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Crítica

As idades do instante Sobrevento

25.5.2018  |  por Valmir Santos

Foto de capa: André Araújo

No monte composto por milhares de partículas tênues ou na espessa lama que aos poucos seca na superfície do chão ou da pele, o pó é elemento essencial em dois trabalhos recentes do Grupo Sobrevento: Terra (2016) e Escombros (2017). A fonte primal do solo da natureza (donde a conhecida apropriação bíblica que modela o homem a partir da argila) está na base dramatúrgica capaz de instaurar campos narrativos de fertilidade e aridez, respectivamente. O primeiro espetáculo permite vislumbrar o caminho imaterial, a via do afeto. O segundo, a condição humana sob as formas do abandono material.

Assistir a ambos em menos de um dia de intervalo foi uma combinação de sentimentos como o da liberdade pelo abstracionismo sensível, no caso de Terra, que tem como público dileto os bebês e, por extensão, pais e responsáveis. Em tempo: as artes cênicas centradas nos primeiros meses e anos da infância são uma realidade na produção de países da Europa e há pelo menos uma década conquistam cada vez mais espaço entre os artistas brasileiros, resistindo a preconceitos. O sentimento oposto, de angústia, no caso de Escombros, bateu pela concreção a palo seco, cortante como no poema de João Cabral de Melo Neto ou na canção de Belchior. A montagem destinada ao espectador adulto é um grito congelado nesta era dos desmanches à brasileira, abruto e doloroso.

‘Terra’ e ‘Escombros’ confirmam o quanto os princípios filosóficos e os fundamentos técnicos assentados na longevidade do grupo ganharam novos sopros de invenção e autopercepção

As duas peças tomam o teatro de objeto como eixo, mas sem as convenções desse braço expressivo da linguagem do teatro de animação que inclui bonecos, máscaras e sombras. A assimetria não é surpresa para quem acompanha a pesquisa continuada do Sobrevento em 31 anos de trabalho, sendo os últimos oito deles dedicados a escarafunchar as possibilidades da cena brotada das coisas. Um exemplo. Aqui, os diretores e atores Luiz André Cherubini e Sandra Vargas abrem mão de uma mesa para manipular miniaturas, procedimento adotado na até então mais bem-sucedida criação da fase atual, São Manuel Bueno Mártir (2013), adaptação da novela de Miguel de Unamuno (1864-1936). Lá, os ready-made do artista plástico Mandy, talhados de madeira e ressignificados apareciam alinhados à fábula de um padre de vilarejo cético ante a fé cristã.

Em Terra, a crença testemunhal não está nos olhos de quem vê, mas de quem sente. Numa sessão dominical, às 14h, crianças na faixa sugerida de seis meses a 3 anos conformam a linha do semicírculo em que a figura da mulher/menina atuada por Sandra Vargas pisa ou fica deitada no território de terra fofa. Dos sulcos que faz com as mãos, enquanto narra micro-histórias, ela revolve objetos como o pano de crochê feito pela avó. A concha remanescente de quando o pai a levou para conhecer o mar e nele, espelhado, enxergou o céu. Ou o livro de cujas páginas emanavam estrelas.

André Araújo

A atriz e cofundadora do Sobrevento, Sandra Vargas, no solo ‘Terra’

À letra fria, esses ganchos podem soar o mais do mesmo da dramaturgia para crianças. Não o são. A quietude transcorrida nos 30 minutos de sessão, com a gente miúda de olhos atentos sentada no colo – ou duas delas escapando dos braços para bordejar a arena de terra em seus primeiros passos – confirma o quanto os princípios filosóficos e os fundamentos técnicos assentados na longevidade do grupo ganharam novos sopros de invenção e autopercepção.

Criar para bebês pressupõe um tempo outro na ação física, no manejo do objeto, na dimensão espiritual capaz de descondicionar o ator ou a atriz no modo como dispõe à audiência o pequeno planeta cênico. Em Terra o acompanhamento ao vivo de instrumentistas com violão e violoncelo confere densidade à atmosfera.

