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Crítica

O Rainha Kong e os novos estandartes

30.10.2017  |  por Kil Abreu

Foto de capa: Karen Mezza

Ó doce irmã, o que você quer mais?
Eu já arranhei minha garganta toda
Atrás de alguma paz.
Agora, nada de machado e sândalo.
Você que traz o escândalo,
Irmã-luz
(Caetano Veloso, Escândalo)

 

Em Belo Horizonte

É sem dúvida um tempo novo. E é do olho do furacão, em uma época de notável violência contra o humano, que o palco brasileiro vai comportando as novas representações que os sujeitos sociais afirmam. A criação coletiva do grupo Rainha Kong para O bebê de tarlatana rosa, conto homônimo do carioca João do Rio (1881-1921), confirma esse raciocínio.

A cena popular sempre se pautou por personagens e situações de exceção à ordem. Mas se olharmos para a História “oficial”, legitimada, do teatro brasileiro, veremos que no capítulo da cena moderna, do final dos anos 40 em diante uma geração inteira de dramaturgos pôs-se em busca do Brasil que vivia aquém das classes dominantes. Com isso ampliou consideravelmente o repertório dos que tinham direito ao pertencimento artístico. E então muitos do andar de baixo foram às tábuas, tiveram suas questões discutidas. De Nelson Rodrigues a Vianinha, passando por Suassuna e Plínio Marcos, subiram ao palco mulheres suburbanas e suas tragédias anunciadas, jogadores de times de várzea, operários, pequenos burgueses arrivistas, miseráveis do sertão que escapam da morte pela esperteza e inteligência, putas que ao fim e ao cabo perguntam se são mesmo gente.

O espetáculo-performance que o grupo campineiro Rainha Kong apresentou no Festival Estudantil de Teatro (FETO) é já o fruto de outra mobilização, mais contemporânea: a justa tentativa de cavar no palco o espaço de representação dos que até aqui permaneceram praticamente fora desta galeria ou foram mimetizados na base do estereótipo e da chacota.

A ideia de gêneros em trânsito na sexualidade afeta de que maneira os gêneros do teatro, em uma possível instabilidade produtiva que gere algo novo ao olhar?

Os artistas egressos do curso de artes cênicas da Unicamp ajudam a compor um quadro novo e a definir um momento. A hora, aberta por vezes a fórceps no chão da sociedade, é das pessoas de gêneros desviantes, das pessoas não binárias, dos gays, das lésbicas, dos transgêneros, das travestis e transexuais. É isso o que elas e eles dizem, é isso o que dizemos.

Embora não tenha parentesco direto com Nelson Rodrigues quanto às coordenadas formais, O bebê de tarlatana rosa poderia perfeitamente ser alinhado, ao menos quanto ao efeito, à sentença que foi usada para a dramaturgia do autor pernambucano, tido então como imoral: um teatro desagradável. Ou a Plínio Marcos, também acusado de ser antiestético por parte da crítica sessentista que reprovava o palavreado em gíria com que seus personagens se relacionam.

Karen Mezza

Atuantes do grupo Rainha Kong na livre criação do conto de João do Rio

Neste lastro histórico, como agora, o que interessa é que a escolha pelo desagradável, pelo agressivo (a começar, aqui, pela inspiração no conto grotesco de João do Rio) não é apenas efeito e não é um lance acidental. É condição essencial para aquilo que o espetáculo e as pessoas que o fazem têm a dizer. Falava Zé Celso Martinez Corrêa, nos anos 70 (parafraseio), que quando a plateia não reage diante de uma realidade injusta e medíocre é preciso sacudi-la. É preciso sacudir, literalmente, a plateia, para que ela acorde. A sacudida que o pessoal de Campinas promove, no entanto, não é da mesma ordem. Eles e elas não nos tocam fisicamente, mas duvido que alguém presente na sessão de Belo Horizonte tenha saído impassível do teatro. Depois dali, a dificuldade de comentarmos o trabalho é resultado da surpresa diante de algo que nos parece familiar, mas também assustadoramente estranho, fugidio. A estranheza nos desloca:  não sabemos o que dizer frente a um mundo que é certamente, para a maioria, senão novo, visto de ângulo inusual. Não o tema da sexualidade, em si, mas o modo como ele é abordado – o ponto de vista franco e a legitimidade insuspeita para apresentá-lo. O desconcerto cresce na mesma medida em que o fundamento performativo se afirma: não estão nos contando algo fora deles e delas. O grupo e as suas subjetividades são o próprio objeto da representação. E nos mostram como é grave e como é larga a condição humana.

No trânsito pela performance e pelo teatro em chave de narrativa íntima, o trabalho parte do conto de João do Rio não para ajustá-lo à realidade de quem agora o toma, mas para confrontá-lo. Lá, um sujeito bem nascido relata a amigos e amigas o episódio em que, na luxúria e permissividade do carnaval,  cai de desejo por uma mulher, a segue e com ela troca carícias até o momento em que, incomodado com um nariz de cera que ela protege, o arranca e descobre, apavorado, que a dona tem um buraco no meio do rosto. Na versão do Rainha Kong o mesmo fio de fábula é seguido, com a diferença de que a encenação aprofunda o que no conto é apenas insinuado: além do defeito físico trata-se de uma mulher trans.

