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Encontro com Espectadores

A ação da utopia sobre a Mungunzá

27.10.2018  |  por Teatrojornal

Foto de capa: Letícia Godoy

Epidemia prata é o quinto espetáculo da Cia. Mungunzá de Teatro, estreado em maio e razão do 21º Encontro com o Espectador, ação mensal que envolve o público, a crítica e os criadores. Em atividade há dez, desde 2017 seus integrantes cumprem o que entendem por residência artística no Teatro de Contêiner, erguido com os próprios braços e recursos no bairro da Luz. Ali, na região central, contracenam diuturnamente com pessoas em situação de vulnerabilidade, a maioria decorrente da dependência do crack e em meio à violência gerada pelo tráfico e consumo de droga a céu aberto. Isso significa conviver ainda com representantes de movimentos sociais, da comunidade e de agentes de segurança e de saúde. Essa experiência aportou novas visões críticas e poéticas ao grupo, incidindo radicalmente na concepção do novo trabalho.

A diretora Georgette Fadel (em parceria inédita com a Mungunzá) e o ator, produtor e cofundador Marcos Felipe conversaram acerca das escolhas criativas e conceituais que os moveram. O diálogo aconteceu no dia 24 de junho, na sala Vermelha do Itaú Cultural, sob mediação do jornalista e crítico Valmir Santos.

Georgette é atriz e diretora com formação pela Escola de Artes Dramáticas da USP e Departamento de Artes Cênicas da ECA. Cofundadora da Cia. São Jorge de Variedades, em 1998. Deu aula de interpretação na Escola Livre de Teatro de Santo André e no Estúdio Nova Dança. Foi contemplada no Prêmio Shell de Teatro SP pela atuação em Gota d’água, um breviário, em 2007. E, em diferentes projetos paralelos à São Jorge, foi dirigida por nomes como Sérgio de Carvalho, Cibele Forjaz, Francisco Medeiros, Cristiane Paoli Quito, Felipe Hirsch e o alemão Frank Castorf.

Marcos também é jornalista, arte-educador. Responde pela produção geral da Mungunzá desde o nascimento dela, em 2008. Transita por áreas como performance, intervenção e, por extensão, finanças na gestão administrativa da companhia. Pesquisa a função do encenador no teatro contemporâneo com foco nos campos do espaço cênico, da cenografia e da performance. Atuou em todos os espetáculos do repertório.

Epidemia prata’ é a fotografia da nossa residência naquele lugar. Acho o Teatro de Contêiner um poço de utopia. Às vezes parece que vou ter algum lampejo de que a gente está num lugar histórico, mas não consigo porque diariamente estamos vendendo coxinha de jaca, limpando o chão e fazendo teatro, e sempre não confortável com a pessoa que está dormindo na calçada (Marcos Felipe)

Valmir Santos
Epidemia prata acolhe radicalmente os reflexos desse convívio no território da Luz. É um espetáculo de uma dramaturgia conflagrada, espelhamento desse lugar. Traz urgências e sofrimentos de viver e contracenar com esse entorno, com questões como as drogas, os agentes de segurança e de saúde, os vizinhos. Subitamente, o grupo que não tinha exatamente uma territorialidade no seu percurso, viu-se obrigado e determinado a criar esse espaço de convivência do seu trabalho artístico e absolutamente afetado por esse universo.

O espetáculo demonstra o impasse entre aquilo que se ambiciona enquanto artista e a realidade em que se vive. A realidade é refletida a partir de uma percepção dos meninos e meninas que se pintam de cor prata nos semáforos e pedem dinheiro na rua ou ainda nos vagões de metrô. Os criadores trazem a micro realidade, vamos dizer assim, para uma questão expandida da cidade.

A meu ver, o trabalho torna públicas as artérias coronárias dessa região central da cidade que, afinal, mostra uma São Paulo doente. São sintomáticas as questões com as quais nos deparamos por meio dos conteúdos dessa abordagem. A relação que vocês fazem com o universo desses meninos que se pintam de prata, a correlação que vocês fazem com o mito de Medusa.

Sobretudo, o que salta em primeiro plano são esses seres anônimos que vocês relatam, as pessoas com as quais vocês conviveram, inclusive algumas delas que já morreram e cujos pedaços de relatos que vivenciaram com elas estão incorporados na dramaturgia. Isso é muito tocante para o espectador, como cidadão, assistir lá no próprio Teatro de Contêiner, in loco no espaço do qual derivou a dramaturgia.

Ophelia/Itaú Cultural

O ator Marcos Felipe é um dos fundadores da Cia. Mungunzá de Teatro e participou do Encontro com o Espectador em torno de ‘Epidemia prata’

Mesmo na temporada de estreia, no Sesc 24 de Maio, também na região central, mais antiga e no entorno do Teatro Municipal, éramos confrontados com essas situações e essas vivências de uma forma muito cortante.

Afinal, foi no Contêiner, onde a Cia. Mungunzá iniciou a segunda temporada ontem, foi lá que vocês ensaiaram e fizeram a pesquisa de campo na área, engatando o processo com a Georgette Fadel e a equipe toda. Impossível não reverberar em cena o que ecoa das ruas. A começar pela arquitetura. As paredes desse espaço de arte e de cultura são de vidro. Tanto quem está dentro como quem está fora têm a perspectiva da rua. A encenação e o texto trazem essa relação de uma forma muito dura, ainda que o grupo se esmere para tentar trazer à tona elementos de poeticidade.

Lembro que o trabalho sobre o qual estamos conversando é o quinto na trajetória da companhia. O primeiro, Por que a criança cozinha na polenta [2008], tem como ponto de partida o romance de mesmo nome da escritora romena Aglaja Veteranyi [1962-2002]. Tratava da perspectiva de uma adolescente narrando uma realidade de opressão em âmbito familiar, mas principalmente relativa ao universo da Europa oriental. Numa companhia de circo, sua mãe é trapezista e o pai, o palhaço. Quando vi a Mungunzá pela primeira vez, também um grupo jovem, sendo dirigida pelo Nelson Baskerville, a partir desse texto, e lidando ali com um contexto muito distantes de nós, brasileiros, lá no leste europeu, fiquei surpreso coma essas questões sociais, no final das contas, também estavam implicadas na nossa realidade.

O segundo trabalho, Luís Antônio – Gabriela [2011], também direção do Nelson Baskerville, visitava o universo autobiográfico do Nelson, a partir da história de sua irmã travesti, a vivência na infância e depois o autoexílio dela na Espanha, até que ela e a família voltaram a se falar muitos anos depois. Tudo isso também tem a ver, claro, com questões de uma ordem social do campo do íntimo. Acredito que foi o trabalho que alicerçou a busca de linguagem própria pela companhia a partir do encontro com o Nelson desde a experiência anterior, com Porque a polenta….

O terceiro espetáculo, Poema suspenso para uma cidade em queda [2015], já apresentava uma ruptura, trazia uma abordagem fictícia sobre um edifício e as pessoas que moram nele. A imagem de um corpo que cai servia de metáfora para essa suspensão no tempo e no espaço. A narrativa se dava nesse intervalo, nesse congelamento de uma realidade e de como esses moradores estavam isolados, cada um no seu casulo, no seu apartamento. Aqui a direção foi assinada por um artista que talvez podemos entender como pertencente à geração anterior dos criadores da companhia, o Luiz Fernando Marques, o Lubi, do Grupo XIX de Teatro.

Desse terceiro desdobrou o quarto trabalho, tanto que estrearam no mesmo ano. Era uma era [2015] problematizou a relação memória-tecnologia e aproveitava a estrutura cenográfica de Poema suspenso…, um andaime de cerca de cinco metros. A obra marcou a primeira incursão da Mungunzá pelo mundo do teatro para a infância e juventude, mas não só. Uma adaptação do livro O decreto da alegria, de Rubem Alves, com direção de Verônica Gentilin, atriz cofundadora da companhia. E falava da obsessão de um soberano que tenta a todo custo registrar, tintim por tintim, o que acontece no reino, além de seus feitos, em vão.

Dessa dobradinha para o Epidemia prata, a cidade já estava colocada enquanto inspiração temática e performativa. O tratamento vertical do espaço cenográfico em Poema suspenso… e em Era uma era evidenciavam um edifício e a encenação fora construída a partir desse eixo referencial, o andaime. Toda a concepção do espetáculo gira literalmente em torno dessas vivências, desse universo ficcional.

Matheus José Maria

Leonardo Akio numa das passagens em que o chão é forrado por moedas no trabalho que tem direção musical de Bruno Menegatti

Já em Epidemia prata a possibilidade de lirismo e de afetação na história da companhia, de visualidades marcantes, é colocado por terra. É um espetáculo que vai para o chão da cidade, para o concreto da realidade, os conflitos interpessoais e institucionais. Porque, de alguma forma, nesse período em que o grupo está instalado na região da Luz, ele se tornou um mediador local, como eu falava aqui no começo.

Então, o espetáculo é, ao mesmo tempo, refém e reflexo dessa realidade. E o que eu queria então, para começar um questionamento com vocês, Marcos e Georgette, é como que Epidemia prata nos mostra um trabalho de impasse. Uma impossibilidade que é dita em cena com clareza: “Aqui não vai ter poesia”, na voz de uma mulher que “mora” na rua e faz uma intervenção, um corte involuntário no material que vocês prospectavam, justamente numa mesa em que especialistas convidados refletiam acerca das condições e da luta do povo da rua, o consumo de droga, a violência.

Nós estamos diante de universo de bastante aridez, de uma combinação de pessimismo, de uma falência dessa cidade, de seus habitantes e de nós como sociedade humana, enfim. E ao mesmo tempo existe a invenção da criação e do investimento de vocês em trazer essa possibilidade de respiro e de ler o seu tempo e sua época por meio da arte.

Por exemplo, a incorporação da música, dos instrumentos de sopro que são bastante presentes, evidenciando o elemento artístico. Assim como as projeções em vídeo, as presenças dos atuantes. Ao mesmo tempo, tudo isso soa como uma transformação no modo de trabalhar da Mungunzá: entre dar a ver uma abstração dessas questões que são urgentes e, ao mesmo tempo, falar da impossibilidade delas, da impossibilidade poética de narrar e se debruçar sobre o seu tempo.

Então queria que vocês comentassem se isso é uma ambiguidade ou não, se é um impasse ou não. A Georgette, como encenadora convidada, e o Marcos como a pessoa que vivenciou esse percurso.

Lembrei de outra coisa que queria comentar. A Georgette, na Cia São Jorge de Variedades, teve um trabalho em 2002 chamado As bastianas, a partir do livro de contos de Gero Camilo [A macaúba da terra], e esse trabalho se deu dentro de um espaço da Prefeitura, no albergue municipal Canindé e no albergue Boraceia, na Barra Funda. E ali, talvez, a partir do seu percurso pessoal, você poderia fazer uma analogia da experiência da sua companhia em 2002, ensaiando e convivendo com esses frequentadores do albergue, os moradores de rua, e mediados pela obra do Gero Camilo, a obra literária que traz as vozes de mulheres contando o universo de uma criação e de uma terra, de um lugar, e de uma ilha, onde ela tem algum idílio sobre a possibilidade de mais esperança e do amor na dimensão humana.

Fico imaginando como eram esses contrastes em 2002, rente a esses moradores também, e agora com a experiência da Mungunzá. Não sei nem dizer se é rente, é quase como se vocês tivessem sido abduzidos mesmo como artistas codependentes desse universo do qual estão muito próximos ali. Como elaborar arte a partir disso?

