Crítica
Brasília – O peso da moral protestante sobre os ombros de uma mulher infiel pode minar a paciência do público diante do espetáculo A Bergman affair (Um caso de Bergman). A protagonista é mãe de três crianças num casamento sem amor. Involuntariamente, o enredo sintoniza com a hora brasileira de avanço do conservadorismo religioso, a captura do Estado presumidamente laico por forças obscurantistas, assim como contrasta a consciência de gênero que ganha corpo e resiste bravamente ao machismo.
Ou seja, talvez o país tenha sido mesmo um bom lugar para a estreia mundial da montagem do drama burguês que teve duas sessões no 19º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília e segue para Porto Alegre e Rio de Janeiro.
Premido pelo desejo e pela moral, ‘A Bergman affair’ assume-se enquanto experimento artístico capaz de transigir com a memória fílmica e pessoal de Bergman e precipitar-se com solidez em reinvenções no modo de afetar o interlocutor a essa altura do século XXI
Felizmente, o deslocamento temático não tira o mérito da proposição artística da companhia francesa The Wild Donkeys (Os Burros Selvagens, em tradução livre), nome capcioso em tempos de selvageria explícita, encabeçada pela atriz italiana Olivia Orsini e pelo ator francês Serge Nicolaï. Ambos participam de companhias europeias de teatro de pesquisa, como o Théâtre du Soleil, e desde 2016 tocam o núcleo em paralelo – é o mesmo casal que teve a gravidez do filho e a vida de artista documentadas no filme Olmo e a gaivota (2015), de Petra Costa e Lea Glob.
O primeiro desafio deles foi a transposição cênica de Confissões privadas (roteiro autobiográfico também traduzido por Conversas privadas, do título sueco Enskilda samtal), que o cineasta Ingmar Bergman (1918-2007) escreveu em 1996, dirigido no mesmo ano pela norueguesa Liv Ullmann, com quem viveu por cinco anos e teve uma filha. Liv é atriz icônica da filmografia do artista, presente em Persona, Gritos e sussurros, Cenas de um casamento e Sonata de outono, entre outros.
O estudante de teologia atuado por Andrea Romano, amante da dona de casa, por Olivia Corsini
Na peça, Olivia interpreta Anna. A mulher de um pastor tem um caso com um estudante de teologia 11 anos mais novo e é convencida por um conselheiro espiritual, também um pastor decano, a revelar a história ao marido.
Filho de pastor luterano e de uma enfermeira, Bergman partiu de um episódio verídico. Após a morte da mãe, encontrou um antigo diário com anotações relativas a uma traição. Entregou o caderno ao pai que, durante meio século de casamento, jamais cogitou essa possibilidade.
Nicolaï dirige, é um dos adaptadores e também atua. A cena é atravessada por uma atmosfera crepuscular reflexa dos processos interiores das personagens, sombras e impulsos. O tratamento estético prefere a contramão do espetacular, combinando tons ilusionistas ao naturalismo das situações. Tudo transcorre em baixo-relevo, valorizando o primeiro plano das atuações. As expressões dos rostos de Anna, do marido Henrik (por Stephen Szekely) e do velho aconselhador Jacob (por Gérard Hardy) emanam a força do close-up cinematográfico, apesar da distância do público na sala multiuso do Teatro Sesc Garagem. As vozes modulam em meio-tom e pouco se alteram nos momentos de explosão emocional. Contenção irrefletida nos corpos.
Sentimentos contraditórios suscitados por aflição, crença e tesão são fisicamente delineados. Há uma aura nos estados corporais que faz destes o território de liberdade e de verdade que o dogma não acessa. A apropriação do recurso do teatro de marionetes, em que o ator é manipulado por outro colega de figurino neutro e semblante à mostra (Serge Nicolaï dá asas aos gestos e movimentos do outro) comunica a plenitude do jogo das relações e da matéria-prima de que são feitas as artes da cena.
Stephen Szekely, como o marido, é manipulado por Serge Nicolaï, o diretor de ‘A Bergman affair’
Aos poucos, a força da teatralidade torna a navegação pela estrutura narrativa de origem bergmaniana mais inspiradora. Soam entrelaçados os princípios do teatro (arte a que o genial diretor tinha por esposa) e do cinema (por amante), cabendo uma terceira via que é a disposição desse universo íntimo no espaço cênico.
