Crítica
As peças do uruguaio Sergio Blanco costumam se concentrar em único objeto: ele mesmo. Ao contrário, porém, do que se poderia esperar, a escrita desse autor não utiliza a própria identidade como forma de criar um teatro egocêntrico ou autocentrado. Em El bramido de Düsseldorf, que integrou o Mirada 2018 – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas, em Santos, e foi encenada também em São Paulo, Blanco consegue desdobrar a si mesmo como um espelho do mundo.
Logo nos primeiros minutos no espetáculo, revela-se ao público toda a trama. Iremos acompanhar a morte do pai do dramaturgo (Walter Rey), um homem que deixa sua casa no Uruguai para passar uma temporada com o filho (Gustavo Saffores) na Europa. Lá, surge um convite para que Blanco vá à cidade alemã de Düsseldorf; o pai o acompanha e acaba morrendo em decorrência de um ataque cardíaco. Mas o que realmente importa – fica evidente desde o início – não é o enredo em si e, sim, os caminhos que a obra traçará para contá-lo.
Utilizado à exaustão pelas produções contemporâneas, o metateatro pode servir, muitas vezes, de estratégia vazia, mera forma de encobrir a ausência de propósitos dramatúrgicos consistentes. Não é o que podemos observar nas criações do uruguaio Sergio Blanco
Em El bramido de Düsseldorf, o escritor se vale da técnica da autoficção – mesmo expediente presente em suas criações anteriores, entre elas A ira de Narciso, que mereceu uma montagem brasileira com atuação de Gilberto Gawronski e direção de Yara de Novaes. O gênero garante a Blanco a liberdade de jogar com pedaços de sua própria biografia, embaralhando constantemente as versões, o que deixa quem assiste em um frutífero estado de suspensão.
Ainda que se trate de um teatro calcado no texto, na palavra escrita, o espectador não se vê diante de uma encenação tradicional, mas de uma forma que convoca constantemente o performático. O jogo de muitas camadas estabelecido entre os atores demanda ajustes e reajustes constantes de expectativas e leituras. Na mesma direção, aponta o uso de canções e filmes populares pela peça, com imagens e sons que forçam o público a convocar e atualizar suas memórias.
Para justificar a ida dos personagens para a Alemanha, algumas narrativas são trazidas à baila. O protagonista teria sido convidado para escrever o catálogo de uma exposição sobre o assassino em série Peter Kuerten, que matou e mutilou dezenas de pessoas no início do século 20. Mas pode não ter sido esse o motivo da viagem. Ele também teria sido contratado por uma produtora de filmes pornográficos para escrever um roteiro. Ou, abre-se uma terceira possibilidade: estaria atrás de um rabino que cuidasse de sua circuncisão e conversão ao judaísmo. Diante de tantas versões possíveis, onde está a verdade? E onde está a mentira?
É estranho lançar mão do conceito de verdade quando se está no teatro. Entre o espectador e os artistas estabelece-se, de antemão, um acordo tácito pelo qual toda a mentira será recebida como verdade provisória. Inicialmente, o autor nos convida a esse jogo. Parece lidar com o conceito de mimese, de representação de um dado acontecimento, como se criasse uma ficção que fosse tributária, em alguma medida, do real.
A autoficção de Sergio Blanco não se furta, nesse sentido, a conversar com a tradição cênica que o antecede. Mira toda a crise da imitação da realidade pelo teatro, bem como as novidades introduzidas por Mallarmé, por Bertolt Brecht e por Luigi Pirandello. Sua obra é construída a partir de interrupções do drama e de comentários irônicos das personagens, bem ao gosto do autor de Assim é se lhe parece. À sua maneira, também pactua de um metateatro, em que se olham para as coincidências entre ficção e vida, em que se questionam os limites entre a imagem que os outros fazem de nós e a maneira como nos enxergamos.
Utilizado à exaustão pelas produções contemporâneas, o metateatro pode servir, muitas vezes, de estratégia vazia, mera forma de encobrir a ausência de propósitos dramatúrgicos consistentes. Não é o que podemos observar nas criações do escritor uruguaio. Nesta peça, vem a primeiro plano o questionamento sobre a existência de limites éticos para a arte. A discussão se insinua em diversos momentos do próprio enredo: se o serial killer Peter Kuerten fosse, de fato, objeto de uma exposição isso poderia vir a ferir as vítimas e seus parentes. Mas essa deve ser uma questão levada em consideração quando se pensa em uma obra artística? Da mesma maneira, o dinheiro que pode ser obtido por meio da venda de uma determinada criação artística entra no debate. A relação entre arte e ética se adensa conforme nos aproximamos daquele que seria o mote do espetáculo: uma homenagem a um rapaz chileno, que teria se matado após assistir à montagem de A ira de Narciso.
Não sabemos quase nada a respeito desse jovem. Conforme a encenação se aproxima do fim, conhecemos um pouco mais dessa história. A única atriz em cena, Soledad Frugone, interpreta a mãe que perdeu o filho e escreve ao autor na esperança de obter alguma explicação. Assim como a morte do pai do artista, retratada na peça, pode ser apenas um pretexto dramatúrgico, nada garante que tenha havido qualquer suicídio vinculado à obra de Blanco. Ainda que lide com vidas e aspectos biográficos, o artista insiste em mostrar que suas escolhas – encarando a sua vinculação com o real como um pressuposto estético – não o impõem qualquer restrição.
As reiteradas afirmações acerca da independência total da arte são problematizadas no interior de sua própria dramaturgia. Após a morte do pai, o personagem do escritor vivencia uma crise. Foi obrigado a responder a um processo por se associar à produtora de filmes pornôs, cujos negócios esbarravam em tráfico e prostituição. Confrontou-se com a própria solidão e viu-se novamente vulnerável à dependência química, de que se mantinha até então afastado. A ausência de limites a que o autor se refere quando se trata de criar artisticamente encontra paralelo em seu desregramento com a vida – sempre pautada pelos excessos. Uma vitalidade tão extrema que acaba, invariavelmente, por esbarrar na morte.
Texto e direção: Sergio Blanco
Com: Gustavo Saffores, Soledad Frugone e Walter Rey
Videoarte: Miguel Grompone
Cenografia, figurinos e iluminação: Laura Leifert e Sebastián Marrero
Desenho de som: Fernando Tato Castro
Produção e distribuição: Matilde Lópes Espasandín
Apoio: Instituto Nacional de Artes Escénicas (INAE) Uruguay, Teatro Solís e Marea
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.