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Encontro com Espectadores

Revisões do feminino em ‘Enquanto ela dormia’

29.3.2018  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Bob Sousa

As pesquisas de uma autora, uma atriz e uma diretora se encontraram na criação de Enquanto ela dormia – obra que aborda o abuso sistemático de mulheres por meio de uma história pessoal. O espetáculo foi tema do 13º Encontro com o Espectador, que ocorreu no dia 28 de agosto de 2017, no Ágora Teatro. Na ocasião, a encenadora Eliana Monteiro e a atriz Lucienne Guedes, ambas reconhecidas por suas trajetórias no Teatro da Vertigem, conversaram sob a mediação da jornalista e crítica Maria Eugênia de Menezes. Em pauta, os métodos de criação da equipe, a força que as imagens adquirem na concepção cênica e a necessidade de afirmação de uma voz autoral feminina.

Leia, a seguir, uma transcrição editada deste diálogo.

Maria Eugênia de Menezes
Esse é mais um Encontro com o Espectador, uma ação do site Teatrojornal – Leituras de Cena, editado por Valmir Santos e Beth Néspoli. Mensalmente, realizamos esse Encontro na tentativa de resgatar ou de criar um canal de diálogo entre a crítica, os artistas e o público. Gostaríamos de agradecer ao Ágora Teatro por receber essa ação desde a sua primeira atividade.

O espetáculo a ser discutido é Enquanto ela dormia, em temporada no Mezanino do Centro Cultural Fiesp. Para falar dele, recebemos a encenadora Eliana Monteiro e a atriz Lucienne Guedes.

Além de intérprete, Lucienne Guedes é dramaturga e diretora, formada em teatro pela ECA/USP e também com formação em dança e música. Como uma das fundadoras do Teatro da Vertigem [1991] participou como atriz em Paraíso perdido e em A última palavra 2.0, e como dramaturgista em Apocalipse 1,11. Foi coordenadora e professora da Escola Livre de Teatro; professora convidada do departamento de Artes Cênicas da ECA/USP; da Escola Superior de Artes Célia Helena e da SP Escola de Teatro. É doutora em Artes pela ECA, foi também artista colaboradora da Cia. Balagan, da Cia. Livre, do Teatro de Narradores e do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. Em 2014, dirigiu Ensaio sobre Angústia, a partir da obra do Graciliano Ramos, e em 2015, como atriz, fez o espetáculo Memórias impressas, no CCSP e no Teatro de Arena.

Começamos a pensar em uma dramaturgia da água. Essa é uma coisa que nos ocorreu desde o início: qual seria a dramaturgia das imagens? Penso muito por imagens, nas imagens que o texto evoca. Prefiro trabalhar com imagens do que com textos (Eliana Monteiro)

Eliana Monteiro é roteirista, encenadora e orientadora artístico-pedagógica de escolas de teatro; integra o Teatro da Vertigem desde 1998 e foi responsável pela direção e concepção do espetáculo O filho; pela intervenção A última palavra é a penúltima e pelos espetáculos Kastelo e Mauísmo. Ela também assina a codireção do espetáculo Bom Retiro 958 metros e a direção de cena e assistência de direção dos espetáculos Paraíso perdido, O livro de Jó, Apocalipse 1,11; BR-3, História de amor – últimos capítulos e das óperas Dido e Enéas e Orfeu e Eurídice.

Queria começar a nossa conversa de hoje a partir de uma questão que me ficou da leitura do programa. A autora, Carol Pitzer, escreve um texto no programa que lerei para vocês: “Algo óbvio precisa ser dito. Este é um texto escrito por uma mulher, dirigido por uma mulher. Não poderia ser diferente. Não que os homens não possam falar de questões relativas ao feminino. Há séculos a história da mulher é contada majoritariamente a partir do olhar masculino. Apesar disso, esta não é uma peça de mulheres para mulheres; esta é uma peça para homens e mulheres”.

Diante disso, pergunto a vocês como foi trabalhar com essa perspectiva. Como se colocaram em relação a essa proposição: de ter a visão de uma mulher sobre uma questão do feminino e nesse embate com essa grande visão do mundo que é masculina, com essa pseudoneutralidade masculina que a gente tanto naturaliza.