Em paralelo ou costurando este fio da meada, são apresentados quadros em que cada um dos performers faz o relato a respeito das relações familiares, paternais, maternais, de amizade e de como o lugar de gênero, fora das expectativas hegemônicas, forjou disposições, perspectivas, sentimentos e atitudes diante do meio. Da chocante revelação de que mulheres trans têm expectativa de vida de 36 anos e de que 90% vive da prostituição, às doloridas histórias sobre a descoberta de corpos deslocados do lugar esperado, o espetáculo vai se arredondando em matizes tão variados quanto variados são os sentimentos que saltam das falas. Do sarcasmo agressivo à ternura quase enlutada, da veadice debochada ao desespero magoado de quem é eventualmente usado/usada e frequentemente enxotado para as sombras. A performance nos suspende em um duro desconcerto.

O corpo como objeto de discussão e como suporte ganha status simbólico nas imagens projetadas no ciclorama: de partos problemáticos (um anúncio do que estaria por vir?) às animações de garotas heroínas, passando por cenas de sexo colhidas em filmes gays vintage nos quais se indica relações entre homens mais velhos e meninos, o vídeo amplia o quadro de experiências, memórias e confissões exploradas como temas de fundo da montagem.

Diante deste primeiro contundente gesto criativo é natural nos perguntarmos sobre as ações seguintes do grupo, sobre o que se planeja para o futuro. E, então, algumas perguntas/provocações surgem: o que uma cena de sentimento transgênero tem a dizer não só quanto aos assuntos novos que agora chegam como também quanto às formas novas para o teatro e a performance? Ou, de outro modo: a originalidade do comportamento gay/trans forjará as formas de uma cena igualmente original? Haverá uma cena que, nestas bases, será diferente do teatro feito por artistas héteros? Em outra frente: a posição política aqui bem apontada em drama e melancolia ganhará outros tons? A ideia de gêneros em trânsito na sexualidade afeta de que maneira os gêneros do teatro, em uma possível instabilidade produtiva que gere algo novo ao olhar?

Karen Mezza

Espetáculo-performance passou pelo FETO 2017 em Belo Horizonte

Algumas destas perguntas certamente já estão sendo feitas, em ato, no espetáculo. Outras talvez entrem em processo adiante. Ou não.

De um modo ou de outro, no ponto em que está, o trabalho do grupo não pede, não permite avaliações categóricas. Por exemplo, não é possível olhar o elenco na linha de uma valoração strictu sensu das interpretações. O valor da atuação, se interessar, tem que ser buscado na qualidade daquelas presenças. E elas, mais que sustentadas (se o critério for a teatralidade), estão amparadas fortemente na ética dos discursos. O mesmo vale para as outras áreas da encenação.

A franqueza e a coragem que movimentam o projeto do Rainha Kong são estandartes bonitos, apesar de tristes, em um cortejo que está chegando, que está tomando o teatro com o anúncio de uma ideia radical e necessária sobre o que sempre foi, sobre o que tem sido, sobre o que é e o que pode ser o humano. Uma ideia, para muitos, nova. É preciso ouvir com atenção o que eles e elas, o que nós temos a dizer. O que as pessoas que amam a liberdade em si, a liberdade dos outros e com os outros, têm a dizer. E vamos juntos, o caminho é longo e, como sabemos, pedregoso. Mas há de ter motivos também para a alegria.  Em qualquer caso é como dizia um escritor bacana que tem muito a ver com isso tudo: que seja doce.

Kil Abreu viajou a convite do Festival Estudantil de Teatro, FETO 2017, em sua 17ª edição, realizada em Belo Horizonte (MG), pela Associação No Ato Cultura, Educação e Meio Ambiente.

Equipe de criação:

Direção: Rainha Kong

Autoria: criação coletiva livremente inspirada em texto de João do Rio

Iluminação: Vitinho Rodrigues

Operação técnica: Alexandre Guidorizzi

Com: Aleph Naldi, Helena Agalenéa, Jaoa de Mello e Vitinho Rodrigues

Orientação: Grácia Navarro

Colaborador: René Guerra

Visualidades: Helô Cardoso, Divina Núbia e Rainha Kong

Apoio teórico: Cassiano Sydow e Isa Kopelman

Arte: Aleph Naldi

Material fotográfico e fílmico: Karen Mezza,  Natt Fejfar, Normélia Rodrigues e Thomas BF

Jornalista, crítico, curador de teatro. Dirigiu o Departamento de Teatros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, publicou no jornal Folha de S.Paulo e foi coordenador pedagógico da Escola Livre de Teatro de Santo André. Compôs os júris dos prêmios Shell e APCA. Assinou curadorias para Festival de Curitiba, Festival Recife do Teatro Nacional, Festival Internacional de Teatro de São José do Rio Preto, bem como ações reflexivas para a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp). Edita, com Rodrigo Nascimento, o site Cena Aberta – Teatro, crítica e política das artes, www.cenaaberta.com.br. É membro da IACT – Associação Internacional de Críticos de Teatro.

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