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Artigo

Os batimentos de ‘Rasga coração’

20.2.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Fabio Rebelo

A reedição da peça Rasga coração e a inédita adaptação cinematográfica de mesmo nome, dirigida por Jorge Furtado, transformaram o recesso teatral de fim/início de ano em oportunidade de acercamento ao último texto de Oduvaldo Vianna Filho para teatro. Livro e filme demonstram o quanto o drama tem a dizer à sociedade 44 anos depois de Vianinha, como era conhecido, concluí-lo a duras penas, num 23 de abril, mesmo dia da morte de Shakespeare no século XVII e a 85 dias de sua própria morte, em 16 de julho de 1974.

O processo de escrita durou de 1971 a 1974, período em que o autor trabalhou intensamente para o teatro e a televisão, inclusive nos 17 meses de tratamento do câncer de pulmão que o matou aos 38 anos. Após anos no limbo, censurada, premiada postumamente e só encenada cinco anos depois, em 1979, a peça foi publicada pela primeira vez em 1980, por iniciativa da Fundação Nacional de Artes e do Serviço Nacional de Teatro, então vinculados ao extinto Ministério da Educação e Cultura – sempre sob a vigência da ditadura militar. Saiu pela Coleção Prêmios capitaneada por Funarte, SNT e MEC.

Portanto, o livro estava fora de catálogo havia décadas, raramente encontrável em sebos. Agora, ressurge com o conteúdo original de 322 páginas divido emf dois volumes, empreitada da Temporal, a recém-criada editora paulistana que confere tratamento gráfico à altura.

O panorama sócio-histórico-cultural da peça corresponde a uma composição de linguagem também ela rica em contrapontos para que o leitor ou o público em potencial processe sua própria experiência a partir do encontro ao vivo ou, no caso, sem que Vianinha possivelmente sonhasse, transposto para a sala de cinema

Sua organização editorial coube a Maria Silvia Betti, professora da USP e pesquisadora de teatro estadunidense e brasileiro, autora do alentado ensaio Oduvaldo Vianna Filho (Edusp, 1997, da coleção Artistas Brasileiros). Ela faz parte do conselho da editora, ao lado, entre outros, do diretor Eduardo Tolentino de Araújo, do Grupo Tapa, que já montou Moço em estado de sítio e Corpo a corpo, dos títulos mais conhecidos de Vianinha para os palcos, assim como Mão na luva e Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

Maria Silvia Betti assina as apresentações tanto para a peça como para o Dossiê de pesquisa, considerando as singularidades e complementariedades dos respectivos livros. O segundo constitui valioso documento elaborado pela jornalista Maria Célia Teixeira, que trabalhou na TV Tupi, na TV Globo e até meados dos anos 2000 era colaboradora do caderno Ideias, do extinto Jornal do Brasil. Quando ainda estudante, ela foi convidada por Vianinha a garimpar nos arquivos da Biblioteca Nacional dados históricos, sociais, políticos e culturais da vida nacional a fim de subsidiar parte da realidade do século XX contemplada no enredo.

Há o país da narrativa que se passa no início dos anos 1970 e intercala recuos espaço-temporais até os anos 1930, tensionando a ética, a moral e os ideais de três gerações (avô, pai e filho). E há o país atual em que o filme estreou às vésperas da posse de um governo orientado pelo militarismo. O roteiro adaptado foi pertinaz ao transpor a ação para a sociedade brasileira disruptiva de 2013 para cá, inclusive na incorporação de temas identitários, como se verá adiante.

A dramaturgia de Rasga coração carrega ideias e afetos em profusão. Os dilemas individuais incidem sobre o coletivo e trazem reflexos de períodos de repressão política, no Estado Novo (1937-1945) ou no regime militar (1964-1985). Implicam ações na clandestinidade, na rua, na fábrica, na escola, na família, enfim, não importa a instância.

Como ainda não assistimos a uma montagem profissional, a conjunção do filme e da publicação (desdobrada) trouxe ressignificações e nos levou a revisitar biografias e estudos a partir da obra de Vianinha ou dos inúmeros artigos reflexivos que legou.