Eliana Monteiro
A nossa equipe tinha o [Antonio] Duran que acabou de chegar, também como dramaturgista, e que ajudou muito na pesquisa teórica, o Guilherme [Bonfanti], o Érico [Theobaldo]. O Duran era o mais presente na sala de ensaio e na pesquisa. Então, desde o começo, a gente tinha um cuidado muito grande para não deixar a mulher como heroína nem o homem como vilão. Era um assunto com questões do feminino, mas o meu desejo não era nem panfletário nem agressivo. Essa questão de gênero, apesar de ser muito forte, é resultado de uma pesquisa muito extensa. E o Érico trouxe uma questão: daqui a cem anos, as pessoas vão olhar para cá e pensar como elas permitiram isso naquela época. A gente pensou nesse abuso dela agora, qual é essa história do feminino e todas essas amputações de vidas; a maioria delas imposta por homens. Minha vontade não era ironizar ninguém. Ao trazermos essa questão agora, estamos criando uma rede de proteção em que cada uma pode pular e se sentir acolhida. E se nessa rede houver algum homem que também seja sensível a isso, melhor ainda. O ideal seria alcançarmos algum momento em que não se colocasse mais essa divisão. É claro que agora ela existe, e é preciso falar sobre ela. Mas acho também que há muita gente sensível. Muitos homens que assistem e ficam impactados.

Na construção das cenas só as mulheres se apresentavam, mas essa não era uma imposição, todos podiam participar. Mas o que eu queria era lidar com a dor da personagem, que essa dor fosse real e que a gente conseguisse chegar no âmago dessa dor, mas sem vitimizá-la. Também me parecia importante que tentasse uma saída daquele lugar, que é o que a gente está tentando fazer nesse momento.

Bob Sousa

Lucienne Guedes mira viés testemunhal na atuação

Maria Eugênia
É deixar de naturalizar certas coisas, é essa tentativa de trazer à tona violências e abusos que a gente naturaliza como se não fossem violências e abusos.

Lucienne Guedes
Talvez esse seja o ponto crucial de tudo. Eu me lembro sempre de uma atriz de um documentário sobre o Brecht, que diz que quando a gente pensa no Fausto como personagem a gente pensa na humanidade toda: se Fausto sofre o que sofre ou passa o caminho que ele passa, quem passa é toda a humanidade, mas se Fausto fosse mulher, seria só a mulher, não seria a humanidade toda. E é verdade. Quando iremos colocar uma personagem mulher e imaginá-la sofrendo infernos e tentações do Mefistófeles e ela será humana e não apenas mulher? Para mim, as coisas saem daí já há muito tempo. Tem a ver com a capacidade que a gente tem de imaginar esse lugar, já que fazemos teatro ou literatura. Imaginar que personagem é essa, que outras coisas possam alargar essa visão da mulher. Acho também que tem um contexto histórico muito importante e que eu não consigo analisar completamente agora, mas olhando para dois anos atrás eu fiz Memórias impressas com a Claudia Schapira, no Centro Cultural São Paulo, que tinha um dispositivo de dramaturgia da mulher e do abuso que começava a surgir. Havia relatos de abusos de mulheres em gravações mas a gente não percebia direito o que era aquilo. De vez em quando, alguém vinha falar na miúda que tinha sido abusado. Há dois anos, a questão do abuso não se colocava como hoje.

Há oito anos, fiz um espetáculo também como atriz, o Bruta flor, que tinha direção da Cibele Forjaz e texto da Claudia Schapira. Era um espetáculo sobre o amor, sobre um processo de separação. A gente circulou no Brasil inteiro com ele, quase três anos, e era impressionante porque os homens não seguravam a onda de assistir ao espetáculo, saíam no meio. No final diziam: “Nossa, que sofrimento. Vocês acham que isso é um espetáculo para homem?”. Hoje, pouco tempo depois, vemos homens na plateia do Enquanto ela dormia e percebemos como eles estão consternados e tocados, pensando: “Será que eu sou isso também?”. Estamos em um momento histórico muito propício para esse espetáculo acontecer. Agora, um homem pode olhar para a peça e pensar a si mesmo. Talvez, em dois anos, essa questão do abuso esteja em um outro nível de comunicação e essa peça talvez possa ser modificada em sua própria linguagem. Talvez o vidro [do espaço cenográfico] já esteja quebrado e se trate de uma outra coisa. Então, não consigo ver separação entre o espetáculo ser importante para nós e ser importante também para quem vai assistir. Acho que é o momento certo para ele existir.

