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Crítica

A maldade servida por Marie NDiaye

5.6.2018  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Cacá Bernardes

Pode soar familiar ao espectador brasileiro um texto desagradável, na acepção que Nelson Rodrigues (1912-1980) impingiu ao próprio teatro pela diligência às “obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de produzir o tifo e a malária na platéia”. Ele declarou isso na primeira década de produção dramatúrgica, nos anos 1940, coerente com sua verve. Aquela frase bastante citada, e de certo modo amortecida com o tempo, reaviva a memória diante de um espetáculo como Hilda, que introduz o teatro da romancista Marie NDiaye entre nós, por meio do Núcleo Caixa Preta, com a fundadora Cácia Goulart no elenco e tendo Roberto Audio como diretor convidado.

É irritantemente absurdo o desatino verbal de Madame Lemarchand em sua obsessão pela nova empregada, cujo nome dá título à peça e jamais aparece em cena. O apagamento físico não impede sua presença onisciente no imaginário da patroa que praticamente monologa durante toda a narrativa centrada na moradora de conjunto habitacional periférico (esse pleonasmo universal).

Corpo, pensamento, atitude, condição de classe, sexualidade e até o sorriso da empregada, tudo é abduzido por aquela que raciocina feito um dispositivo pagador: afinal, sua única moeda de troca diante da falência afetiva, da miséria humana também desposada cena a cena.

A contemporaneidade com que a dramaturga francesa expõe cruelmente as ideias e comportamentos arcaizantes de Madame Lemarchand, atuada por Cácia Goulart, é um teste para os artistas envolvidos na montagem brasileira

A domesticação da exploração trabalhista tem no francês Jean Genet (1910-1986) uma das contribuições mais agudas para os palcos do mundo em As criadas. Drama tecido pelas contradições tanto por parte das irmãs Claire e Solange, que atendem à Madame, como desta para com aquelas, de modo que os perfis de vilã e de vítimas não se enunciam tão puramente como possam ser presumidos.

Marie NDiaye dispensa meio-tons. Escrita em 1999, na virada de milênio, Hilda não dá margem para ambiguidades. Ficcionaliza com clareza a temática urgente e atual do quão a classe média ou a burguesia, historicamente, subjugam a força de trabalho das mulheres e dos homens contratados e tragados para suas casas ou mansões.

A série televisiva Downton Abbey (2010-2015), sobre a aristocracia inglesa e seus criados no início do século XX, ou o longa-metragem nacional Que horas ela volta? (2015), em torno da migrante nordestina que hospeda sua filha na casa da patroa em São Paulo – e a moça faz tremer as estruturas da “casa-grande” –, são duas aproximações afins que nos ocorrem.

Jogar no limite talvez seja um procedimento de escrita seguro que Marie NDiaye traz de sua biografia, mulher negra nascida em 1967 na comuna de Pithiviers, a cerca de 90 km de Paris, filha de mãe francesa e pai senegalês (que as abandonou em criança).

A contemporaneidade com que expõe cruelmente as ideias e comportamentos arcaizantes de Madame Lemarchand é um teste para os artistas envolvidos na montagem. Do início ao fim, a sensação é de que tudo pode descarrilar. Desse estado “por um triz” emerge a atuação de Cácia Goulart, como patroa, equilibrando-se no torvelinho verborrágico.

Cacá Bernardes

Cácia Goulart é a patroa e Zé Geraldo Jr., o marido da empregada ocultada

A primeira camada de repulsa a essa protagonista está na voz. A estridência acelerada com que madame achaca o marido da empregada, o marceneiro Frank, provoca um distanciamento natural do espectador para com o ardil que se desenha. Improvável qualquer identificação, como aquela gerada por Iago em Otelo, em que o público pode cair na graça de quem arma a perfídia passo a passo.

Mas como dar corpo e voz à vulgaridade incessante, à humilhação ostensiva? Cácia exterioriza a alienação em registro que, num primeiro momento, mimetizam a caricatura, mas não demoramos a notar o trabalho da atriz sobre tal personagem limítrofe. À crosta de brutalidade gerada, surgem nuances ou propriamente cinismos. Há um coração por trás da dragoa da maldade que um dia já teria lutado por transformações da realidade social, restando lá no fundo d’alma algum resíduo socialista, como alega, quem sabe.

Cácia é duplamente o esteio do espetáculo, dando unidade ao caos interior da dona da casa e do dinheiro, bem como, paradoxalmente, projetando visibilidade à empregada ocultada, destituída dos seus direitos (mas que a autora, perspicaz, alça ao título). Atuação e encenação dão plausibilidade à mulher interditada por meio de aproximações, distâncias e acenos – ela nunca está dentro.

O diretor Roberto Áudio subsidia a performance de Cácia com uma atmosfera nonsense, desmaterializando o espaço cênico em contraponto à alegada e esbanjada riqueza de madame, valorizando a sutileza do desenho de luz de Lúcia Chedieck. A música original de Marcelo Pellegrini também é uma firme aliada nos momentos suspensivos para que o projeto não ceda às tentações da caricaturalidade.

Contudo, é no mesmo campo da atuação que a experiência se torna irregular. A adesão realista em Frank (por Zé Geraldo Jr.), o marido de Hilda, e Corina (Beatriz Oliva), a irmã, discrepa das outras escolhas da encenação. A falta de potência é gritante nas contracenações, como quando o marido tenta visitar Hilda ou quando a patroa invade o cômodo onde ele mora com os filhos e a esposa, nos arrabaldes.

Outra dissonância é a dispensável camisa da seleção canarinho para conotar na mandante rica a inclinação fascistoide ou paneleira dos dias. Desincentivo ao poder de livre-associação a partir do que a dramaturgia já circunscreve – ou que o brilho dourado do agasalho da mulher deixava subentendido entre os mal-estares que o texto espelha. A peça de Marie NDiaye calha ao contexto brasileiro e torna seu conteúdo ainda mais aviltante pelas desigualdades sociais e de renda no país.

Serviço:

Hilda

Onde: Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho (Rua Vergueiro, 1.000, tel. 11 3397-4002)

Quando: Sextas e sábados, às 21h; domingo, às 20h. Até 10/6

Quanto: R$ 15 (meia) ou R$ 30

Duração: 90 minutos

Classificação indicativa: 16 anos

Capacidade: 321 lugares

Cacá Bernardes

A montagem brasileira de ‘Hilda’, da francesa Marie NDiaye, é dirigida por Roberto Audio

Equipe de criação:

Dramaturga: Marie NDiaye

Direção: Roberto Audio

Tradução: Bibianne Riveros

Atores: Cácia Goulart, Zé Geraldo Jr. e Beatrix Oliva

Iluminação: Lúcia Chedieck

Música original: Marcelo Pellegrini

Cenário e figurinos: Rosângela Ribeiro

Preparador de atores: Alexandra da Matta

Fotografia: Cacá Bernardes

Vídeo: Bruna Lessa/Bruta Flor Filmes

Designer gráfico: Osvaldo Piva

Idealização e direção de produção: Cácia Goulart

Produtor executivo: Lucas Iassen

Realização: Núcleo Caixa Preta da Cooperativa Paulista de Teatro

 

 

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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