Crítica
Quando da primeira edição, em 1605, O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha era mais ouvido que lido. O romance alcançava grandes auditórios em vez do cume calmo dos olhos. Afinal, a maioria dos cidadãos era analfabeta. Uma voz mediava o imaginário segundo as páginas de Miguel de Cervantes. A alusão ao contexto barroco da prosa do século XVII vem do prazer em fruir a inteligência cômica popular impressa no solo O incansável Dom Quixote, parceria do ator Maksin Oliveira com o diretor Reynaldo Dutra, numa produção da Magnífica Trupe de Variedades (RJ).
Em sua fala de fôlego e de sequências condensadas no tempo e no espaço, às vezes na casa dos segundos, Oliveira trabalha sobre a geração de imagens extraídas da literatura e fortemente apoiada no vocabulário corporal. Dá a ouvir o narrador, o personagem-título, o fiel escudeiro Sancho, a musa Dulcineia, os trôpegos cavalo Rocinante do anti-herói e o burro do fiel escudeiro, entre outros tipos da leva de coadjuvantes dessa obra-prima.
A opção pelo humor popular, de base instintiva, não deve ser confundida com desleixo formal no solo ‘O incansável Dom Quixote”. O romance não é banalizado
Espetáculo de um homem só (no teatro há sempre um coro de profissionais cúmplices), a recriação cênica condiz com a palavra medular em Cervantes. Em adaptação feita por ele mesmo, o comediante, tal o avatar cavaleiro andante, não foge à luta ao atravessar passagens naturalmente arcaicas da escrita original. À reverência soma coloquialismos, certa didática e espírito de urbanidade em níveis de cidadania, política, cultura e filosofia. O resultado são microestruturas de pensamentos que falam, sobretudo, aos jovens e sua capacidade de ideação do futuro.
O projeto de abraçar as desventuras de Quixote em solo teatral vinga a intenção de reavivar utopias na contracorrente dos dias. No subtexto dramatúrgico, temos a potencialidade individual e coletiva de intervir no presente, conceber e praticar outro mundo possível – plataforma ora esvaziada na sociedade brasileira e na montagem restituída por meio da imaginação.
Oliveira e Dutra fazem da concreção minimalista do palco um sofisticado campo de gravitação. Eles levam à risca a máxima shakespeariana das duas tábuas e uma paixão. A presença do atuante é amparada por elementos sutis, como o figurino camaleônico estilo bufão; uma mala da qual saem objetos, flauta e acordeão sacados ao longo da apresentação; e uma corda demarcadora da arena cujas linhas são frequentemente borradas ao sabor das ações dos personagens e dos eventos narrados. Em tempo: abre-se mão de microfone.
A opção pelo humor popular, de base instintiva, não deve ser confundida com desleixo formal. O romance não é banalizado. A plateia lotada do Teatro Municipal de São José dos Campos mostrou-se absorvida em noite de feriado programada pelo Festivale em setembro passado. Riso e reflexão despertados pelo gestual frenético, silêncios suspiradores e enredo preservado em sua essência. De como Alonso Quijano, amante dos romances de cavalaria, encarnou a Triste Figura, como Sancho o apelidou, e foi ser gauche na vida enfrentando monstros, exércitos e tudo o mais que ameaçasse o amor platônico por Dulcineia.
Trechos em vídeo na internet mostram o quanto O incansável Dom Quixote evoluiu desde sua estreia, em 2013. O desempenho físico, o timming narrativo e o carisma de Maksin Oliveira lembram a performance primorosa de Júlio Adrião em A descoberta das Américas (2005). São solos encenados sob o manto invisível da partitura, no que as direções de Reynaldo Dutra e Alessandra Vanucci (para a peça de Dario Fo) se aproximam, apesar de ilhas distintas.
Oliveira expressa personalidade própria em sua prática artística de mais de década e meia. A maturidade com que atua é decisiva na articulação do movimento semicoreografado e da palavra à vera, inventada, acelerada ou cadenciada. Ele tem propriedade sobre o que enuncia e sabe das entrelinhas. Traz impregnações cervantinas e quixotescas de quem pesquisou seriamente o delírio, a realidade e o idealismo. Sua solidão no palco – a contracenar com os seres imaginários que o povoam – carrega um quê antropocêntrico a bordo da arte que tende a evocar os deuses assim, no plural, contrariada a delegar a razão de tudo a apenas um deles.
A sequência síntese da poética da criação carioca é aquela em que Quixote e Sancho adentram um “puteiro” com fachada de pensão, mas imaginada pelo líder como um castelo, e lá refestelam-se, comem, bebem e acabam envolvidos numa confusão dos diabos com a dona, o amante dela e o marido. Oliveira dá conta de todas as nuances vocais e gestuais para permitir ao público visualizar a trama de erros. O comediante desdobra-se em figurino único que vira cama e, deitado, empresta uma das pernas para delinear Quixote em sono profundo e a outra para sugerir a cafetina que o confundiu com o amante embaixo dos lençóis, brecha para o protagonista devanear mais uma vez como se nos braços de sua donzela-guia.
O desvario é onomatopaico, musical, lírico, paródico. E também sujeito a um grande equívoco que põe o projeto em risco pela gratuidade. A passagem em que Dulcineia é reduzida a uma “bunda”, aos olhos de Quixote, destoa do humor crítico. Investida machista no país com altos índice de violência contra a mulher.
Apesar do senão, Maksin Oliveira idealiza um projeto artisticamente íntegro. Em cena, o ator oscila composição e decomposição. À hipérbole sucede a suspensão. Sua presença dialética sinaliza a consciência permanente de que o público está diante do artifício, para tão logo esquecê-lo e se deixar levar. Literatura e teatro cúmplices em defesa por Utopia.
https://www.youtube.com/watch?v=fHjjUG0RFRs
Ficha técnica:
Autoria/adaptação: Maksin Oliveira
Direção: Reynaldo Dutra
Com: Maksin Oliveira
Assistente de direção: Pedro Struchiner
Cenografia: Magnífica Trupe de Variedades
Figurino: Leonan Thurler
Fotografia: João Julio Melo e Maíra Lins
Sonorização: Pedro Struchiner
Iluminação: Pedro Struchiner
Maquiagem: Reynaldo Dutra
Sonoplastia: Pedro Struchiner
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.