Uma das nossas referências foi o trabalho da fotógrafa americana Francesca Woodman [1958-1981]. Ela faz imagens muito fortes, violentas, da mulher dentro da casa, confundida com as paredes. Com o suicídio da artista, Francesca se transformou em um mito e muita gente lê a sua obra por esse viés biográfico. Penso que é fundamental que exista um maior número de mulheres na equipe, e por mais que os homens estejam com a gente há alguns campos que a gente vai ter que chutar para abrir. É impressionante quantas vezes a gente se deparou com pequenos mecanismos de desvio, como olhar para a Francesca e pensar que ela fotografava assim porque ela morreu, porque ela se suicidou, porque era uma mulher que não aguentava a vida. Quantas vezes a gente vê mecanismos pequenos dentro de nós mesmos no meio de um ensaio, mecanismos que driblam aquilo que a gente precisava ver. Mas acho que fomos inteligentes e calmos nesse sentido para não cair nessas armadilhas.

A Francesca Woodman foi não só uma referência, mas também uma espécie de tradutora dos ânimos das coisas. A fotografia dela é tão potente que, às vezes, bastava colocar uma foto no meio da mesa para gente entender uma série de coisas (Lucienne Guedes)

Carol Pitzer – dramaturga do espetáculo
Estou aqui pensando nessa questão da urgência do texto. Quando o escrevi, tinha certeza que queria montá-lo logo. Tinha certeza de que em dois anos o texto estaria, de certa forma, ultrapassado. A urgência dele é nesse momento. E estou falando isso porque hoje li uma notícia de uma autora que sofreu um abuso dentro de um Uber. Durante o relato ela fala sobre o medo de ir a uma delegacia porque um estupro ou abuso é o tipo de coisa que a pessoa precisa provar. Ela fala muito sobre esse lugar, dos homens duvidarem da voz das mulheres. Fiquei pensando que é sobre isso que a peça fala e por isso é relevante falar disso agora, não dá para esperar dois anos. E eu realmente espero que daqui a dois anos a gente esteja já num outro lugar.

Esse não é o primeiro contato que Eliana tem com o texto. Ano passado, ela fez uma leitura dramática no âmbito de leituras no Sesi, com quatro diretores que são selecionados para dirigir três textos. E eu bati muito o pé com o Sesi, eu e mais algumas autoras, de que precisava de uma diretora para as nossas leituras. Parece que quando se pensa em mulheres é difícil você puxar quem são as diretoras. A gente de cara pensa em diretores, em dramaturgos, e está na hora de começar a rever isso. Notar a importância de escrever um texto para uma personagem mulher e escrever texto para mulheres em certos sentidos. Não porque eu não ache que os homens não sejam capazes de dirigir esse texto, mas porque a gente precisa se potencializar, contar as nossas histórias, se dar o lugar no mercado, escrever e preferir que uma mulher dirija não só porque ela vai entender esse texto melhor, mas também porque a gente precisa abrir espaço no mercado. Há mulheres muito potentes fazendo um trabalho muito bom e a gente está aqui para mostrar isso. Os homens se protegeram durante toda a história da humanidade, agora acho que a gente tem de se botar para dentro e se proteger.

Maria Eugênia
Queria falar um pouco do espaço cênico que vocês criaram. Dessa instalação que dialoga com toda trajetória da Eliana Monteiro e de seu trabalho do Teatro da Vertigem em espaços não tradicionais. O lugar em que a personagem de Enquanto ela dormia está é uma cela, uma jaula, mas também uma proteção, uma casa, um abrigo para quem ainda não estava pronta a sair para o mundo. Como foi construída a relação com esse espaço?