Anotamos “quietude”, linhas atrás. O choro intermitente de duas crianças não quebrou a fenomenologia do instante em que gesto, luz, som e coisas desterradas endossaram um enredo em torno da saudade. O pretérito da mulher se fez presença na menina. Enquanto isso, os adultos presentes negociavam a atenção aos bebês e o envolvimento com a narrativa. Para quem assistiu imbuído da tarefa da crítica, desacompanhado de bebê, portanto, foi particularmente especial ver o jogo de cintura de uma espectadora, provavelmente a mãe, amparando no colo uma das crianças para cessar o choro, negociar o silêncio interior, enquanto o provável pai manteve-se à margem da roda, totalmente desvinculado, sem demonstrar solidariedade para com aquela que tentava acudir. Chorar talvez fosse uma maneira de a criança reclamar tamanha desconexão em plena construção coletiva – o artista em mão dupla com o público. Há beleza em dobro aí compartilhar a sala semi-escura com pessoas cuja maioria jamais havia olhado uma na outra.

Disso nos ocorrem parênteses. Em Teatro sem diretor (Edições CPMT, 2012), livro em que se pondera sobre a relevância das companhias ou ensemble, termo francês que designa conjunto, equivalente ao nosso mais usual grupo, o diretor e pedagogo russo Jurij Alschitz relata que na peça Seis personagens em busca de um autor o italiano Luigi Pirandello (1867-1936) expõe uma das verdades teatrais mais importantes, a saber: primeiro nasce a companhia (o espírito) e depois o seu teatro (o corpo). “Portanto, depois de muitos anos de experiência, estou pronto para afirmar que uma companhia frequentemente se forma sozinha e muito tempo antes de o teatro criá-la. Para usar uma expressão metafísica: é o fruto que procura o ventre”. Relativizando, quem sabe, o caráter absolutista de “sozinha”, o Grupo Sobrevento encontra no teatro para bebês uma maneira de reavivar os sentidos que o fizeram trilhar sua história até aqui. A circularidade como ponto de partida é uma das imagens moventes em Terra.

André Araújo

Sueli Andrade e Luiz André Cherubini são algumas das figuras da casa-país

Já em Escombros, na noite anterior, a imagem está para o objeto assim como a sombra para o sujeito. Uma é imitação ou representação do outro. Ou quase sempre. No ímpeto de rever a volta ou simplesmente constatar seus impasses, seis atores-criadores expõem figuras numa sequência de ações e sensações envolvendo aqueles que já se foram e são resgatados por meio de e por entre cômodos, corredores, mesas, cadeiras, louças, pratarias, flashes e tudo o mais que reconstitua uma casa arruinada que não é uma, mas múltipla. Uma casa-país, como também se verá.

Em cada um desses homens e mulheres, vemos o olho encharcado d’água na face frisada pela máscara de barro. Como se estátuas, apesar do ruído das botas de quando caminham sobre as pedras e tijolos. Estáticos ou em fluxos que cruzam o espaço cênico em “X” ou atravessam as saídas laterais, os humanos alcançam estados inanimados enquanto os objetos são realçados tal qual seres animados. Nessa inter-relação de pesos e medidas, um candelabro para tempos obscuros, um pinguim de cerâmica que orna geladeira ou uma porta solta entre duas pessoas presas aos clamores da alma cumprem a sintaxe do todo. [É preciso pontuar que, além do casal fundador do grupo, evidencia-se em cena o fortalecimento da atuação conjunta por Maurício Santana, Sueli Andrade, Liana Yuri e Daniel Viana].

Ao especular sobre o que se leva e o que fica, quando fica, Escombros remete a Casa tomada, o conto do argentino Julio Cortázar (1914-1984). Nele, dois irmãos, um rapaz devotado à literatura e uma moça que adora fazer crochê tem os cômodos, os corredores e os demais espaços da casa tomados por sabe-se lá quais invasores. Aos poucos, eles vão se entrincheirando, perdendo o que lhe era próprio ou propriedade, até serem efetivamente expulsos.