Houve pelo menos duas relevantes produções de Rasga coração: uma assinada pelo paulista José Renato (1926-2011), cofundador do histórico grupo e espaço Teatro de Arena (SP) – onde Vianinha atuou e com ele cultivou longa amizade e algumas diferenças estéticas e ideológicas – e outra pelo ator carioca Dudu Sandroni.

A primeira montagem, por José Renato, estreou em 21 de setembro de 1979, no Teatro Guaíra, em Curitiba, após cinco anos de censura da peça, compreendendo os governos dos generais Médici, Figueiredo e Geisel. Também fez temporadas no Teatro Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, e no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, tendo Raul Cortez (1932-2006) como protagonista, a contracenar com Sônia Guedes, Antônio Petrin, Ary Fontoura e Lucélia Santos, entre outros.

Reprodução

O ator Raul Cortez protagoniza ‘Rasga coração’ como o ex-militante comunista e funcionário público Custódio Manhães Jr. na primeira montagem dirigida por José Renato, em 1979

Sandroni estreou sua versão em 29 de março de 2007, no Teatro da Glória, no Rio, apresentada também no Sesc Santana, na capital paulista, tendo Zécarlos Machado, um dos componentes do Grupo Tapa, no mesmo papel principal vivido por Raul Cortez na montagem seminal: o de Custódio Manhães Jr., o “Manguari Pistolão”, o sugestivo apelido de juventude que designa uma pessoa alta e influente.

No plano presente da narrativa, Manguari Pistolão é servidor do Tribunal de Contas, onde trabalha há 25 anos. Homem de meia idade, casado com Nena e pai de Luís Carlos, o “Luca”, constitui família de classe média moradora em Copacabana. Em meio à rotina do trabalho e ao cotidiano da casa, as queixas da mulher por reformas e as despesas com a compra do mês, o pai lida com a inquietude do rapaz. Junto a outros colegas do colégio, Lucas, de 17 anos, reage às regras conservadoras do colégio, como a de proibir que os meninos usem cabelo longo em plena voga da contracultura, de ruptura comportamental e resistência a valores hegemônicos.

O levante do filho e dos estudantes reacende em Manguari Pistolão sua formação na juventude – aquele a quem o crítico Yan Michalski considerava “talvez o personagem mais complexo e comovente que conheço em toda a dramaturgia nacional” (Documento poético dos nossos becos sem saída, Jornal do Brasil, 13/10/1979).

Passa pela falta de entendimento com o pai, adepto do integralismo, movimento eclodido no país na década de 1930, de inspiração fascista e caracterizado por um nacionalismo autocrático, pela defesa de valores religiosos e tradicionais sob o lema “Deus, Pátria, Família”. Tem a ver ainda com a descoberta da sexualidade e a militância política de esquerda com os companheiros e estudantes Camargo Velho e Luís Campofiorito, o “Lorde Bundinha”.

A sinergia do trio, com o qual também conhecerá momentos trágicos, e o choque de visões com o pai interpenetram-se nos diálogos, fazenda das cenas de memória um retrato das constituições política e humanista que o personagem central vê testadas agora no conflito geracional com Luca. É como se os papeis se invertessem.

Se Manguari foi expulso de casa pelo pai porque desejava estudar, entre outras razões (como flagrá-lo transando com a namorada – e futura mulher, diga-se –, uma alegada transgressão moral), hoje é ele quem expulsa o filho que não quer mais estudar nos moldes convencionais do vestibular, prefere a ação direta em comunidades do Brasil profundo para transformá-las concretamente, como imagina.

A própria instituição escola é colocada em xeque pelo movimento estudantil encabeçado por Luca, pela namorada Milena e por outros colegas. O sentido de mobilização social guarda nexo entre as gerações, mas os procedimentos são distintos na hora de agir em níveis público ou privado.