Originalmente, o roteiro se passa em 1925, mas a dramaturgia dissolve geografias e temporalidades. Uma cama, por exemplo, serve a dois ambientes, a residência do casal e a casa de campo. O mergulho de Anna no mar é solucionado de maneira singela, fazendo par com a qualidade do silêncio e da comovente extensão dos abraços.
Contra a sentença moralista que o marido traído escreve na parede de fundo, justificando sua acusação de que a mulher “manchou” o lar e não teria cumprido as obrigações para com as crianças (algo como “Não se pode violar a verdade sem que isso acabe mal”), a encenação responde com a vivacidade das presenças. E com ecos do que o dramaturgo Henrik Ibsen, uma das estrelas-guia nórdicas de Bergman nos tablados (a outro era August Strindberg) preconizava no final do século XIX. Em A casa de bonecas, a personagem Nora abandona o lar, o marido e os filhos para reinventar sua existência.
Mais. São peculiares as passagens expositivas das intimidades entre Anna e Tomas, a sensualidade irrompida quanto menos se mostra, uma nudez esculpida em semipenumbra e nada ligeira. A assimetria do marido que acende a luz do quarto para que ele e a mulher possam se ver, enquanto o amante prefere a luz apagada em busca da invisibilidade da paixão culpada que os arrebata é uma das partituras bem-sucedidas.
A atriz Olivia Corsini no papel que Ingmar Bergman parte da história verídica da traição da mãe
A dor e o destemor da Anna de Olivia Corsini são radiantes. Ela é seguida de perto pelo Henrik atuado por Stephen Szekely, sendo relevante ainda o diálogo geracional com Gérard Hardy, um dos fundadores do Soleil, ao lado de Ariane Mnouchkine.
Premido pelo desejo e pela moral, A Bergman affair assume-se enquanto experimento artístico capaz de transigir com a memória fílmica e pessoal de Bergman e precipitar-se com solidez em reinvenções no modo de afetar o interlocutor a essa altura do século XXI. A tessitura radiofônica da trilha sonora tem a ver com um chamado da audiência à escuta. No ano do centenário de morte do cineasta, não há traço de materialidade audiovisual no espetáculo – pelo menos não houve projeção durante a apresentação, ao contrário do que exibe o vídeo promocional registrado durante os ensaios da obra, abaixo. A inversão de expectativa tem nexo.
São as primeiras incursões junto aos espectadores, outros detalhamentos virão no processo contínuo e estruturante da obra. Se um dia Antunes Filho assistisse ao trabalho da companhia The Wild Donkeys, desconfiamos que iria se deparar com linguagem mais-que-perfeita em relação ao que prospectou no projeto Prêt-à-Porter (1998-2011) com os formandos ou integrantes do Centro de Pesquisa Teatral, o CPT do Sesc São Paulo. Tudo nessa experiência francesa é oferecido aos sentidos com plenitude.
.:. O jornalista viajou a convite da organização do 19º Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro de Brasília, que acontece de 21 de agosto a 2 de setembro
Um dos fundadores do Théâtre du Soleil, Gérard Hardy interpreta o conselheiro protestante
.:. Leia sobre as apresentações dias 5 e 6 de setembro no Teatro Sesc Ginástico, no Rio de Janeiro
Equipe de criação:
Direção: Serge Nicolaï
Colaboração artística: Gaia Saitta
Com: Olivia Corsini, Stephen Szekely, Gérard Hardy, Andrea Romano e Serge Nicolaï
Adaptação: Serge Nicolaï, Clément Camar-Mercier e Sandrine Raynal Paillet
Cenografia: Serge Nicolaï
Criação de luz: Elsa Revol
Criação de som: Emanuele Pontecorvo
Criação de vídeo: Igor Renzetti
Direção técnica: Guiliana Rienzi
Administração: Éric Favre
Comunicação: Valentina Bertolino
Observação: Com a colaboração do Porto Alegre em Cena e recursos de Lyon (França), La Corte Ospitale (Itália), Il Funaro Centro Culturale (Itália) e Aria-Corse (França). Como parte do projeto Ingmar Bergman – 100 Anos, da Ingmar Bergman Foundation. As obras teatrais de Ingmar Bergman são representadas em língua francesa pela agência DRAMA – Suzanne Sarqxjier (www.dramaparis.com), em acordo com a Ingmar Bergman Foundation (www.ingmarbergman.se) e a agência Josef Weinberger Limited (Inglaterra).