Eliana Monteiro
Esse texto me pegou desde o começo. A dramaturgia foge para os contos de fadas e havia a imagem do príncipe que a beija enquanto ela está dormindo. Quando conversei com a Marisa (Bentivegna, cenógrafa) disse que via um lugar de vidro, em que você pensa que está protegido, mas não está, porque o vidro é fácil de quebrar. Marisa fez o desenho e, no princípio, levei um susto porque tinha muita cela e eu via uma coisa toda de vidro. Depois, ao longo do trabalho, foram surgindo janelas. Como se ela estivesse confinada dentro de uma casa, mas com todas aquelas janelas, estivesse desprotegida.

Também via muita água, o que tinha a ver com as memórias, com todos os líquidos que saem do nosso corpo. Mas, principalmente, esse lugar da memória, dessa água represada, que não se solta, de algo que tenta ainda parecer inteiro, firme, mesmo com todas as amputações, mesmo que esteja tudo desmoronando. Começamos a pensar em uma dramaturgia da água. Essa é uma coisa que nos ocorreu desde o início: qual seria a dramaturgia das imagens? Penso muito por imagens, nas imagens que o texto evoca. Prefiro trabalhar com imagens do que com textos. Na imagem, parece que tudo se resolve mais rápido. Então, chegamos a essa estrutura de cenário: é uma casa e é justamente dentro de casa que 90% das mulheres são violentadas por pessoas muito próximas. Então é uma desproteção total.

Bob Sousa

Atriz mergulha no espaço concebido por Marisa Bentivegna

Maria Eugênia
Há uma coisa muito impactante no espetáculo que é o uso do corpo da atriz, as maneiras de expor esse corpo, de usá-lo como parte dessa instalação. Além da inspiração na obra de Francesca Woodman, que se coloca de maneira muito forte. Como vocês trabalharam esse corpo?

Lucienne Guedes
Sabendo dessa proposta da Eliana, do cenário, da água, entendendo a importância das imagens para ela, tentei lidar com esses elementos. Gosto muito disso tudo, de fazer com que o corpo do ator seja testemunhal. Uma coisa é narrar, fazer de conta que foi testemunha. Outra coisa é colocar o corpo do ator na questão. Então, ainda que não seja o corpo da Dora [professora de literatura protagonista], eu sou, efetivamente, um corpo testemunha daquilo que acontece todas as noites ali. Trata-se de colocar o corpo em risco e isso encontrou uma potência no que a direção propunha.

Isso tem a ver com a formação da gente no final dos anos 1980 e 90. Havia muito treinamento do corpo. E eu vim da dança também. Então, por mais que tudo tenha se transformado, e eu tenha vislumbrado e visitado outros campos, esse lugar ainda é muito importante. Para cada uma das questões da dramaturgia que apareciam nos nossos ensaios, a direção propunha uma pergunta a ser respondida cenicamente. Uma das perguntas era: quais são as amputações que nós mulheres hoje sofremos para existir nesse mundo? A Francesca Woodman foi não só uma referência, mas também uma espécie de tradutora dos ânimos das coisas. A fotografia dela é tão potente que, às vezes, bastava colocar uma foto no meio da mesa para gente entender uma série de coisas. Não usar a fotografia em cena exatamente, mas para entender e sintetizar algumas coisas.

Eliana Monteiro
Na sede do Vertigem, há um galpão onde ficam os cenários de quase todas as peças. Fizemos um exercício ali. Era como se a Lucienne estivesse voltando para esse passado e eu queria que ela explorasse todo o cenário. Chegamos a três eixos: o conto de fadas, a fotografia de Francesca Woodman e a questão do depoimento pessoal. Eu conheci o trabalho da Francesca no ano passado e fiquei completamente impactada. Conversamos muito a respeito porque não queria fazer essa coisa direta, projetando imagens. Então, pensei nesse depósito com todo o material. A Lucienne também foi do Vertigem, ali havia muita história dela. Naquele dia descobri o fio da peça. Ela pegou os objetos e começou a colocar no corpo e a Francesca tem umas fotos em que você não sabe se ela está emparedada, se ela está dentro da casa ou se a casa está dentro dela. De certa forma – a gente nunca falou sobre isso – também acho que tem a ver com o trabalho de site specific possível dentro dessa proposta, porque as fotos da Francesca são isso, ela está o tempo inteiro lidando com o que está lá.