Fabio Rebelo

Os atores Anderson Vieira (Camargo Velho, à esquerda) e João Pedro Zappa (Manguari jovem) no plano do passado da adaptação cinematográfica

Arte da ação, o teatro era a plataforma artística por excelência de Vianinha. Em Rasga coração, a combinação de estilos (realismo, expressionismo, anti-ilusionismo, drama, colagem e musical) expressa firmemente o seu desejo por avançar na elaboração formal em mais de década e meia de produção dramatúrgica. O panorama sócio-histórico-cultural corresponde a uma composição de linguagem também ela rica em contrapontos para que o leitor ou o público em potencial processe sua própria experiência a partir do encontro ao vivo ou, no caso, sem que ele possivelmente sonhasse, transposto para a sala de cinema.

O autor não abria mão da arte capaz de trazer em seu bojo a luta permanente por uma sociedade mais justa. Consciência carregada do berço, filho de militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB): o radionovelista, dramaturgo e diretor Oduvaldo Vianna (1892-1972) e a também radionovelista Deocélia Vianna (1914-1987).

Aliás, foi à mãe que ele, mesmo hospitalizado, ditou o segundo ato – estava a quase três meses da morte. Deocélia registrou diálogos e rubricas num gravador e depois transcreveu o conteúdo, exímia datilógrafa que era. O primeiro ato e o prefácio foram concluídos em fevereiro de 1972. O percurso criativo se estendeu até abril de 1974, motivado pelo acumulo de roteiros para a televisão e, em seguida, pelo diagnóstico e tratamento da doença. Superou-se assim, física e emocionalmente, para pôr o ponto final na peça em que a ambição estética era uma premissa, assim como o distanciamento do drama pessoal que vivia.

Conforme o jornalista e pesquisador Dênis de Moraes observa em Vianinha: cúmplice da paixão (Editora Record, 2000), o biografado “falava em dois tipos de vanguarda – a que privilegiava a arte pela arte e a que queria poetizar a realidade e conhecê-la profundamente para transformá-la”.

O programa do espetáculo Dura lex sed lex, no cabelo só Gumex (1967), uma incursão pelo teatro de revista, gênero que admirava, já enunciava os desígnios da prática textual que carreava dos convívios com os pares nos grupos Teatro Paulista do Estudante (TPE), Teatro de Arena, Centro Popular de Cultura – União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE) e Grupo Opinião:

“Não consigo imaginar nada que não possa ser urgente, aflitamente atuante, imediato, na boca do cofre. Ao mesmo tempo, tenho consciência de que esta sofreguidão, se acompanha o dia a dia, não acompanha a evolução do humano neste país; evolução que se dá menos rapidamente, tem estruturas mais fundas, aspectos muito mais complexos. Tenho de passar de panfleteiro a artista. É uma dura escalada, que só agora começa a me preocupar seriamente, tão absorvido estive com a indispensável agitação. Há que juntar os dois: a linguagem, os fatos do imediato, do instantâneo com a apreensão do mais profundo, do mais rico e denso”, ponderou.

Reprodução

Livro e filme demonstram o quanto o drama tem a dizer à sociedade 44 anos depois de Vianinha, como era conhecido, concluí-lo a duras penas, doente, a 85 dias de morrer em 16 de julho de 1974

Ainda segundo Maria Silvia Betti, Vianinha viveu, em larga medida, impasses à altura de alguns dos seus protagonistas, como o de sentir-se “dividido agonicamente entre a busca da elaboração artística e a de expressão de uma consciência politizante”. Apesar de apartado do trabalho artístico, pois funcionário público, Manguari Pistolão pode ser lido como um alter ego: carrega desde a juventude a chama acesa da militância comunista.

Como analisou a crítica Mariangela Alves de Lima, “o rigor e o ardente sonho de justiça social foram o pão de cada dia” para o dramaturgo que não dissociava a prática intelectual da artística (O Estado de S.Paulo,19/4/1997). Não importa o tema (a questão agrária, o sindicalismo, a educação, a exploração do trabalho pelo capital), suas histórias reafirmaram o princípio da solidariedade.

No prefácio temporão a Rasga coração, ele concebeu a peça como “uma homenagem ao lutador anônimo político, aos campeões das lutas populares, preito de gratidão à ‘velha guarda’, à geração que me antecedeu, que foi a que politizou em profundidade a consciência do país”.