André Araújo

Cena final da obra adulta que ecoa ‘A casa tomada’, conto de Julio Cortázar

O espetáculo desenvolve um processo tal de acumulação simbólica – muito bem sintetizado no colecionador de pedras que carrega seu fardo –, estimulando a livre associação do título da peça com a falta de perspectivas. Entulhos sociopolíticos. Só para ficar num dado, é cientificamente provado que o corte de verbas em programas sociais que o governo Temer decretou por vinte anos, a partir de 2015, está aumentando o índice de mortalidade infantil que vinha sendo minorado. É pragmatismo desse tipo de austeridade, arrebentada sempre para o lado mais fraco, que essa experiência cênica dá a entender sem referir-se ao noticiário. Além das imagens, a coreografia das memórias reconhecíveis fala por si.

E a música incidental de Arrigo Barnabé suporta as tensões subterrâneas ou à luz, instrumentalizando o drama para culminar a voz de Márcio de Camillo na canção final composta originalmente por Geraldo Roca e Rodrigo Sater, O afeto que se encerra. Os primeiros versos são indutores do sentimento que restou de um espetáculo poeticamente amargo. Porque os tempos assim pedem. “Já não és a mãe gentil/ Dos nativos cordiais/ Uma volta exigiria megatons/ De Tons de sabiás pelos Leblons/ Edifícios de Vinicius, plantações de Dorivais”.

.:. Leia como foi o Encontro com o Espectador acerca do espetáculo São Manuel Bueno Mártir, com participações de Sandra Vargas e Luiz André Cherubini.

.:. Visite o site do Grupo Sobrevento.

Serviço:

Terra

Onde: Espaço Sobrevento (Rua Coronel Albino Bairão, 42, Belenzinho, próximo ao metrô Bresser-Mooca e viaduto Bresser, tel. 11 3399-3589)

Quando: Sábados e domingos, às 14h. Até 27/5

Quanto: Grátis

Reservas: info@Sobrevento.com.br

Classificação indicativa: seis meses a 3 anos

Capacidade: 70 lugares

André Araújo

O espaço cênico do espetáculo voltado para bebês

Equipe de criação:

Texto, direção e interpretação: Sandra Vargas

Cenografia e adereços: Liana Yuri e Sueli Andrade

Figurino: Sandra Vargas

Direção musical e músicas originais: William Guedes

Iluminação: Renato Machado

Preparação corporal: Sueli Andrade e Almir Ribeiro

Realização: Grupo Sobrevento

Projeto realizado por meio da 31ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo

Serviço:

Escombros

Onde: Espaço Sobrevento (Rua Coronel Albino Bairão, 42, Belenzinho, próximo ao metrô Bresser-Mooca e viaduto Bresser, tel. 11 3399-3589)

Quando: Sábados e domingos, às 20h. Até 27/5

Quanto: Entrada franca.

Reservas: info@Sobrevento.com.br

Classificação indicativa: 16 anos

Capacidade: 70 lugares

Equipe de criação:

Criação: Grupo Sobrevento

Dramaturgia: Sandra Vargas

Direção: Sandra Vargas e Luiz André Cherubini

Com: Sandra Vargas, Luiz André Cherubini, Maurício Santana, Sueli Andrade, Liana Yuri e Daniel Viana

Cenografia: Luiz André Cherubini e Dalmir Rogério

Adereços: Sueli Andrade e Liana Yuri

Iluminação: Renato Machado

Figurino: João Pimenta

Música original: Arrigo Barnabé

Canção final composta: Geraldo Roca

Interpretação da canção: Márcio de Camillo

Assessoria de imprensa: Márcia Marques – Canal Aberto

Realização: Grupo Sobrevento

Projeto realizado por meio da 31ª edição do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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