Marcos Felipe
Está muito difícil falar sobre Epidemia prata porque é um espetáculo que, de certa forma, escancara nosso fracasso, não como grupo, mas enquanto classe média, etc., etc. E a gente está vivenciando e está fazendo o espetáculo agora, estreamos no Contêiner ontem, então lá a gente já conseguiu outras camadas e outros atravessamentos. Daí fazer uma análise crítica dentro do tempo presente no qual a obra está se inserindo, correndo com ela, é sempre muito difícil.

Por exemplo, nós terminávamos o espetáculo Luís Antônio – Gabriela deixando no ar uma sensação de que a sociedade, ou o povo em si, nós tínhamos um caminho feliz pela frente, a questão da desculpa, de um ser humano que se escancara, que reconhece seus erros, que caminha para a frente, de uma sociedade mais igualitária, mais bacana pra se viver. Havia a impressão de que o público saía do espetáculo Luís Antônio – Gabriela com essa sensação. Era um espetáculo, claro, impactante, com histórias tristes e felizes, assim como nós em sociedade, mas do qual o público saía com essa sensação de esperança.

Quando a gente faz o Poema suspenso para uma cidade em queda, tínhamos a impressão de que o público saía com uma sensação de que tudo faz parte da vida: os momentos de erros, de acertos, de felicidade, de tristeza. A gente está vivendo e viver é isso. E agora o Epidemia prata aponta que não tem saída, exceto se a gente não se propuser a fazer uma evolução, porque saídas no campo micro ou para nos apaziguar internamente numa relação cidadã com a cidade, com as pessoas, elas servem única e exclusivamente para nos deixar uma noite dormindo tranquilamente.

Então, é muito difícil e eu estou muito emocionado ainda com a obra. Ela me atravessa emocionalmente, muito, e a gente estava tendo essa conversa um pouco antes. De por que a gente está aqui, de por que a gente está conversando sobre isso, quem está interessado sobre isso e quais as construções que a gente vai fazer a partir disso. Porque a gente se depara com a realidade que está posta perante o sistema que está posto, esse sistema depredador, por isso é muito difícil. E quando eu falo que o Epidemia prata aponta, inclusive, um fracasso é porque o Teatro de Contêiner, claro, abre uma veia em quesitos no que diz respeito a políticas públicas, abre uma veia e nos aponta caminhos diferentes dos já percorridos. Ele surge num momento importante da nossa cidade, de declínio das nossas poucas políticas públicas.

Ophelia/Itaú Cultural

Conhecida pelo trabalho continuado junto à Cia. São Jorge de Variedades, Georgette Fadel foi convidada a dirigir o novo trabalho da Mungunzá que elabora poeticamente a situação de vulnerabilidade social na região da Luz

O Contêiner até surge dentro do campo dos artistas de teatro como uma válvula de esperança na qual se deposita muito sobre aquele espaço em termos de caminho, de força, principalmente os grupos à margem do mercado, as pessoas à margem do mercado. Há coletivos envolvidos, há pessoas dispostas a construir novos caminhos. E aí, quando surge Epidemia prata e entregamos uma devolutiva tão dura, é claro que do ponto de vista de uma política pública micro a gente consegue resolver, mas não é possível resolver isso, e o espetáculo traz essa dureza. Para a gente não é fácil, em termos de companhia. Não é fácil lidar com essa dureza, identificar essas questões, até porque também trabalhamos muito no campo da utopia.

Ontem, por exemplo, acabamos o espetáculo e um amigo muito próximo foi me dar um abraço no camarim chorando e falou: “Declínio da utopia”. Para a nossa geração, agora, eu estou com 34 anos, estamos revendo todas essas construções utópicas. Então ficou muito triste de apresentar um trabalho desse lugar pessimista, com esse enredo pessimista, mas hoje claramente eu percebo que não conseguiríamos fazer outra construção a não ser nesse lugar, até para a gente se rever enquanto classe média. É um espetáculo que coloca muito o dedo na ferida da nossa de classe média.

Georgette Fadel
Eu acho o espetáculo até docinho demais para tudo que aquela galera que está deitada na rua vive. Acho que não é pessimismo em relação ao ser humano, é em relação a esse sistema em que a gente vive. Como Esperando Godot, que dizem que é uma peça pessimista [do irlandês Samuel Beckett]. Não acho pessimista. Os dois [Vladimir e Estragon] estão ali e podiam sair, mas não saem, não querem, não sei, construíram aquele bagulho lá pra eles. Isso não quer dizer que o mundo acabou, quer dizer que eles estão presos ali.

Acho que Epidemia é um retrato da merda sem saída absoluta que há séculos a gente sabe que não tem saída, que é o tal do sistema capitalista, um sistema de endurecimento, de enrijecimento, de desumanidade, de competição. É uma coisa meio óbvia e acho até bobo conversar sobre isso. A gente recebeu uma crítica de sei lá qual jornal [Folha de S.Paulo, por Paulo Bio Toledo, sob o título ‘Em ‘Epidemia Prata’, crise do grupo sobressai a tragédia social’, em 15/6/2018] dizendo que era duro demais, que era como se colocássemos eles na rua e nós… E é nós mesmo. Alguém está lá com eles agora? Não está. Eles morrem embaixo daqueles cobertores ou coisa pior do que morrer. Então, não vejo mesmo como falar daquilo tudo com uma esperança no coração, e isso sim seria falar da classe média, da nossa perspectiva, do quanto nós estamos crescendo e nos solidarizando.

A gente sabe que não vamos fazer a revolução nesse momento, tudo virando de repente. Talvez essa utopia a gente tenha que abandonar. Não estamos querendo dizer, com a peça, que atitudes humanas, o olho no olho, um resgate, uma coisa não é essencial, importante, importante para a pessoa que recebe e para a gente também, principalmente para a pessoa que recebe um carinho. A gente sabe o quanto abrir a janela do carro às vezes faz a pessoa que vai pedir dinheiro se emocionar com a sua atitude. Eu entendo essas pequenas comunhões e eu participo delas, e eu me emociono com elas também, só que a gente sabe que de uma maneira geral isso realmente está bloqueado. Essa sensibilidade, esse caminho, se a gente continuar nele a gente sabe que vem tanque em cima da gente e nos mata.

A gente sabe disso. É a história de todos os países da América Latina e a gente está vivendo isso agora também. Então, em relação a esse sistema todo, a essa porra toda que o homem construiu dentro desse sistema machista, patriarcal, competitivo, comparativo – como se a gente fosse um bando de animal –, esse tipo de lorota que vem sendo instituído desde tanto tempo e que configurou esse sistema que a gente vive, eu não tenho nenhuma esperança em relação a isso mesmo e acho burro quem tem. Acho burro quem espera uma peça que fala da Cracolândia, que tenha uma poesia que resolva, que acalme, que diga “sim, nós vamos juntos conseguir mudar isso aqui”. Aquilo ali é produzido, a gente vê, o poder público ali deve financiar pra caralho aquele crack. A gente sabe que o crack foi inventado para matar aquela galera mesmo.

Tem uma cena na peça em que a polícia vem, joga bomba e mata tudo mesmo. Então esperar que haja uma esperança nesse sistema, eu tenho esperança no ser humano, tenho toda a esperança, senão nem faria a obra. Parto do pressuposto de que se a gente está fazendo teatro, quer dizer que já tem uma esperança imensa, se a gente está aqui conversando já tem uma esperança imensa, é isso. Agora, vamos falar sério, tem uma pessoa apodrecendo lá que ninguém percebeu que morreu e nós vamos falar sobre outra coisa? Tem uma pessoa ali podre, que morreu e ninguém viu, e só viu porque o Lucas [Bedas] do Contêiner foi lá constatar se a criatura estava morta ou não… Uma criança precisa se pintar de metal para merecer dinheiro porque a pele humana não vale nada? A infância não vale nada? Acho que a gente tem que cair numa tristeza infinita por tudo isso. Nós não caímos na tristeza infinita. Talvez um suicídio coletivo seja mais prudente que essa esperança.

De nenhuma maneira eu quis fazer um espetáculo pessimista ou contra utopias, mas fiquei com vontade de fazer um espetáculo altamente crítico sobre as florezinhas que a gente coloca em torno das nossas utopias curtas demais e, em nome disso, talvez, a gente se entretenha com essas soluções curtas e não realize movimentos de uma consciência mais complexa, que possa transformar a nossa vida cotidiana e ser capaz, sim, de fazer um furo de classe social. Não acredito nisso, a não ser no aspecto de transformação de base realmente revolucionário (Georgette Fadel)

Fico muito irritada com essas críticas de “Nossa, como é duro, é desesperançoso”. Acho que isso é utopia, acreditar que além disso haja outra coisa, mas isso não tem saída. A peça fala sobre dureza, a gente selecionou materiais duros e para mim não teria outro texto na peça além de: “Sem porto para atracar, somente o mar, somente o mar”. Porque essa é a condição dessas pessoas. Você pode ir lá, você pode conviver com elas uma semana, e tem muita gente que vai lá mesmo. Eu vi anteontem gente com a Cruz Vermelha, existem vários grupos religiosos que são maravilhosos, evangélicos ou não, que vão lá, que dão comida, dão atenção, dão amor, mas a verdade é que aquela pessoa não vai sair daquela condição.

Na própria peça tem essa cena em que o Lucas descobre a pessoa e diz que ela vai ser levada para o hospital: “Por favor, aceite ser cuidado”, ele fala ao morador que está quase morrendo ali: “Alguém vai se interessar por você no hospital. Alguém vai gostar de você no hospital”. E a gente sabe que não tem isso, que vai chegar no hospital e vai ser maltratado e vai ser deixado ali para morrer, e realmente a pessoa morreu naquele mesmo dia no hospital.

O que se pode dizer? Que a gente é legal, porque descobriu o cobertor e disse: “Olha, alguém vai te ajudar, mas com certeza não sou eu, não sou eu quem vou até o fim com você, não sou eu quem vou te assumir como filho, como companheiro, como um irmão”. Essa irmandade não está colocada. A gente sente sim, por breves momentos, mas é aquela velha história: se for socorrer todo mundo por quem a gente sente compaixão verdadeira, amor verdadeiro como ser humano, a gente também é aniquilado, destruído? Não sei.

Só sei que a nossa vida é cercada de pequenas mentiras, e das nossas carreiras, da nossa intelectualidade, do nosso pensamento e, portanto, aquela pessoa é menos importante, sim, do que o meu jantar na sequência com a pessoa que estou paquerando. Essa é a real. Estou lendo Angela Davis, a minha leitura é mais importante do que a vida daquela pessoa, porque se não fosse eu estaria lá com ela. Ah, mas eu não posso cuidar de todo mundo, e aí entram todos os tipos de desculpas ou de verdades que cercam esse nosso viver tenebroso. É claro que é pontuado por amigos, amor, arte, felicidade, mas se você olha ao redor vê esse formigueiro horrível, competitivo, onde você encontra – graças a Deus – esses oásis, esses refúgios.