Tinha medo de o texto ser panfletário. A depender da postura do diretor ele poderia ser. É mérito da encenação se o texto está em outro lugar (Carol Pitzer)

Valmir Santos
A personagem e a narrativa trazem referências aos poderes públicos: o espaço da escola, da delegacia, do tribunal e o direito da cidadã em relação à violência que sofreu. O espetáculo é bastante incisivo em relação ao nosso tempo. A encenação dá ao espectador a impressão de estar em uma assembleia. Existe, portanto, esse aspecto político da nossa época aparecendo de forma sublinhada, um tema íntimo sendo trazido com uma assinatura política. Vocês assumiram esse tom na encenação ou isso já estava no texto?

Carol Pitzer
Como as mulheres existem nesse mundo que é majoritariamente masculino, em que as leis são escritas por homens e o que a gente faz para resistir? Marici Salomão [coordenadora do Núcleo de Dramaturgia Sesi-British Council] diz que o final do texto é sempre o ponto de vista do autor. É com ele que o espectador vai sair dali. Mas eu não poderia, dentro desse texto, dizer que a personagem consegue, por meio da lei, trocar de nome. Isso seria irreal. Ao mesmo tempo, não queria ser derrotista. Termino o texto com o que essa mulher fez a partir dessa negativa da justiça: Ela decide se levantar e se denominar de outra maneira. Apesar do mundo ser masculino e violento com a gente, é possível se levantar e tomar a narrativa em nossas mãos.

Tinha medo de o texto ser panfletário. A depender da postura do diretor ele poderia ser. É mérito da encenação se o texto está em outro lugar. E se torna inclusive muito mais potente por isso, porque o público não sai com uma bandeira nas mãos, mas afetado poeticamente por aquelas questões.

Eliana Monteiro
Inicialmente, o fato de ela assumir outra identidade parecia significar muito pouco. Me esforcei para não ser derrotista nesse ponto e retornei a uma obra de referência para mim que é o livro Deslocamentos do feminino, de Maria Rita Kehl. Ali, ela aponta que o grande deslocamento do feminino é fazer o furo no muro da linguagem. Dora, como professora, tem um lugar de fala efetivo. E aí voltei a gostar muito dessa professora que tinha sido afastada, mas retorna o trabalho.

Beth Néspoli
Na peça, é o fato de a personagem presenciar um abuso e falar sobre ele o que detona toda uma transformação. A utilização da água valoriza muito esse inconsciente que atropela a personagem. Ela não puxa a memória, é quase como se a memória a puxasse. É esse inconsciente querendo tomar consciência. Queria saber mais sobre as movimentações diferentes envolvendo a água.

Eliana Monteiro
Para que a personagem despertasse fizemos um movimento inverso: para ela acordar, tinha que estar completamente imersa nas memórias. Mas tentamos evitar a metáfora muito direta, bagunçando um pouco a ligação entre o que estava sendo feito com a água e o que se passava no texto. Conseguimos usar a água como uma metáfora potente da memória, sem que fosse ilustrativa.

Bob Sousa

A água alude ao fluxo narrativo na dramaturgia de Carol Pitzer

Flavio Bassetti – analista da área de artes cênicas do Sesi-SP
Eu estou lá no Sesi recebendo os feedbacks, inclusive indiretamente pelo [canal] fale conosco. E justamente o retorno positivo vem de pessoas comuns, que não são do meio artístico. Estou impressionado com o entendimento do público, as pessoas entendem que a água representa o inconsciente.

Valmir Santos
O texto consegue ser muito íntimo e universal, como se fosse uma fábula às avessas, permitindo que todo mundo compreenda esse monstro que está no quarto. A dramaturgia traz outras possibilidades de interpretação dessa estrutura. Talvez pela trajetória de Carol com trabalho social, seja possível ver no texto aspectos de uma universalidade desses conteúdos e, ao mesmo tempo, a formalização na escrita.

Carol Pitzer
Fui entendendo que se eu fosse contar só a história da Dora teria que me afundar em um drama. Durante as provocações do próprio Núcleo, consegui mergulhar mais fundo. Entendi que esse abuso é muito profundo, de uma criança que é abusada pelo próprio pai, de alguém muito próximo, mas é também esse abuso diário que a gente vive. Toda mulher já esteve num transporte público e mudou de lugar.