Essa interdependência é flagrante e aparece sob diferentes pontos de vista. Se os ambientes da família, da escola, do trabalho e da vida em sociedade já são, obviamente, afetados pela engrenagem dos três poderes, resultam violentamente distorcidos sob regimes autoritários.

Vianinha dedicou aquela que seria a sua última peça ao filho primogênito, Vinicius, do casamento com a atriz Vera Gertel (também foi pai de Pedro Ivo e de Mariana, da união com Maria Lúcia Lousada Marins). Vera, ele e o ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) foram cúmplices na criação do Teatro Paulista do Estudante (TPE), em 1954, orientados pelo teatrólogo italiano Ruggero Jacobbi (1920-1981). No ano seguinte, o jovem grupo amador fundiu-se ao Teatro de Arena, companhia e espaço empenhados em abordar temas nacionais sob procedimentos cênicos afins na fase de modernização do teatro brasileiro.

“Embora conscientemente construído com o sentido de comprovar a tese de que o novo nem sempre é revolucionário, e de que o passado pode ter sido mais inovador que o presente, Rasga coração parece sugerir, na evolução de seu enredo, um aspecto que extrapola esse objetivo declarado: o vocativo do título expressa o desejo de que o coração se ‘rasgue’ e de que, portanto, o padrão de repetição se interrompa”, afirma Maria Silvia Betti em seu estudo sobre o autor.

O roteiro cinematográfico mantém a estrutura épica. Como na peça em que foi baseado, a perspectiva histórica vem colada à humanidade dos sujeitos. As lutas políticas não encobrem os afetos, os desejos. O deslocamento da ação de 1972 para 2013 introduz sutilezas outras. Convida o espectador de hoje, induzido à polarização, a amplificar a percepção das forças em jogo na sociedade.

Além da ênfase crítica à desigualdade social, o roteiro escrito por Jorge Furtado, Ana Luiza Azevedo e Vicente Moreno, em colaboração com integrantes do núcleo de produção de texto da Casa de Cinema de Porto Alegre, problematiza os direitos de gênero e de raça.

Os jovens militantes comunistas que vão às ruas pichar frases de protesto, organizados clandestinamente, guardam relação atemporal, no intervalo de décadas, com os estudantes do ensino médio que ocupam o colégio particular contra a diretoria conservadora que quer ditar o jeito de se vestirem ou manterem seus cabelos.

Fabio Rebelo

Chay Suede (Luca) e Luisa Arraes (Mil) são namorados engajados no grêmio estudantil e combatentes da moral conservadora no tempo presente da peça que no filme se passa em 2013

A sequência é embalada e ainda mais inspirada pela canção Gothan City, que a banda psicodélica Os Brazões defendeu num festival em 1969, com letra de Capinan e Jards Macalé no vocal – um protesto ao estado militarizado que os censores fãs de Batman não se deram conta. As manifestações coletivas e a repressão policial, em meio a bombas de gás de lacrimogênio, remetem imediatamente ao imaginário recente das Jornadas de Junho ou às ocupações organizadas, país afora, em escolas públicas e organizadas pelos aprendizes, inclusive com destacada presença de mulheres na liderança.

Correspondência perfeita à personagem Milena, namorada do filho de Manguari Pistolão. Ela defende a ação direta (a resistência de Conselheiro e seguidores em Canudos é seu norte) quando alianças e pactos patinam nas assembleias do grêmio. No filme, seu nome foi reduzido a Mil e é interpretada por Luisa Arraes.

A relação dela com Luca (por Chay Suede) provoca nele uma evolução para a autonomia, o salto para a vida adulta fora das asas do pai e da mãe. Manguari Pistolão e Nena são atuados, respectivamente, por Marco Ricca e Drica Moraes, artistas forjados na cultura teatral. Idem para o também veterano Nelson Diniz, como o pai de Manguari, vulgo “666”. A rigor, a ala jovem do elenco demonstra afinidade com essa arte: George Sauma (como Bundinha), João Pedro Zappa (como Manguari jovem) e a própria Luisa, em cartaz atualmente com Grande sertão: veredas.