Eu tenho me sentido refugiada, tenho o teatro como refúgio, literalmente, talvez aqui seja o espaço de construção da utopia. Discordo veementemente da história de fim da utopia. É o fim da picada isso aí, na verdade. Quem diz isso não entendeu a onda. Nós estamos falando do que existe. Alguém falou pra mim que utopia significa um lugar que ainda não existe. Beleza, construí esse lugar, eu não desacredito da capacidade humana de construir esses lugares, pelo contrário, acho que a maioria de nós constrói. A maioria dos brasileiros, um povo absolutamente trabalhador, insistente, constrói a utopia diária, constrói muita felicidade, muita festa, muita onda, muito trabalho, muita inteligência, mas talvez tenha uma minoria da humanidade acabando realmente com tudo, e através de mídia e todo tipo de circuito, games, essa Matrix que envolve todo mundo. E a gente tem a sensação de que o homem é ruim, de que o homem é competitivo, de que o homem tem uma natureza… Eu não acredito nisso, acho que o homem pode ter qualquer natureza. A natureza do homem é poder escolher a própria natureza, como você escolhe essa roupa, eu escolho essa, enfim, como ajo no mundo.

Então vamos parar de chafurdar nessa lama aqui, isso aqui não é utopia, aqui não tem brecha, por isso escolhemos metal, dureza. O tema da peça é dureza, a gente está ficando duro, duro, duro, sem nenhum tipo de permeabilidade física – nem mental, nem moral, nem ética, nem nada. Eu construo um terreno para mim e aí entro em confronto com o outro na dureza da faca, e isso está posto, não é uma opinião do Contêiner, ainda mais naquele lugar, onde também existe muita vida, como você mesmo trazia (para Marcos].

Eu já morei ao lado de favela, nunca comi tão bem e nunca fui tão bem tratada porque sempre tinha muita divisão, solidariedade, humanidade. Eu sei o que é passar fome, se está passando fome eu sei o que é, eu divido. Todo mundo acho que já passou por isso, em comunidade, em casa de gente pobre. Eu tenho uma tia rica em que certa vez fui comer na casa dela e havia ali uma porção de arroz que achei que fosse individual, mas era para todo mundo. Assim, na casa da tia Rita a porção de arroz parece uma coisa que é só para você, mas é para todo mundo. Tem gente rica, eu vi pessoalmente, eu conheço, que compra dois pães, um para ela e um para o marido, e não compra três com medo da empregada comer; compra dois filés de frango, e não compra dois com medo da empregada comer. Tem uma pesquisa que diz que o quarto de empregada é inversamente proporcional ao tamanho da casa. Então, foda-se.

Tem alguma esperança nesse tipo de composição do humano? Não existe, tem que eliminar esse pensamento. O espetáculo fala sobre uma epidemia prata, essa que é a doença, a doença do endurecimento, e é literal, é endurecimento mesmo, é fechar célula, fechar ouvido, fechar olho, fechar tudo e construir para si um universo individual, em que a própria família, talvez alguns amigos, cada vez menos, podem circular e têm que estar feliz. A gente pede a saúde da nossa família, dos nossos, mas não pede a saúde da família planetária. E ainda temos a pachorra de jogar no chão a palavra “comunismo”, ou coisa parecida, sendo que a gente nunca viu isso instituído nesse planeta. A gente vai ver os sonhos lá de 1917 [Revolução Russa], ele eram sobre liberdade humana e sobre possibilidades de um humano diferente, de uma sociedade diferente, e a gente ainda é capaz de dizer que comunismo é um estado forte, que acaba com a individualidade, que acaba com tudo, sobre todo tipo de movimento que tem aparecido e tudo que tem acontecido de bom na terra.

Divulgação

Parte dos artistas-criadores da Mungunzá durante deriva próxima à estação da Luz, em outubro de 2017, na fase de pesquisa para a quinta peça da companhia

É óbvio que assim como o endurecimento está acontecendo, ele está acontecendo em reação a alguma coisa que se levanta nessa era e que, se Deus quiser, vai tomar conta do planeta, mas simplesmente o espetáculo não fala disso. Epidemia prata fala da merda instituída que acontece naquele local e que está dominante. Ela que tem o poder, e por isso a gente coloca a imagem da polícia também, para lembrar que tem a ver com esse policial e não só com uma força que a gente não sabe nominar, está encarnada e muito bem encarnada.

Eu brigava com eles [os atuantes da Mungunzá], não tinha texto nenhum na peça, uma peça punk que só tivesse essa frase do Tantão [nome artístico do músico e artista plástico fluminense Carlos Antonio Mattos]: “Sem porto para atracar” [verso de Refugiados]. Nenhuma dessas pessoas encontra na gente um porto para atracar, a não ser por uns cinco minutos, por dez minutos, por um dia, por uma semana, por um mês, mas tem uma vida para ser vivida e essa pessoa não tem realmente onde atracar. Volto a dizer, sim, tem projetos maravilhosos, nós somos maravilhosos, a gente pega na mão, o Lucas levou para dar banho na pessoa, está tudo certo, estou falando realmente de um movimento geral, não estamos pegando as particularidades. Aliás, estamos pegando, mas sinto que o que tinha de necessário para fazer naquele momento, ali, era a companhia não se autoelogiar nesse contato, não fazer apologia de si mesma por conta dessa benevolência de estar ali e ouvir aquelas pessoas e ter algum interesse por aquelas pessoas.

Pra mim, isso, quando aparecia no ensaio, a gente falava “foda-se” esse material ou então vamos mexer nesse material. Essa cena do Lucas, pra mim, é bem emblemática na peça. A gente mexeu de uma maneira simples nela, essa em que ele destaca o rosto do morador, da pessoa em situação de rua e fala que ela vai ser cuidada. Foi uma cena que de fato aconteceu, esse homem morreu. Então a gente a repetiu várias vezes, para deixar claro que essa atitude dele não sanou o problema, esse homem morreu no hospital e no dia seguinte tinha outro ali, e que já deve estar morto também. A atitude dele é louvável? É. Ele tem que fazer? Tem, mas a questão é que é infinito: a pobreza é um poço sem fundo, quanto mais tiver, mais vai gerar pobres para morrer ali, porque é aí que eles pisam para subir e é aí que a gente também pisa às vezes para subir.

Por isso fiz questão de tirar qualquer autoelogio da companhia, qualquer autoconfete sobre o trabalho realizado lá e se criticar. Porque é importante essa classe média olhar para si de uma maneira bem complexa. Nós, artistas, intelectuais, classe média, branco, toda essa coisa misturada, é importante que a gente olhe pra gente. Se a gente age pelo outro e fala pelo outro, vai vir bomba na cabeça. E se a gente olha para o próprio umbigo também vem bomba na cabeça. Então é a bomba que existe, é ela que nós estamos enfrentando. O espetáculo é sobre isso, é sobre dureza e sobre essa violência, esse confronto metálico que tem acontecido.

Valmir
Não há dúvida de que é um trabalho epidérmico, a gente vê em cena como vocês foram afetados, ao mesmo tempo destampa o bueiro e traz para a nossa frente, assume contradições internas, expõe. Essa cena do Lucas, por exemplo, de levar o rapaz pra casa, dá uma dimensão de dignidade, mas também de uma honestidade em elaborar e como trazer isso para a cena, como você acabou de falar nessas contradições.

Ao mesmo tempo, pensando na dimensão da capacidade de produção de arte, essas contradições e essa realidade, por si só, dizem respeito à capacidade de elaboração formal mesmo. Parece uma contradição porque há, ao mesmo tempo, a dimensão utópica de um espaço que foi construído nesses dois anos. Materializou ali na região uma arquitetura através de dez contêineres, a ocupação desse espaço em que existe hoje uma programação bastante inquietante e que tem sido relevante na agenda da cidade.

Vocês concretizam a utopia nesse presente e a alguns passos do Comando Geral da Guarda Municipal da cidade, a alguns passos desse centro de acolhimento em conversa direta com esses seres humanos em estado de rua, com essa dimensão da miséria mesmo. Então essa questão da impossibilidade da utopia, ao mesmo tempo, ela se realiza na cena, vocês estão o tempo inteiro refletindo acerca dessa realidade. O debate que aconteceu na fase de pesquisa sobre o tráfico e a dependência química nos centros urbanos foi incorporado como cena. Inclusive, se aproxima do contexto colombiano, por meio de um dos especialistas que participam da mesa. Vocês incorporam a interrupção ou talvez intervenção de uma moradora naquela noite, a Elza, uma usuária.

Divulgação

Verônica Gentilin atua como a usuária que interviu em reunião no Teatro Contêiner que discutia a questão da droga, episódio incorporado à dramaturgia

Enfim, não sei se essa impossibilidade da utopia é isso, o que a Georgette coloca. Se é função da arte também passar por esse campo social, como fazê-lo? Acho que essa é uma das questões que a gente vive, que muito recorrentemente se traz para a cena enquanto documento, de revisitação biográfica ou social. E em Epidemia prata essa realidade é urgente e é sofrida. É uma abordagem difícil. Para quem acompanha a trajetória da Mungunzá, é difícil lidar com esse desencanto e formalizá-lo criticamente. Estou escrevendo uma crítica sobre o espetáculo, a ser publicada em breve no site, e algumas questões que vocês colocaram me fazem pensar também em como cotejar essas contradições e ao mesmo tempo falar das nossas impotências no campo da recepção, o espectador que vai lidar com essas falências ali. Penso que agora que [a temporada] passou para esse próprio espaço [o Teatro de Contêiner], deve ser diferente a fruição, a experiência artística, vamos dizer assim.

Marcos

A Georgette colocou um aspecto durante esse processo que também não é pouca coisa. Nesse universo do endurecimento, você ter essa amplitude dos poros, essa vontade com o outro, não é pouca coisa. Se a gente pensar que a todo momento a gente está trabalhando nesse ideia de endurecer, de fechar os poros, o próprio sistema colocando a gente nesse lugar… Do tipo: há de se louvar as pessoas que a todo momento batem de frente com isso e tentam de alguma forma manter os poros abertos, manter os olhos atentos, manter a questão da empatia, manter uma escuta apurada. Isso não é pouca coisa, na medida do possível, quando se apresenta uma obra, desse ponto de vista, dura.

Ao mesmo tempo, quando a gente recebe no primeiro ano do Teatro de Contêiner cerca de 60 mil pessoas e 250 apresentações, sendo 64 espetáculos diferentes, então esses artistas que se propuseram a estar naquele lugar e o público que se propôs a ir para aquele lugar, aqueles atravessamentos que foram conquistados, aquela convivência que foi conquistada naquele lugar, então até a própria Cia. Mungunzá se propondo a correlação com aquele lugar, então tudo isso não é pouca coisa. O que a gente está falando é que numa questão micro não resolve, mas não é pouca coisa esse poro aberto para as questões de entendimento e empatia para com o outro.

Georgette

O que acontece é que esse tipo de construção, esse tipo de projeto só pode acontecer em pequena escala na sociedade em que a gente vive. Não pode, por exemplo, tomar a televisão brasileira, um projeto desse tipo. Não pode tomar as telas dos shoppings ou os teatros dos shoppings. Então pode acontecer lá na Luz, pequenininho, se crescer muito já vem bomba em cima. E a minha desesperança é nesse sentido, não no sentido do tête-à-tête. No tête-à-tête eu vivo para isso e vivo disso.