Eliana Monteiro
Ao fim de uma sessão, um senhor pediu para me chamar. Ele disse que trabalhava numa ONG com mulheres. Estava chorando muito e disse que conhecia muitos depoimentos de mulheres que sofreram isso, que achava tão importante a hora em que ela quebra o vidro, e que queria muito que elas conseguissem fazer isso. Às vezes, também recebemos cartas do público. Sinto que as pessoas estão muito atentas ao espetáculo, você percebe que a concentração está lá e algo está sendo processado.

Maria Eugênia
Os contos de fadas formaram o nosso imaginário. A própria psicanálise lida com essas figuras da Branca de Neve e da Bela Adormecida. A mulher se identifica com esse lugar de sedução ditado por essas figuras. Como se o desejo dela fosse encontrar alguém que a deseje. Quanto mais inerte ela for, mais será desejada. Como vocês trabalharam essa referência aos contos de fada que existe no texto?

Eliana Monteiro
É uma referência já muito forte do texto. O Duran trouxe uma pesquisa para a gente, e ele pode até falar melhor sobre. Quanta fortuna ainda se gasta hoje num casamento, num vestido de princesa, tem todo um imaginário sendo construído. Tudo bem que daqui um ano ou dois, o príncipe vira sapo e ela também, mas isso já está no nosso DNA. Agora, como um antídoto, a gente está tentando tirar, acordar mesmo. Uma das experiências que a gente pediu para Lucienne, uma vivência, era ela sair pela rua e procurar um lugar que ela pudesse encontrar coisas, fazer uma casa e deitar e dormir. A Isa [Isabella Neves, assistente de direção] foi junto para ver onde era e depois chamar a gente para ir ver, e quando a gente chegou a Lucienne já tinha construído, tinha uma parede de grafite, mas a casa era acima de um bueiro, num papelão. E parecia conto de fadas porque tinha aquele monte de desenho, mas era num papelão, extremamente frágil e numa curva. E aí cada um ficou num canto olhando, distante para não dar muito na cara, os carros passavam. Aí um cara passou e deu uma paradinha, e eu comecei a ficar com medo porque o lugar era muito perigoso, mas ela quem tinha escolhido. Passou um rapaz, olhou, ele estava com um estilete na mão, e perguntou para mim se ela estava passando mal e eu respondi que não sabia e ia perguntar. Ele foi perguntar para Lucienne e passou uma mulher, e começou a gritar: “Isso, safada. É isso mesmo que você merece”. E começou a falar muitas coisas pejorativas. A Lucienne ficou lá uma meia hora, quarenta minutos. Então, para mim, foi uma experiência muito desgastante porque ela estava numa situação muito vulnerável e foi muito tenebroso escutar essa mulher. E o mesmo aconteceu quando elas foram na delegacia da mulher, a Lucienne e a Isa, e elas contando que a mulher fala baixinho o depoimento e que a atendente grita: “Mas por que você está com ele ainda?”.

Lucienne Guedes
Eu percebi, primeiro, que é muito difícil escolher um lugar na rua para ficar porque são muitas coisas que concorrem aqui. Além de tudo, estava chovendo. O conto de fadas foi muito bacana para a gente entender inclusive o que o [Walt] Disney faz com isso, que é o que em larga escala as pessoas assistem. De onde vem aquela versão plastificada que a Disney mantém. As personagens femininas também são as crianças: vulneráveis, frágeis. E a gente aceitava isso um tempo atrás. Por isso que as personagens são mulheres e depois a gente vai entendendo que a psicanálise toda está baseada nessa semelhança de vulnerabilidade e de fragilidade.

Maria Eugênia
Acho que é uma questão de visibilidade também. A gente naturaliza muito as coisas, o homem é preparado para ser protagonista, para ser autor. A mulher é preparada para ser coadjuvante, intérprete, no máximo. Não para dirigir, para dizer.

