às 21h; sábado, às 19h e às 21h; domingo, às 18h. Até 21/8
Quanto: R$ 12 a R$ 40

Ficha técnica:

Texto: Jô Bilac
Direção: Monique Gardenberg
Com: Caco Ciocler, Juliana Galdino, Luiz Henrique Nogueira e Marjorie Estiano
Música Original: Philip Glass
Cenário: Daniela Thomas e Felipe Tassara
Figurino: Cassio Brasil
Iluminação: Monique Gardenberg
Coordenação cenografia: Camila Schmidt
Imagens projeção: Albino Papa
Assistente de direção: Mila Portella
Assistente de direção em Valquíria: Kiko Mascarenhas
Preparação Corporal em Valquíria: Renata Melo
Programação visual: Vicka Suarez
Fotos: Caio Gallucci
Assessoria de imprensa: Morente Forte
Redes sociais: Cubo Web (Dani e Luciano Angelotti)
Produtoras: Selma Morente e Célia Forte
Produtora executiva: Francine Storino
Assistente de produção: Barbara Santos
Administração: Jady Forte
Produção: Morente Forte Produções Teatrais
Realização: Sesc

Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.

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