A gente estava sem alegria nenhuma para viver, é nisso que a gente acredita, quando você fala que não é pouca coisa, e não é mesmo. Isso é tudo, é o que a gente sonha. A pessoa está caída ali, vamos os cinco ajudar; a pessoas está com fome, entra aqui porque tem coxinha de jaca de graça. Maravilha, um refúgio. Se isso cresce, se isso toma vulto, se isso pode transformar um país, transformar uma cidade, isso tem que acabar. Existem críticas em relação ao trabalho da Mungunzá, e ao próprio Contêiner, dizendo que a Mungunzá, por ser uma companhia de classe média, formada ali no bom e velho Célia Helena [Célia Helena Centro de Artes e Educação], e branca, e cheia de homem barbudo, por ser essa companhia com esse perfil, portanto, realizaria uma atividade gentrificadora ali. Ou seja, que vem e ocupa um espaço público, gerindo de maneira privada e fazendo a própria programação. Isso é uma crítica que se faz, uma crítica verdadeira, mas no momento em que vem uma empreiteira para construir um prédio, você pode ter certeza que a gente já não somos mais os gentrificadores da região.

Então, a posição do projeto é toda complexa, ninguém pode dizer que não seja absolutamente útil à cidade e fundamentalmente útil àquelas pessoas que estão ali. Você vê que as pessoas encostam naquele murinho ali com amor e aqueles portões estão abertos, as pessoas circulam por ali com alegria, os usuários… A gente sente que ali tem sim um refúgio energético e físico para as pessoas, não só para os artistas, mas para o entorno mesmo.

Com toda certeza, a minha intenção, pelo menos, nunca foi de depreciar ou demolir um trabalho de amor, acho que é a única força possível nesse momento, eu sou completamente utópica. Sinto que se essa sementinha cresce, se cresce um pouco demais, se vai transformar realmente o cenário, aí isso vai ser esmagado ou no mínimo vai ser mantido quieto. Esse tipo de funcionamento é que impede que as coisas se transformem realmente.

Mariana Beda

Cena de ‘Luis Antônio-Gabriela’ (2011), obra que projetou a companhia, segunda direção consecutiva por Nelson Baskerville

É absolutamente complexo julgar uma realidade, tanto é que a gente colocou no céu [projeção no teto do espaço cênico] as imagens de dureza, as imagens de metal, como se a gente pudesse viver por aqui. Mas tem o céu opressor, o nosso horizonte é opressor, você pode ir até certo ponto e a gente está indo até onde a gente pode. O céu é opressor: avançou um pouquinho aqui, é bala na cabeça, e nem precisa avançar muito.

Estamos falando da gente aqui, que está protegida até certo ponto. Marielle levou os tiros lá no Rio [Marielle Franco, vereadora pelo PSol, socióloga, política, feminista e defensora dos direitos humanos assassinada ao lado do motorista Anderson Pedro Gomes em 14/3/2018]. Só que se você vai para o sul do Pará, sul do Mato Grosso, para Rondônia, nessas regiões são mortes diárias, e não é morte assim do grande ativista e tal, é aquele casal que era a liderança dos agricultores familiares, da agricultura sustentável na comunidade. Assassinados porque são comunistas… Isso é comunismo, ali naquela comunidade construindo uma maneira de viver autônoma, plantando a própria comida na paz, saudável pra caramba.

Essas pessoas são assassinadas, e não aconteceu uma vez, é só acompanhar. E às vezes nem dá para acompanhar porque os casos não são publicados. A quantidade de padre, ajudante de padre, de ribeirinhos e camponeses que morrem diariamente, semanalmente no Brasil. É sobre isso que a gente está falando. Você levanta uma força legítima, você levanta uma força amorosa, uma força solidária, uma força de paz entre os homens, [e o reflexo disso é que] você vai ter assassinatos, isso acontece no Brasil. E nós somos preservados, como diz a Iná Camargo Costa [ensaísta e professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), “as orquídeas”: quando é necessário, quando bate a água na bunda, a gente até vai lá e faz O mecanismo para ganhar um dinheiro, essa série da Netflix. Mas a pegação mesmo, que é onde vocês estão [região da Luz], começou a crescer demais, começou a mudar cenário. O Lula fez aqueles projetos paliativos, botou gente na universidade, alimentou aquele povo ali com R$ 60 a mais e pronto, está na cadeia. Ele nunca foi nem perto de ser comunista e está travado, porque quando muda o cenário não importa o que é, tem que ser retalhado.

Então essa dureza, essa faca, esse céu opressor, esse tanque de guerra que passa por cima mesmo, a gente vê em todos os países que se levantaram. Você vê o tanque passando por cima da pessoa. No Epidemia prata, quando eu cheguei já tinha esse nome, então é essa epidemia, a epidemia do capital, a epidemia do dinheiro, a epidemia do metal, tanto é que a gente abre a “gira” [alusão ao ritual acompanhado pelo som de atabaques e cânticos na umbanda] para Ogum invertido, mas o Ogum.

Valmir
Numa analogia com a ideia do teatro de grupo, em que algumas pesquisas são desenvolvidas em campo, à maneira da antropologia, Epidemia prata nasce em cima desse vulcão mesmo. É ali o lugar, é aqui e agora, esse lugar de impermanência dessas vidas, esse lugar de fluxo e onde os artistas se agarram para trazer material, para escrever, para atuar e para falar das suas experiências pessoais nesse território.

O espetáculo transmite isso também e a Mungunzá tem noção dessa impermanência na medida em que coloca a sua estadia ali como uma residência. Foi feita uma construção, de contêineres, mas ela também pode não estar lá daqui a pouco e tudo leva a crer que os integrantes têm claro essa ideia de ocupação e de percepção das questões urbanas, da cidade em diálogo com o poder público ou com alguns atores sociais ali. Acho que essas questões do campo, da ação política do grupo, externa ou internamente, me parecem claras nessa caminhada nesses dois anos e pouco do projeto, conteúdo que também está colocado em cena.

Georgette, aproveitando essa questão que você acabou de falar da gira, você isso como um conceito para a encenação. Você pode falar mais um pouco o que é esse pensamento de gira?

Georgette
Na verdade, foram eles que trouxeram isso. A gente está num lugar ali que não precisa dizer a quantidade de fantasmas, espíritos e forças que atuam naquele lugar. Então, a gente estava pedindo licença ali, acreditando ou não, tanto é que quando começamos a acreditar, até a tampa do bueiro apareceu na encruzilhada de presente, próxima ao espaço. Na semana em que a gente decidiu que teria que ter, apareceu tudo, toda a cenografia, menos as moedas. As moedas somem. Então as coisas foram aparecendo na encruzilhada, o que precisava aparecia na encruzilhada. Um dia eu cheguei e estava o chão inteiro forrado de uma coisa metálica que acabou nem servindo. Mas, caramba, de onde surgiu o chão metálico? Do fluxo [quarteirões ocupados por barracas improvisadas e usuários]. Tinha gente ali que tinha chão prateado, rolos de chão prateado de um material “x” que eles compraram por R$ 10 e isso depois de eu falar que a gente precisava de um chão metálico.

Eu sou muito “macumbeirona”, eu frequento, tudo que for verdadeiro eu estou frequentando: posso meditar no budismo, posso ir para o candomblé, tomo o daime [a bebida ayahuasca]. Acabei de sair de um bailado de 12 horas, agora nessa madrugada. Então eu não só acredito, eu tenho certeza de que essas coisas estão por aí. O fato é que naquele lugar você vê pessoas incorporadas ali o tempo todo, você vê pessoas que não estão mais ali naquele corpo, já entrou outra coisa ali, você lida com muita violência. A gente tem a necessidade de proteção e entendimento daquelas forças.

Chegou uma hora que os meninos estavam pedindo proteção e encaminhamento para saber que a gente está lidando com uma droga aviltante para o espírito e que, portanto, causa energeticamente – se a gente não quer falar em espírito – no pensamento, na energia, nas relações, enfim, muita onda. E isso tudo a gente achou por bem respeitar, cuidar, colocar no círculo. A gente estava lidando muito com metal, São Paulo é uma cidade de metal, de concreto, e o Pedro [Augusto, atuante e responsável pelo desenho de luz] trouxe já de cara uma chamada para Ogum: “Sou guerreiro no terreiro de Ogum”. Assim como tem chamadas perigosas: “Pequenos prazeres, a pedra de fogo, cachimbo em brasa”. Parece que a gente está trazendo também a força do crack também, aquele Exu ali que comanda aquelas forças ali.

Divulgação

Detalhe de uma das cenas de ‘Poema suspenso para uma cidade em queda’ (2015), no repertório da Cia. Mungunzá

Sobre a gira, o que eu tenho a dizer é que a gente pediu proteção, sim. A gente sentiu que nesse trabalho todo, se tem alguma coisa de positivo, é o fato de que eu acho que ele abre um ralo para aquilo escoar. Então pode não ser o discurso de que existe uma solução, o discurso pode não ser utópico, mas está sendo realizado ali um processo. Não sinto que as pessoas saiam pesadas, acho que acontece uma limpeza ali por conta de a gente ter protegido um pouco aquele babado todo.

E para o espetáculo como um todo pareceu fazer sentido a gente abrir essa gira do dinheiro. Uma das primeiras cenas é um banho, um banho iniciático, que vai lá e se banha e se prepara, o Leo [Leonardo Akio, atuante e corresponsável pela arquitetura cênica]vai lá e se banha de dinheiro, de moeda, em vez de um ritual evolutivo para se espiritualizar ou para entrar em contato com forças mais sutis. Ou seja, no sentido evolutivo, do mais denso para o mais sutil, é um ritual ao contrário, do mais sutil para o mais denso. Tento me lavar com o que é mais sujo que eu, fico impregno de uma força que é menor que a minha, a força da moeda.

Então a gira veio por vários lados e realmente chegou uma hora em que a gente sentiu que precisava mesmo, espiritualmente, de uma guarda. E isso não quer dizer uma guarda contra os usuários, não, todos juntos, porque eles também são protetores, eles incorporam protetores do trabalho. Mas isso precisava ser encaminhado, e como a gente sabe, são forças mesmo. Quem já pegou um Exu nas costas sabe que é uma força que pode te levar a matar alguém literalmente, comer o pescoço de uma pessoa, ou a realizar maravilhas, tudo depende da densidade do coração humano.

Em nenhum momento expressamos uma vontade de trazer um plano soberano sobre nós, mas forças que têm que ser dirigidas muito amorosamente, conscientemente na direção certa, senão havia um risco de adoecimento geral ali ou até de explodir em violência, explodir em outras coisas. A gente sempre teve em mente que, embora o trabalho fosse muito duro, a gente precisava, entre nós e o público, e também na encenação, dessa harmonia, de uma harmonização de forças.

Abre para a participação do público

Kil Abreu
Eu li a crítica do Paulo Bio Toledo, na Folha, não sei se foi só a ela que você se referia, mas certamente também. Tomei até a liberdade de convida-lo a vir hoje, porque o Paulo também é um cara superpolitizado e eu sei que ele enfrentaria no melhor sentido esse debate. Ele não deu certeza se viria, talvez até apareça, enfim. Eu não consegui assistir ao espetáculo, então não posso entrar aí no mérito da questão de fundo. Pelo que sei, o Paulo, naquele momento do texto no jornal falava sobre uma percepção dele de um ensimesmamento do grupo que era maior e que parecia a ele maior do que a questão de fundo propriamente dita, do entorno, salvo engano este era o centro da crítica. E vocês já comentaram e em certa medida já responderam, está tudo certo.