Lucienne Guedes
A própria Disney agora tem um aspecto em que as mulheres estão em outro lugar. A Moana que é uma guerreira, mas que cresceu para ser chefe de Estado; a Valente cresceu atirando flecha. Então, tem muito de como essa criança cresce. Se a gente fosse criada para ser chefe de Estado, desde o comecinho…

Valmir Santos
Queria que o Antonio Duran falasse um pouco da experiência dele como dramaturgista nessa criação.

Antonio Duran – dramaturgista
Muitas vezes a Carol estava junto com a gente para ir chafurdando e debulhando o texto. Na primeira parte, ficamos quatro horas e foram surgindo muitas ideias. Meu trabalho como dramaturgista é ir achando esses sentidos e esses significados do que o texto estava trazendo. Ao mesmo tempo, junto com os eixos de pesquisa levantados: a Francesca; os contos de fadas e as memórias. As memórias tiveram desdobramentos porque a camada da memória não é uma memória, você tem a memória do corpo, do ônibus, do pensamento dela falando com ela mesma. Então, a gente foi detalhando o que era uma coisa e outra. Meu trabalho foi trazer material para ir se discutindo. Junto com elas, ao longo do processo, levei umas cortadas aqui e ali, mas também foi muito rico nesse sentido, muito produtivo.

Quero continuar essa pesquisa, comparando com o masculino, porque isso me coloca também diante da questão de como o homem é criado, e como que esse homem está reagindo a tudo isso.

Eliana Monteiro
Por que a igreja católica diz que Jesus nasceu de uma mulher sem pecados? Por que Deus inventa um ser que tem um órgão só para dar prazer, o único animal que tem no planeta somos nós, que não serve para nada senão para dar prazer? Por que isso gera tanto medo? Acho que é um medo tão horroroso, tão crônico, que gera esse abafamento, emudecimento. Uma das imagens mais impactantes que vi foi a dos pés das chinesas, que só podiam ter dez centímetros. Com três anos, as meninas têm seus dedos dos pés quebrados para trás. Depois, quebravam o calcanhar e ficava muito amarrado. Assim, quando elas crescem, quase não conseguem se movimentar e, quando se movimentam, têm que fazer muita força. Tudo isso para que seus lábios vaginais ficassem mais enrijecidos. Isso aconteceu por 900 anos. É muito tempo e tudo foi silenciado, esquecido. Faz muito tempo que eu dirijo no Vertigem. No Kastelo, várias pessoas vieram me perguntar se eu estava executando um conceito do Antonio Araujo. E eu falei que não, que eu quem tinha pensado. Repórteres mulheres me perguntaram isso também sobre a peça Filho. Desta vez, ninguém me perguntou ainda, mas estou esperando alguém me perguntar se eu estou executando uma história dele.

Lucienne Guedes
E essa coisa de a gente fazer quatro, cinco vezes mais. A quantidade de coisas que a gente precisa fazer para alguém olhar e notar é muito maior, é muito desigual.

Equipe de criação:

Texto: Carol Pitzer

Concepção e direção: Eliana Monteiro

Com: Lucienne Guedes

Dramaturgismo: Antonio Duran

Desenho de luz: Guilherme Bonfanti

Cenografia: Marisa Bentivegna

Figurino: Marichilene Artisevskis

Trilha sonora: Erico Theobaldo

Vídeo: Bruna Lessa

Voz off: Antonio Duran e Cibele Bissoli

Assistente de direção e direção de cena: Isabella Neves

Assistente de dramaturgismo: Bruna Menezes

Assistente de iluminação: Aldrey Hibbeln e Danielle Meireles

Assistente de cenografia: Amanda Vieira

Cenotécnicos: Cesar Rezende Santana (Basquiat), Fernando Lemos Silva, Ricardo Oliveira e Zito Lemos

Costureira: Judite Gerônimo de Lima

Operação de luz: Aldrey Hibbeln

Operação de som: Tomé de Souza

Video mapping: Michelle Bezerra

Produção executiva: Andrea Pedro

Assistente de produção: Leonardo Monteiro

Assessoria de imprensa: Márcia Marques – Canal Aberto

Designer gráfico: Luciana Facchini

Fotos: Mayra Azzi

Supervisão geral: Eliana Monteiro

Realização: Sesi-SP

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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