Mas o fio identitário mais expressivo na versão cinematográfica de Rasga coração encontra-se no laço intergeracional de Camargo Velho e Camargo Moço, tio e sobrinho. Eles agora são tio e sobrinha, ela rebatizada Talita. Mais importante: ambos são negros.

O ânimo revolucionário do estudante de medicina Camargo Velho (interpretado por Anderson Vieira) fazia dele um farol intelectual entre os companheiros. Naqueles conturbados anos 1930 ele era imbuído de causas operárias e crente na conscientização política das massas para alavancar o poder popular (Washington Luís fora apeado da Presidência da República por uma junta militar que entregou o cargo a Getúlio Vargas e este ficou ao todo 18 anos e meio no comando do país).

No filme, o Camargo Velho do passado, seu senso afiado de historicidade, ecoa no presente por meio da sobrinha (interpretada por Cinândrea Guterres). Estudante do ensino médio, Talita é articulada nas discussões com os demais colegas, espelho da mulher do século XXI. Tio e sobrinha, portanto, referenciam a luta anti-racista por meio dos seus corpos e ideais. Esse enfoque não é mencionado no texto de Vianinha, mas o diretor e a equipe sentiram-se à vontade para trazê-lo à tona.

Jorge Furtado escapa da reverência mística à peça. A multiplicidade de planos narrativos do original flui como naquele estágio biológico entre a juventude e a velhice. Não dá brecha para resultado mediano, afinal são cerca de 40 anos de trabalho com o audiovisual. Personagens que em determinada cena aparentam ser satélites de Manguari Pistolão, na seguinte surpreendem pela exuberância à parte. Transgredir a forma de contar essa história equivale a uma boa dose de subversão. O dramaturgo provavelmente gostaria desse enunciado.

Fabio Rebelo

Cinândrea Guterres atua como Talita, personagem que na peça equivale ao sobrinho do militante comunista e líder Camargo Velho: ambos os atores negros incutem o debatem acerca do racismo na atualidade

Vianinha desejava que o público saísse do teatro dividido, “carregando o dois que há em cada um de nós”. A centelha do desassossego produtivo, a dúvida como “arma fundamental”, como diz Camargo Moço a Manguari Pistolão, a certa altura da peça. A dúvida que “acorda”, que “arrepia as pessoas”. Em sua crítica à pioneira montagem de José Renato, Mariangela Alves de Lima disse: “O desafio que Vianinha propõe é, certamente, de uma natureza sutil, porque é feito ao público e não aos que governam. Investigando as atitudes e os dramas de consciência de cada geração, a peça penetra na consciência do próprio espectador, questiona a sua responsabilidade como ser humano e social” (Peça-símbolo da fase de censura, O Estado de S.Paulo, 24/4/1979).

Uma das pesquisadoras fundamentais da obra de Vianinha, a professora Rosangela Patriota lamenta que “seus textos estão ausentes da cena e do repertório da população jovem desse país”. Na conclusão do livro A crítica de um teatro crítico (Perspectiva, 2007), ela afirma: “Em verdade, eles estão em repouso, aguardando uma leitura com os olhos livres de juízos de valor e de pré-conceitos que, muitas vezes, impedem de arrancá-los do conformismo de um tempo passado e de oferece-los às inquietações do tempo presente”.

Furtado cumpre esse programa à risca, no cinema brasileiro, posicionando-se refratário ao passadismo e ao obscurantismo cultural vigentes. Vivendo em Porto Alegre, cidade natal, o cineasta tornou-se conhecido por longas-metragens como O homem que copiava (2003), Saneamento básico, o filme (2007) e O mercado de notícias (2013), este um documentário que discutiu jornalismo e democracia entremeando cenas da peça The staple of news, do inglês Ben Jonson (1572-1637), contemporâneo de Shakespeare, e entrevistas com profissionais da imprensa brasileira como Bob Fernandes, Geneton Moraes Neto, Jânio de Freitas, Mino Carta e Renata Lo Prete.