A gente está num momento bom do teatro, apesar da grande merda. Ontem eu assisti aos Parlapatões fazendo o Oswald de Andrade [O rei da vela], que na verdade é o capítulo anterior disso, o lastro histórico para chegar nesse lugar de absoluta falta de saída em que a gente está agora. Depois de ver Parlapatões e Oswald, ouvir o relato de vocês parece que o quadro se fecha de uma maneira terrível, a gente pode dizer. No caso deles numa chave cômica, satírica, etc., e no de vocês provavelmente numa outra chave mais grave, mais dramática, eu imagino.

A pergunta que eu queria fazer é muito simples. Vocês falaram do processo, tem essa coisa das críticas, mas eu queria saber, porque a gente está aqui numa ação chamada Encontro com o Espectador, como tem sido a recepção junto aos espectadores do espetáculo. Quem são essas pessoas que estão indo assistir e o que vocês têm ouvido, como é que elas têm se relacionado com o que está em cena?

Valmir
E observar que desde ontem a temporada no Contêiner é gratuita e acho que agora o espetáculo é devolvido para o entorno também. Creio, assim, que parte desses seres daquele território, aparentemente ausentes, se farão presentes também ali diante da cena que, em alguma medida, também os retrata.

Marcos
É uma questão muito recente ainda, o espetáculo completou ontem, salvo engano, a 14ª apresentação. Estreamos no Sesc 24 de Maio e lá existia um público espontâneo, que não necessariamente conhecia a obra da Cia. Mungunzá, ou seja, foi o primeiro impacto com aquele grupo e com o espetáculo. Então não se observa, nesse caso, a trajetória do grupo com outros espetáculos, não que seja bom ou ruim, mas não tem esse histórico E a gente recebe também no Sesc 24 de Maio muitas pessoas próximas, que conhecem a trajetória do grupo e que são parceiros e queriam ver a estreia do espetáculo.

O que a gente tem de devolutiva – e meus companheiros e companheiras do grupo que estão aqui também podem se inserir na resposta – é que a gente está fazendo um espetáculo muito duro, muito rígido, mas que não tinha como ser diferente A gente percebe nos aplausos que é um aplauso duro, e não quer dizer que seja um aplauso de quem não gostou da obra. É um aplauso de quem está em contestação de por que eu vim ver isso e, por causa dessa dureza, qual é o caminho. Inclusive, quando nos surgem apontamentos são do tipo qual o caminho, por favor, nos mostre um caminho, de certa forma.

Fechada essa temporada no Sesc 24 de Maio, em que existia uma blindagem de edificação, que existia uma blindagem de arquitetura, uma blindagem da instituição, o que a gente vem questionando há muito tempo dentro do próprio Contêiner, buscando novas vias de como nós institucionalizamos a relação no trato entre público e espaço cultural, e lá no Sesc 24 Maio isso ficou muito claro. A gente tem até questionado: não adianta fazer uma edificação com todo o pensamento evoluído de arquitetura moderna, colocar o Paulo Mendes da Rocha fazendo uma coisa incrível e manter dez seguranças mediando a entrada e saída das pessoas. Então, não adianta a gente fazer Epidemia prata no Sesc 24 de Maio que trata dessas questões que a gente tem falado até agora. Antes de iniciar a sessão eles soltavam um off falando que quando o espetáculo acabar as pessoas podem entrar na van que eles vão deixar numa estação de metrô. Ou seja, a um quarteirão e pouco de distância.

A gente percebe que tem uma contradição, uma ruptura, um ruído no pensamento. Eu estou muito carregado da apresentação de ontem porque fizemos no Teatro de Contêiner, a reestreia do espetáculo, e junto com ela foi o lançamento da exposição de telas de dois artistas do fluxo, que pintam, e havia muita gente do território dentro do teatro. Tinha a exposição da Augustinha, que é uma mulher da área da saúde, nossa parceira. Então ontem nós fizemos para aproximadamente cem pessoas e eu, sem sombra de dúvidas, coloco que 20 dessas cem pessoas eram do território, sejam elas de extrema vulnerabilidade social, sejam atuantes do trato mediador entre fluxo e poder público.

Divulgação

Os atores Lucas Beda (blusa de cor vinho) e Marcos Felipe (de óculos) em um dos momentos em que se viram na condição de mediadores de conflitos no entorno do Teatro de Contêiner, espaço independente que idealizaram com seus pares

E, como falei, estou muito impactado ainda pela noite de ontem porque o espetáculo lá ganha uma outra dimensão. O espectador de lá tem um outro atravessamento, já tem um atravessamento até chegar naquele local, estando naquele local e assistindo a obra naquele local. Acreditamos que ali fecha um círculo do espetáculo, e muito provavelmente – como a temporada é gratuita e como a gente tem uma relação de afeto com a rua –, com as pessoas, com os moradores, com os comerciantes e um incentivo diário para que eles entrem para o espaço na hora das ações e apresentação. Muito provavelmente as nossas sessões do Teatro de Contêiner vão ter um espectador não habituado ao teatro, aquelas pessoas que estão ali dormindo nas calçadas, da qual a gente consegue minimamente ter uma aproximação, essas pessoas vão assistir e eu não tenho dúvida nenhuma de que ficarão assistindo. Isso acontece muito lá, vai se repetindo, vai voltando, vai assistindo sempre, o que pra gente é muito importante.

Decidimos incluir uma sessão fechada aos sábados, às 16h, porque a gente decodificou uma questão que é: embora muitas das pessoas queiram estar no teatro, elas não estão em horários normais dos espetáculos porque têm vergonha de ficar entre nós, público branco, intelectualizado e tudo mais. Aos sábados a gente abriu a sessão extra para fazer exatamente para grupos fechados, para essas pessoas que têm vergonha de estar com outras pessoas para minimamente iniciar um processo de mediação e de mistura. Para que futuramente a gente não tenha mais essa questão da vergonha. Tem vergonha por causa do cheiro, tem vergonha por causa da roupa. A gente teve muitas devolutivas nesse sentido, então a gente trouxe essa sessão extra exatamente só pra eles, para se sentirem confortáveis assistindo à obra.

Lucas Beda – ator da Cia. Mungunzá
O público lá é atravessado pela situação, por onde nós estamos. O atravessamento dentro do Sesc 24 de Maio era outro. A gente parecia muito mais proponente, sem dúvida daquilo que deveria ser feito. Nossa primeira cena é uma crítica de alguém que entra numa reunião e fica pedindo dinheiro o tempo todo durante essa conversa. E na primeira cena é exatamente o que acontece no Contêiner, tem dois usuários que realmente a todo momento que inicia a cena eles se colocam. Então acho que ganha um significado de uma ponta metálica que a todo custo permanece naquele espaço. Traz mais alegria porque, de certa forma, nos coloca numa posição de jogo muito maior e de um jogo que, de certa forma, por questões de aproximação energética, espiritual, matérica, de diálogo extrapolam aquele espaço também. Há um sentido muito maior para gente realizar o trabalho naquele espaço.

E acho que tem que ressaltar que a gente faz o espetáculo com a construção do público também. Permanentemente nós tínhamos pessoas durante os processos, durante três, quatro, cinco meses em acompanhamento da construção da obra. São pessoas da saúde, que estão em contado há cinco, dez anos com a questão da redução de danos, como também usuários que se dispunham a assistir ao nosso ensaio aberto e nos colocar contradições ou até mesmo direcionamentos ou representações no sentido de isso me representa ou isso deixa de me representar.

Então, quando a gente vai pra lá, de certa forma, a gente tem a vontade de falar: “Amigão, lembra daquilo lá? Aquilo que você falou aqui? Vamos nos achegar aqui que vocês vão ver no que deu essa mistura nossa”. Tem esse lugar também, um pouco mais temeroso de não afetar negativamente essas pessoas que compartilham a vida realmente com a gente naquele território. E ao mesmo tempo tem uma alegria muito grande quando esse contato se torna uma representação e uma legitimação por parte de alguns que são próximos a nós. Então isso é uma diferença muito interessante e que constrói um outro público, também do Sesc.

Georgette
Eu vi o espetáculo três vezes, então eu também estou correndo atrás, mas sinto que as pessoas estão entendendo, até o crítico entendeu. Ele não gostou do que viu, mas ele entendeu. As pessoas estão entendendo. Pelo relato deles, as pessoas ali da Cracolândia, ali do entorno, os usuários gostam muito, porque é realmente a realidade deles sem firula e sem romantismo.

A classe média tende a reclamar um pouco de ser colocada de uma maneira tão cruel ou tão precisamente de autorreflexão mesmo. Ele entendeu tudo. Se ele acha que a gente se voltou demais pra gente mesmo, ele tem toda razão porque o espetáculo é todo sobre uma ação não-heroica, uma ação não-romantizada, uma ação dura em que, no final de uma cena, uma usuária é expulsa dizendo: “Sai daqui, senão eu te mato”. E isso foi real.

Eu não sou de reclamar de crítica não, já levei bem piores na cara, achei até que ele entendeu, mas eu reclamo dessa porque ele diz que a companhia coloca como se fosse nós e eles, e eu fiquei gritando na frente da crítica, falando: “O que ele acha que é?”. Nós estamos deitados convivendo com ratos, Kil? Convivendo com centenas de ratos, quando passam ali são hordas, não é um rato que aparece na tua casa e que você chama no dia seguinte a desratização. Então não somos nós e eles. Eu tenho a impressão que as pessoas que conhecem a fundo a realidade ali presente acham a peça completamente pertinente, realista e conseguem até se divertir um pouco com a estética elaborada pra falar de tudo aquilo.

Nós vamos ter problemas com o nosso coração Criança Esperança que, de alguma maneira, busca falsas utopias e não quer pensar mais profundamente sobre suas próprias contradições. Porque viver como a gente vive – não sei se pra vocês é simples –, mas pra mim não é simples, não é simples viver na posição média que a gente vive, tomando as nossas posturas, as nossas atitudes, mas sempre de uma maneira não tão radical quanto parece que aquela realidade mereceria. Aquela realidade mereceria uma horda de Madres Teresas de Calcutá, mereceria uma consciência plena, búdica, de toda – falar de classe média é muita coisa hoje em dia –, mas de todas as orquídeas esclarecidas.

Então quando a gente fala de dureza, não é o espetáculo, que grande espetáculo, que grande obra que foi feita aqui no sentido do grupo, e que verdades reveladas, e que incrível, daí saímos saciados. O espetáculo não tem nada de entretenimento, embora ele seja plasticamente interessante. Então os relatos dos meninos e o que eu tenho recebido tem a ver com isso, quem convive mais assina embaixo e fala é isso aí, somos nós e eles. Chega no final do dia, a gente entra nos nossos carros e vamos embora.

No Boraceia [albergue municipal na zona oeste de São Paulo] acontecia a mesma coisa. O Kil não sei se acompanhou tão de perto, mas as pessoas do local se aproximavam da cena não para ver a peça, mas para esquentar o pé na fogueira porque não tinham meia. Reclamavam de a gente ficar fazendo a mesma coisa. Beth [Néspoli] acho que lembra também desse momento. Perguntavam: “Vocês recebem dinheiro da prefeitura para ficar fazendo toda noite a mesma coisa?”. Eles comparavam a gente com novela e falavam: “Novela evoluí, cada dia é uma coisa. Vocês fazem todo dia a mesma coisa e recebem dinheiro pra isso. E está faltando feijão no nosso arroz. Esse dinheiro que vocês estão ganhando aí poderia se transformar”. Todas essas questões.

E aí, você estando mais perto, você percebe que somos nós e eles. Eu tenho dez pares de meias na minha casa, levei um para dar, dois, três, fiquei com cinco e levei os outros cinco e sumi de lá. Quando dei aula numa unidade da Febem elas falavam isso claramente pra mim: “A senhorinha ama tanto a gente, né, está aqui quase todo dia, gosta muito, mas no Natal aonde a senhora vai estar? Se a senhora vier aqui passar o Natal com a gente e o Réveillon eu acredito nesse seu amor. Mas o Natal a senhora vai estar com a sua família, a senhora nem vai lembrar da gente. Vamos ficar aqui sozinhas, que nem mãe vem visitar”. Aí eu me liguei, é isso. Passaram dois anos e eu fui embora. E essas meninas continuaram a vida delas sem mim, e eu sabia que ia ser assim, e elas também. Você entra um pouquinho nesse meio, existe muito amor e existe muita tristeza também nesse vínculo que é limitado. Então, se ele estivesse aqui, o amigo, eu ia dizer: “Você entendeu tudo e você não está na real, porque somos nós e eles mesmo. Por que onde você está agora? Você está lá deitado com eles? Eu sei que a crítica que ele fez tem outras dimensões além dessa, mas no fundo ele cai nisso.

A companhia é umbigada, fala-se de uma relação, não de um umbigo; fala-se de uma relação a partir desse umbigo. Porque, afinal, hoje em dia, a gente pode falar a partir de outro lugar? Eu poderia falar a partir da moradora? A gente tentou falar, eu quase matei a Verônica [Gentilin, atuante e supervisora dramatúrgica] e falei: “Você só pode falar se você incorporar essa moradora criticando a atriz que está fazendo ela mesma”. Porque você não pode, é um momento todo delicado no sentido da tal da representatividade, representação, voz, lugar de fala. É claro que a gente tinha que falar de algum lugar, a gente não ficou falando da gente, isso é um equívoco. A gente está falando da nossa relação com eles, nem é a minha, da relação do grupo com eles. Falar deles, o que vai se falar deles que já não foi falado? Ou que a gente possa falar de dentro deles, o que eles sentem, o que eles são ou do que é eles sem nós. Até para falar, não tem outro jeito de falar a não ser eles e nós, porque é exatamente isso.

Publiquei uma foto agora no Instagram, que os meninos compartilharam comigo: é uma poça de crianças deitadas, fotografada de cima, sobre um bueiro do qual sai ar quente, todas juntinhas para se aquecer. Você fala não é nós e eles? Onde você está dormindo? Você está dormindo em cima do arzinho do metrô? Não, somos nós e eles. Esse olhar para si mesmo, e perceber que embora a gente abra a janela e dê R$ 10 de esmola, às vezes você já sai se achando muito legalzão por permitir alguma coisa a quem pediu naquela noite. É necessário olhar para a nossa patetice, da nossa existência mesmo, que dói demais. A gente está aqui falando tudo isso dentro do Itaú Cultural, o Itaú é uma puta de uma merda de um banco. Caceta! E o espaço que a gente tem é aqui. Eu estou em cartaz na Fiesp [com Molière – Uma comédia musical de Sabina Berman] e acabei de fazer o Maiakóvski [A plenos pulmões] no Banco do Brasil. Eu acho um cu. Não olhar pra isso, não olhar pra si. Eu não estou olhando pra mim, eu estou olhando pra uma condição de muita gente. É uma condição geral, da maioria da população que entra no consumo, que deixa de viver com rato.

Como o pessoal da Mungunzá me alertou bem: a gente se divide sim entre os que convivem com ratos, há até os que comem ratos, e os que não convivem com ratos, simples assim. E somos nós e eles. Então não acho pouco olhar pra si, não acho nada pouco olhar com complexidade pra si, e acho que o espetáculo não encerra porra nenhuma, o espetáculo é só mais um fiapo de tentativa de pensamento sobre isso. Em algum lugar a gente já saiu da era, pelo menos as companhias, de querer abarcar o mundo ou de querer fazer sucesso ou de querer pegar algum prêmio com as peças que a gente faz, embora às vezes o tiro saia pela culatra e rola um premiozinho por aí.

Eu lembro que quando a gente fez o Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está, precisa se mexer [2009], da Cia. São Jorge de Variedades, acho que a única que entendeu foi a Beth porque ela saiu horrorizada, absolutamente horrorizada. Mas ganhamos Prêmio Shell SP, na categoria especial, uma vergonha. Saímos na revista Caras, no dia seguinte, com o [logotipo da] Shell atrás e toda a companhia, um fracasso completo, embora aconteça de vez em quando, a gente não está mais fazendo pra isso. O Shell precisa pegar mais gente com o espírito deles.

Tem uma cena incrível em ‘Epidemia prata’, daquela roda de atores que gira, gira, anda em círculos, não resolve nada e no final fica assim: eu posso fazer alguma coisa, mas nunca vou dar conta de tudo isso, é uma mão afogada em milhões de solicitações. Então é claro que não se resolve isso assim, nessa escala. O que se tem é um céu pesado, é um poder que massacra e é absolutamente não nominado. Não tem instituição, não tem caminho, não tem nada, tem um poder, o capitalismo provocando tudo aquilo (Beth Néspoli)

Eu não quero que [essa conversa] fique com uma cara de que eu estou respondendo, ninguém jamais me viu responder a uma crítica, eu já levei na cabeça em tantos espetáculos. Agora, nesse aspecto, eu perguntei quem é esse cara. “Ah, mas é um cara ligação”. Mas porque ele está falando que não é nós e eles. O que ele acha que é? Não é nós e eles? E a peça é umbigada, porque fala da relação de um grupo com aquilo. Achei bobo o que ele falou e é a primeira vez que estou com vontade de falar: “Que bobo que você foi, porque você está pegando um trabalho que está começando e o fragiliza no que ele é. Ele é isso mesmo, entendeu? Você acha que a fraqueza do espetáculo é o que ele tem de melhor, que é assumir: ‘Oh, bacana você estar aqui, já pegou sua coxinha, já pegou seu cigarro, já te demos dinheiro, agora some daqui sua vaca, arrombada, senão eu te mato’. Isso é falar do próprio umbigo? Isso é falar de uma relação impossível. Uma palestra sobre a pessoa, a pessoa chega e não se consegue lidar com ela. Isso é falar de si? Isso é falar de uma relação, de uma impossibilidade, isso é falar de luta de classe”. Bem, eu não entendi onde ele foi.

A gente olhar pra nossa maneira de lidar com aquelas pessoas que convivem com rato, é falar de luta de classe intransponível. E não é o rico com o pobre, é nós, meio pobre, com quem pode ser pisado. A gente não tem como lidar com essas pessoas, é difícil a lida, você lida durante algum tempo, depois você tem que levar para o canto e dizer: “Olha aqui, minha querida, se você continuar atrapalhando a porra do debate, eu te mato. E empurra a menina pra fora, disfarçadamente”. Foi o que aconteceu e é o que acontece sempre.

A São Jorge passou por essa situação também, um cara que sempre entrava nas apresentações do espetáculo de rua O santo guerreiro e o herói desajustado, o Carlinhos, brother nosso, ogã de terreiro, todo cortado, de tiro, de faca, de prisão, de tudo, demos o endereço da São Jorge pra ele tomar um banho [na então sede na Barra Funda]. A história toda com o Carlinhos terminou com a gente fechando a porta na cara dele e dizendo: “Sai daqui seu desgraçado, que vai ter polícia e você vai morrer”. Porque ele botava chave de fenda na nossa barriga e falava: “Eu vou cortar vocês”. E a gente ficava: “Pô, Carlinhos”. Porque a convivência mesmo, a amizade mesmo, nós e o Carlinhos, terminou dessa maneira, com a porta na cara dele, a companhia inteira para dentro, ele para fora. A gente com medo pra caralho e falando que tinha que dar um jeito de prender o cara porque se a gente saísse ele matava, pega um filho nosso. Luta de classe. Agora, narrar uma cena dessa é falar da gente? Eu estou falando dessa relação impossível, de luta de classe. Então achei bobo o jeito que ele escreveu e debateria com ele com todo o prazer, achei que ele entendeu a peça e não entendeu a verdade que ela contém; que é verdadeiro o que a gente está falando, que somos nós e eles sim, e ilusório você abrir as famosas brechas. Ilusório não, não ilusório como você diz, não é pouco, mas no sentido da luta de classes, é nada.

Beth Néspoli
Você falou do público da Cia. Mungunzá, que está chegando com esse outro público, e lembro que em Bom Retiro 958 metros [2013], do Teatro da Vertigem, acompanhei o processo [para a pesquisa de doutorado] e havia os seguranças da rua, as costureiras bolivianas que iam assistir e estavam na área. Eu convidava milhares de vezes, de todas as formas, para que esses seguranças vissem o espetáculo inteiro e lá tinha muita dificuldade de ingresso porque era pouca gente por sessão e as pessoas compravam ingresso com dois, três meses de antecedência, mas parte delas acabava não indo. Tinha umas costureiras que chegavam na saída de um pequeno shopping de roupas, acompanhavam o percurso pela rua e às vezes entravam no Taib [Teatro de Arte Israelita Brasileiro, atualmente desativado, onde o espetáculo de intervenções no espaço urbano terminava, no bairro do Bom Retiro, região central de São Paulo]. E eu queria que elas vissem inteiro, mas como ali chegava público, recolhiam ingresso, as costureiras não vinham ver de jeito nenhum.

Então isso é uma questão, porque quando você fala, “Será que a gente não tem que fazer uma outra coisa”, talvez não seja isso em Epidemia prata. No caso dessa peça, seria um outro público, que não vai vir de um jeito normal, essa sessão especial, enfim. Isso é uma outra questão: para quem falamos, o que falamos, mesmo fora do lugar de fala, o lugar de recepção. Eu entendo isso que você fala como um rito de limpeza pela sujeira, esse rito que você faz ali eu consigo entender isso quase como um rito de consciência desse lugar terrível e desse céu. Eu não sei, Georgette, lá no Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está, precisa se mexer, eu recusei, eu rejeitei o espetáculo, briguei com ele porque me atingiu, tanto que eu fui lá discutir com você. Mas eu também tenho um incômodo com o Epidemia, que não sei se vou saber localizar bem. Tem essas pessoas, tem essa atitude que é individual, que eu vou lá, dou o banho e tiro, e o espetáculo mostra isso que você falou, a impotência disso, a impotência na escala, é muito claro isso.

Tem uma cena incrível, daquela roda de atores que gira, gira, anda em círculos, não resolve nada e no final fica assim: eu posso fazer alguma coisa, mas nunca vou dar conta de tudo isso, é uma mão afogada em milhões de solicitações. Então é claro que não se resolve isso assim, nessa escala. O que se tem é um céu pesado, é um poder que massacra e é absolutamente não nominado. Não tem instituição, não tem caminho, não tem nada, tem um poder, o capitalismo provocando tudo aquilo

Eu entendo que vocês fizeram isso, mas é como se eu dissesse assim: tem diferença a política que o [Fernando] Haddad [PT] estava fazendo dos hotéis e a política do joga água fria e tira todo mundo dali? Tem diferença, tem nuance, instituições ou organizações, alguma coisa numa escala que não seja individual não aparece em nenhum momento, salvo engano. Eu só vi o espetáculo uma vez, então talvez eu não tenha apreendido. É como se ficassem os indivíduos, essas pessoas, e eu que acompanho o grupo, puxa, eles estão ali esse tempo todo e no final a conclusão a que chegam é que estão impotentes e afogados naquilo.

Georgette
Mas não é final e nem é conclusão. E você disse bem, se você pega um daqueles caras que estão deitados ali, tanto fez a prefeitura do Haddad. A prefeitura da Marta [Suplicy, então PT] tirou gente da rua e botou no Boraceia. Mas como está o Boraceia agora? Então, claro, não estamos lidando com os pormenores em uma hora e pouco de conversa. É claro que tem diferença entre Haddad e “pá, pá, pá”, mas o poder do metal, o poder do capitalismo como céu, como horizonte, ele vem e bota um [João] Dória (PSDB], e tudo que a gente está vendo na sequência do Haddad e até da Marta que fez um prefeitura pelo menos aberta na cultura. O teatro avançou bastante na prefeitura da Marta.

Acredito que você tem razão, a gente parou onde você falou em primeira instância. Existe o poder do capital que não é abstrato, é o capital, é o poder da matéria, é a matéria dura, que é representada por muitas coisas e a gente nomina até, aparece a força policial, num certo momento. O grupo insistiu para que houvesse cenas documentais para trazer para a real. Então, você tem razão, não é um espetáculo que dá conta das imensas nuances e da poesia vivida pelo grupo numa relação individual, mesmo porque eu achei que isso seria umbigado, uma apologia do si mesmo, do “Olha que trabalho lindo estamos fazendo aqui”, onde um bração estendido aqui e essa ação já traz tanta transformação. É claro que tudo que está sendo falado sobre o espetáculo ou até mesmo a própria vida que corre vai produzir outros espetáculos e talvez o próximo espetáculo seja o caso de amor entre uma moradora e um deles, talvez seja isso o próximo e eu vou adorar dirigir isso, um casamento. Adoraria falar sobre essas brechas, sobre essas possibilidades ou até sobre como é possível abrir brechas dentro dessa realidade dura, ou sobre as brechas possíveis, as maravilhas que a gente tem feito nas brechas que a gente consegue abrir, sobre a maravilha de haver aquele oásis dentro daquele lugar tenebroso.

O espetáculo simplesmente não foi por aí, ele foi para um lugar mais final, no sentido de passa a Marta, passa Haddad, aquela pessoa na calçada que convive com rato, continua convivendo com rato, continua ali, continua no crack, a droga pega, você leva pro albergue ali, a pessoa passa por tudo aquilo porque não existe uma transformação na base da sociedade. Aquela pessoa continua sendo alguém que a gente tem que resolver a questão dela, que a gente tem que lidar com aquela coisa que é um problema, não é um ser mesmo, como base do pensamento. Então eu concordo com você, de nenhuma maneira eu quis fazer um espetáculo pessimista ou contra utopias, mas fiquei com vontade de fazer um espetáculo altamente crítico sobre as florezinhas que a gente coloca em torno das nossas utopias curtas demais e, em nome disso, talvez, a gente se entretenha com essas soluções curtas e não realize movimentos de uma consciência mais complexa, que possa transformar a nossa vida cotidiana e ser capaz, sim, de fazer um furo de classe social. Não acredito nisso, a não ser no aspecto de transformação de base realmente revolucionário.

E acho que, sim, pegamos um viés, um céu duro, um chão de céu, mas um céu de metal, uma inversão de valores, é o que nós estamos vivendo, nós somos pura matéria, os melhores de nós, os nossos grandes intelectuais são absolutamente duros no lidar com questões espirituais, por exemplo. Aquele ser ali que morreu, ele é mais uma “picanhona”. Então quando você pega esse mote, em que uma criança tem que se pintar de metal para poder receber o metal, passou todas as prefeituras do mundo, e essas crianças vão continuar existindo enquanto a gente não ceifar na base, que pode ser devagar ou rápido; ou pode ser com o extermínio da humanidade, mas realmente a gente pegou aí, num espetáculo de uma hora, uma bombinha. Agora, com certeza, ele não é um espetáculo que dá conta de tudo, ele vem violento, não é um espetáculo Oxum, é um espetáculo Ogum. Ele vem dizendo: “É foda, e é dividido”. E é isso, é violento pra caralho, e isso não se sana de uma maneira simples, só se sana se a gente mudar a visão do próprio ser – porque o ser não é a porra de uma moeda. Se tem uma criança caída ali, meu Deus, para a vida, para tudo, para a crítica, para o teatro, para tudo. Tem até um texto que fala disso: “Para tudo, tem uma criança caída ali”.

Divulgação

Registro do primeiro espetáculo da companhia, ‘Por que a criança cozinha na polenta’ [2008], inspirado no romance de mesmo nome da escritora romena Aglaja Veteranyi [1962-2002] e encenado por Nelson Baskerville

Uma amiga, a atriz Dani Smith, ela tem um filhinho que saiu de uma padaria e tinha um mendigão, bem mendigão mesmo, caído perto do poste, pedindo comida. E todo mundo tinha acabado de comer, ela, o filho, o marido. Comeram uns beirutes e tinha sobrado metade, estavam levando pra casa – isso ela contando no Facebook. Viram o mendigo e ela pensou em dar o que tinha sobrado para ele, mas pensou em esperar ele pedir. E numa dessas, o filho de dois, três anos viu o mendigo e se desesperou. Pulou no colo do mendigo e dizia: “Mãe, esse homem abandonado, um homem abandonado”. Tipo, atenção, um homem abandonado, isso não pode acontecer e grudou no peito do homem, não largava o homem. E o homem gritava: “Eu não estou mais abandonado”. E foi uma comoção geral, mas que também não resultou em nada, poderia ser contada como uma história linda.

Na verdade, nós estamos falando desse aspecto e é muito duro, do tipo é linda a cena da criança gritando “Mãe, um homem abandonado”, com uma consciência absoluta da igualdade entre eles – se eu acabei de comer, como que esse homem está abandonado, uma coisa óbvia, racional. Eu poderia contar isso, mas a gente preferiu contar o depois, depois dessa comoção absoluta, essa criança vai pra casa dela, essa criança via crescer e provavelmente aprender a esperar o mendigo pedir a comida antes de dar e aquele mendigo continua abandonado. A comoção da criança não realizou energeticamente muita coisa, eu sei, e eu sou quem mais acredita nisso, mas não realizou na prática, nas condições materiais na vida daquele mendigo porra nenhuma, a não ser por aquele momento.

Então você tem toda razão [para Beth], a gente está contando esse pós, muita comoção, pouca transformação para essas pessoas, para essas pessoas caidíssimas, pouca transformação. São pessoas que estão sendo mortas, estão sendo assassinadas. Você tem toda razão, a gente deslocou para o pós essa parada toda pra gente parar também de jogar flor na gente mesmo e se comover tanto com a beleza de ainda ter uma mão estendida. Eu também me comovo, vou sair daqui agora, vou encontrar uma pessoa, vou tirar o que eu tenho e dizer “tamo junto” e o cara vai dizer: “Você olhou no meu olho, que bacana, isso já valeu”. E eu vou dizer: “Olho sim, você é meu irmão”, e isso é muito comovente, eu faço isso sempre e a pessoa se comove e eu me comovo, e isso alimenta a minha vida, mas pós-cumprimento afetuoso, aquela pessoa segue o destino dela rumo à morte precoce e eu sigo rumo ao Sesi para fazer a minha peça no prédio da Fiesp, ganhando R$ 5 mil sem desconto no final do mês. Eu me comovo com ela, mas eu não me debruço sobre ela, eu não dou a minha vida para que ela realmente sinta que ela tem uma irmã, então eu fui para esse lugar e nem sei se é o lugar para onde eles iriam [a companhia]. Se não estivessem do meu lado ali, talvez eles fizessem algo em outro sentido, mas eles toparam vir comigo nessa minha dureza. Tudo que eles traziam de fofo, de “nós vivemos isso”, foi importante, mas eu cortei.

Lucas
A gente teve um aprofundamento de ativismo ali naquele território, de uma horizontalidade muito grande. Você disse que tirou tudo que ia ser bonito, mas sempre quando estoura o fluxo, muitas vezes corri para lá pra fazer registros de violência policial e coisas do tipo. Numa noite, eu fui pra lá, o fluxo tinha estourado e eu acabei ficando sozinho. A gente tem experiência de entrar em espaços de violência mesmo, de tiro, constantemente naquele território, só que naquele momento eu me vi sozinho. E eu fiz uma fotografia, distante ainda, nem estava próximo do fluxo, estava na [Praça] Júlio Prestes, só que tinha umas 15, 20 viaturas paradas e eu fui abordado por um policial e logo mais fui abordado por oito policiais. Constantemente, lá, a gente é obrigado a apagar os nossos registros, sofremos diferentes tipos de violência, de direitos humanos ali, não só as pessoas que estão lá, mas qualquer um que tenta se aprofundar um pouco mais diante daquele caos.

O policial falava: “Eu estou aqui, sou pai de família. Você está aqui e o que você está querendo fazer?”. Eles se juntaram e começaram a perguntar se eu era de esquerda. E começaram a me agredir, falando que iriam me furar, oito, dez policiais, me bateram com cassetete diversas vezes a ponto de um deles arrancar uma faca, entre os oito, e colocar na minha barriga e falar: “Nós vamos te matar, seu lixo, seu filho de uma puta, nós vamos te matar aqui, furar tua barriga e vamos falar que foi um noia”. Esse policial a gente conhece, e durante um ano e meio convivemos pessoalmente com ele, em diálogos, e sentamos lado a lado na mesa do almoço.

Então, quando a gente coloca, de fato, essa instituição polícia, isso já está dado, como a Georgette está falando. Como que a gente repensa as estruturas desse cidadão que senta ao meu lado no almoço e que pôr alguma ordem, que não é a polícia em si, é o capital maior que está presente nisso, faz com que ele arranque uma faca e questione a minha ação de fato aqui com o bucho estrebuchado, falando que foi um noia. Contribuiria em que sentido? Depois disso eu voltei andando para o meu teatro…

São fronteiras diárias durante o ano, como o Leo também foi violentado diversas vezes. Não deixamos de observar que também existem agentes da saúde fazendo a mesma coisa. É uma estrutura sem macro, é nesse mecanismo que nós nos colocamos. E, diante disso, não me vale ir lá fotografar a polícia e dizer o que ela é. Não, o cara vai olhar pra mim e simplesmente dizer: “Eu sou um pai de família, estou há doze horas trabalhando aqui e você vai botar a fotografia da minha cara como sendo o corresponsável por toda essa merda? Vou te dar uma facada”. E resolveria nessa questão física.

Nesse sentido que eu acho que o meu pensamento também, enquanto agente atuante para contribuir e enfrentar esse sistema que se digladia, como o episódio que relatei, deu uma apaziguada. Eu não me vi motivado e, sem dúvida, as energias me protegeram demais para estar vivo porque não é diferente com qualquer outra pessoa ali, a gente sabe que some muita gente. Some pessoas diariamente no fluxo, seja pela polícia, seja pelo PCC [Primeiro Comando da Capital, organização criminosa], seja por brigas. É um envolvimento muito mais complexo do que só o estado policial ou só o estado da saúde. Quando a gente faz aquele giro e as pessoas veem, que são do fluxo e que vão ao fluxo, aquilo fala que realmente é um buraco, um buraco que não dá mais pra gente dizer quem é o agente, a não ser esse mecanismo que fica aqui em cima e sob o qual as pessoas não sabem que estão agindo. Então, é nesse sentido de impotência, até um certo ponto, inclusive de acreditar que apontar responsáveis possa suprir essa necessidade de que a gente tem de aliviar a corresponsabilidade nas relações estabelecidas de qualquer âmbito.

Galiana Brasil – gerente de artes cênicas do Itaú Cultural
Eu não li a crítica tão falada hoje aqui, mas até para dar um tom um pouco diferente dessa coisa que veio muito da dureza. Eu não senti isso, de verdade. Acho que uma das maiores forças da obra é essa honestidade, de deixar muito claro o nós e eles, não tinha como ser diferente. E essa honestidade de ser um retrato dessa relação que é muito particular, que é, como você colocou [para Georgette], que é até mais deles, muito deles com esse entorno. E eu digo que é a força e a fragilidade também porque ela tem tempo, tem uma certa profundidade. Essa dureza que vocês sentem diz muito do tamanho da bolha em que as pessoas estão, como mostra a bolha da Virginia [Iglesias, em determinadas cenas]. Quanto mais fechadinha essa bolha, mais elas vão sentir. Acho que a minha talvez, por ser mais atravessada, é uma bolha já murcha, furadinha, eu não sinto. Quando sai da sessão no Sesc 24 de Maio, a gente passou pelo acampamento do prédio que pegou fogo [no Largo do Paissandu], então a realidade é muito pior. Do que se alimentam essas pessoas que saem achando, querendo uma solução, porque realmente não está ali e é estranho isso. Vocês falaram do Luís Antônio – Gabriela, mas tinha uma coisa que ele particularizava uma dor que era muito genérica, a gente sabia daquilo tudo, mas a gente sabia nos dados, que somos o país que mais mata [a população LGBT], e dilacerava por conta daquilo. Eu já faço um caminho inverso em relação a Epidemia prata, que fica ainda muito pulverizada e eu não consigo sentir tanto assim. Eu sou usuária do Contêiner, então acho que uma ida para aquele espaço, pra mim, ainda me traz muito mais poesia e dureza do que a própria obra. Chegar ali quieta, ficar observando, tanto de dentro para fora, o que vem de fora é muito forte. Da minha perspectiva, senti mais um tanto de culpa, e é uma culpa muito particular de vocês e das escolhas que vocês trouxeram desse material, que às vezes você fica: nem sei se eu queria saber disso, porque às vezes fica benevolente, sim, algumas coisas, que é da classe média, que é desse lugar. Esse é o lugar de fala, que vocês não querem falar de outro, vocês falam com muita propriedade, mas é uma relação que é muito de vocês, de cada um de vocês, e que não diz de mim, por exemplo, que tenho outra relação com esse universo e as pessoas vão ter outra.

Então, talvez esse ensimesmado tenha vindo desse lugar, e isso é muito legítimo e muito claro. Eles [a companhia] não querem falar da situação fora dessa bolha em que estão, como chegou isso para eles, mas chegou de três anos para cá, não tem essa pretensão de revelar uma doença social, que é essa pobreza e essa miséria. Isso não é novo. Às vezes dá vontade de dizer isso também, vocês sabem que isso aí já existia e está tudo certo. A mim, pelo menos, não atravessa nesse lugar, atravessa mais de analisar vocês e isso é muito bonito. Para quem acompanha o grupo então, muito legítimo e comovente ver como vocês estão afetados nesse momento com tudo isso. Vai muito da relação de cada um com essa doença.

Bob Sousa

Marcos Felipe no papel-título em ‘Luís Antônio-Gabriela’, espetáculo a ser recriado para a mostra de repertório dos dez anos da Mungunzá em 2018

Mas tem algo que eu também queria dizer, de aquietar um pouco o coração de vocês porque também parece uma prestação de contas para a sociedade, para tudo, e que você trouxe muito bem, essas acusações, essa gentrificação e, assim, está tudo certo. A grande experiência, para mim, ainda está em ir ali. Vocês ali são a ocupação poética da qual, nesse momento, a gente ainda não tem a dimensão, porque ela está acontecendo. Vocês atravessam naquele lugar e o que a gente sente ali, mesmo que vá para uma festa, mesmo que não vá assistir nada, é algo que é mais forte que tudo isso, ainda.

Marcos
Sou e estou suspeito para dizer, mas Epidemia prata é um espetáculo que eu gosto muito, me sinto muito contemplado enquanto artista pela obra que a gente fez, que estou fazendo, pelo discurso que estou propondo. Eu saio todos os dias do teatro triste pelo enredo, mas me sinto muito contemplado como artista pela obra que estou fazendo e acho que isso é muito importante. Vejo e falo: que bom que fiz isso, que estou participando disso, pois era exatamente o que eu queria dizer nesse momento.

A Georgette falava que dentro da sala de ensaio nós tínhamos verdadeiras guerras civis. É claro que a gente aponta um fracasso do ponto de vista micro, ali, nosso, da relação que a gente vê que não vai pra frente. Mas é claro que a gente é diariamente motivado a estar ali. É um caminho possível. As vias pelas quais o Teatro de Contêiner propõe são caminhos possíveis a serem seguidos. A nossa resistência lá é diária, a gente está em negociação amanhã, todos os dias estamos em negociação.

A nossa utopia por aquele lugar é muito maior. Neste momento a gente está brigando pelo prédio e vamos ocupar o prédio com um monte de coletivos artísticos. Então, de fato, ali vai ser uma coisa, isso move a gente e, claro, se não movesse, não estaríamos fazendo. Pelo fato de a gente estar querendo muito, mostra uma utopia que buscamos como saída possível. Do ponto de vista micro, individualmente, a gente sabe que muda muito pouco, mas está tentando acalentar um lugar macro ou, até chegar a esse macro, o Estado vir e matar a gente, mas a gente não tem saída. Vamos para esse lugar, vamos até onde a gente vai conseguir porque também não vamos ficar parados.

Eu não preciso dizer das qualidades, das características do Teatro de Contêiner, é claro, eu converso com o espectador através do Epidemia prata, mas é que o Epidemia prata é a fotografia da nossa residência naquele lugar. Acho o Teatro de Contêiner um poço de utopia. Às vezes parece que vou ter algum lampejo de que a gente está num lugar histórico, mas não consigo porque diariamente estamos vendendo coxinha de jaca, limpando o chão e fazendo teatro, e sempre não confortável com a pessoa que está dormindo na calçada, e acho que é o que nos move.

Não estou confortável, mesmo existindo uma grade que nos separa daquela pessoa que está na calçada, eu estou totalmente desconfortável com aquela pessoa dormindo na calçada e não conseguirei tocar a minha vida tranquilamente enquanto estiver alguém dormindo na calçada. Vou incessantemente buscar esse outro lugar até que não tenhamos mais gente dormindo na calçada. E aí são as armas que eu tenho, as armas que o coletivo tem, as armas que a Cia. Mungunzá tem, as armas que todos os grupos que ocupam o Teatro de Contêiner têm, que fazem aquele negócio girar sem o mínimo de patrocínio, sem o mínimo de edital, sem nada, as armas que a gente tem para se agarrar, para, no dia seguinte, não ter absolutamente ninguém mais dormindo na calçada… O espetáculo nos deixa num lugar desesperançoso, mas, como a Georgette falou, é do ponto de vista de uma fotografia ali. Um recorte foi feito, mas é claro que estamos todos imbuídos de uma esperança.

Georgette
Queria dizer que é muito lindo que a gente tenha pessoas dessa categoria, essas pessoas que olham, se debruçam, pensam e fazem a obra não ser só a obra e fazem a continuidade da nossa vida ser cada vez mais consciente. Às vezes uma frase que é dita define o próximo espetáculo, aponta erros. Essa crítica inteligente que a gente de vez em quando sente falta, é absolutamente importante essa junção de vocês também. A gente poder ter diante desse grupo quatro grandes pensadores do teatro ouvindo o que a gente está falando, para pensar, para ajudar, para trazer informações.

A gente realmente não consegue abarcar tudo e escapa tanta coisa e quando você vê a sua obra está inteira guiada por uma mentira e aí tem uma pessoa que olha e te aponta, então se a gente não faz arte para ir nessa evolução, nesse diálogo, para quê então? O trabalho de vocês e esse tipo de movimento que vocês estão fazendo ajuda demais a trazer consciência para as obras da gente. Eu sei que a gente está reduzido aqui, no âmbito muito pequeno, mas que seja. Então queria agradecer a vocês também. E dizer que a minha defesa da obra, e eu odeio defender coisa minha, acho que faço tudo pela metade, acho que ninguém nunca me viu falando bem de um espetáculo meu. Agora, eu faço isso em relação a essa obra e acho que é uma coisa que extrapola um pouquinho o âmbito da companhia porque tem muita gente que age e pensa dessa maneira. Então é importante o trabalho sim e eu defendo porque sinto que é menos meu, sinto que é da Cia. Mungunzá, e estou defendendo a Cia. Mungunzá e o projeto deles. Eu dirigi, mas literalmente dirigi. O carro estava lá, para onde eles queriam ir, estava posto. Eu tenho total responsabilidade sobre aquilo, mas eu sei que aquilo é deles e é por isso que eu defendo. Defendo porque estou defendendo um outro, não estou fazendo apologia do meu trabalho, acho completamente limitado, em todos os sentidos limitado, mas estou falando do trabalho da Cia. Mungunzá e por isso que eu levanto a faca com alguma veemência para essa defesa, porque é um espetáculo da companhia e eu acho relevante.

.:. Leia a crítica de Valmir Santos a partir de Epidemia prata

.:. Leia a coluna do Encontro com o Espectador no portal do Itaú Cultural

.:. Leia a íntegra de outras edições do Encontro com o Espectador, desde junho de 2016

.:. Visite o site da Cia. Mungunzá de Teatro

"Epidemia Prata" _direção Georgette Fadel Abrindo o repertório da Cia Mungunzá.Apenas duas semanas :Terça , quarta, quinta e sexta-feira. Sempre às 20h. Até dia 26/10.#mungunza10anos#ciamungunza#teatrodeconteiner#teatrodegrupo

Publicado por Cia Mungunzá de Teatro em Quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Equipe de criação:

Epidemia prata

Argumento e texto: Cia. Mungunzá de Teatro

Supervisão dramatúrgica: Verônica Gentilin

Direção: Georgette Fadel

Com: Gustavo Sarzi, Leonardo Akio, Lucas Beda, Marcos Felipe, Pedro Augusto, Verônica Gentilin e Virginia Iglesias

Codireção: Cris Rocha

Assistente de direção: Victor Djalma Amaral

Preparação corporal: Juliana Moraes

Direção musical: Bruno Menegatti

Vídeos: Flavio Barollo

Arquitetura cênica: Leonardo Akio e Lucas Beda

Figurino: Sandra Modesto

Desenho de luz: Pedro Augusto

Materiais gráficos: Leonardo Akio

Fotos de divulgação: Letícia Godoy e Mariana Beda

Produção executiva: Lucas Beda, Marcos Felipe, Sandra Modesto e Virginia Iglesias

Produção geral: Cia. Mungunzá de Teatro

Coprodução: Cooperativa Paulista de Teatro

Pela equipe do site Teatrojornal - Leituras de Cena.

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