Curiosamente, uma das críticas mais tempestivas a Rasga coração veio do diretor Glauber Rocha (1939-1981). No programa Abertura, que apresentava na extinta TV Tupi, o ícone do Cinema Novo definiu a peça como “uma tentativa de ver a sociedade brasileira através da classe média, como se a classe média fosse foco de visão para alguma coisa. Isto é besteira teórica, de origem. É o discurso simplificante da arte populista”, afirmou (1/3/1980).

Vianinha também tinha familiaridade com o cinema. Era um bebê de três meses quando o fizeram participar do filme Bonequinha de seda (1936). Estreou no colo da atriz Luba Vatnic na cena em que conta uma história às crianças de um orfanato. A produção da Cinédia foi roteirizada e dirigida pelo pai, Oduvaldo Vianna. Essa figuração precoce exemplifica a intensidade com que conviveu com a arte e a cultura em seus 38 anos de vida.

Em Cinco vezes favela (1962), reunião do mesmo número de curtas-metragens pelos diretores – Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Marcos Farias e Miguel Borges –, ele protagonizou Escola de samba, alegria de viver, assinado por Diegues. Na única incursão cinematográfica do CPC da UNE finalizada (a outra foi Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, interrompida pelo golpe civil-militar de 1964), o personagem Gazaneu é um jovem sambista levado a assumir a presidência de sua agremiação do peito a semanas do Carnaval.

O rapaz se vê obrigado a reduzir a boemia para enfrentar dívidas, rixas com rivais e discussões com a mulher trabalhadora numa fábrica e adepta da luta sindical. Certo dia, alguns homens acabam batendo em Gazaneu e queimando a bandeira da escola. Ele não se intimida e pede à comunidade para fazer um desfile “no sangue”.

Acervo Cedoc/Funarte

O pai Oduvaldo Vianna e o filho Vianinha: ambos escreveram para o teatro

Se o pai teve experiências no rádio, no teatro e no cinema, Vianinha criou para o teatro, o cinema e a televisão. A esta, dedicou-se a partir do ano seguinte à decretação do Ato Institucional Número 5, o AI-5, em dezembro de 1968. Conciliou as linguagens televisiva e cênica nos últimos seis anos de vida, trabalhando para a TV Tupi e, principalmente, para a TV Globo. Nesta emissora, escreveu roteiros adaptados de textos clássicos para episódios do programa Caso Especial, como Medeia, a partir de Eurípides (deflagrador de Gota d’água para Chico Buarque e Paulo Pontes); Ratos e homens, de John Steinbeck; e Noites brancas, de Dostoiévski, este em dobradinha com Gilberto Braga, todos exibidos em 1972.

Como sabemos, Rasga coração ficou sob espécie de intervenção branca após 1974 (não podia ser encenada porque o autor não deixara autorização para tal, artifício jurídico surreal) e foi efetivamente censurada em 1977, pelo então ministro da Justiça, Armando Falcão, do governo do general Geisel, alegando tratamento jocoso aos preceitos integralistas.

No mesmo ano de conclusão da peça e da morte do autor, familiares e amigos inscrevem-na no Concurso de Dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro (SNT). A comissão a premiou, postumamente, e o mesmo órgão conspirou para a sua publicação, em 1980, via Funarte. Era a sexta edição do concurso que estava suspenso desde 1968, quando a peça premiada da vez foi Papa Highirte, do mesmo Vianinha e também censurada até a revogação do AI-5, em dezembro de 1978.

A nova edição de Rasga coração pela Temporal é digna do legado do dramaturgo. Inclui 122 notas de rodapé no volume da peça e coteja o manuscrito das duas cenas finais do segundo ato com a versão publicada, entre outros anexos. Já a leitura do Dossiê de pesquisa proporciona estalos como a origem do substantivo “gari”. “Criou-se um serviço de limpeza pública entregue por contrato a Aleixo Gary e Cia. e daí o nome de gari que jamais se despegou dos apanhadores de lixo”.

Ou uma anotação de 1934, como que telegráfica, referente ao espaço alternativo aberto em São Paulo pela iniciativa do arquiteto e cenógrafo Flávio de Carvalho (1899-1973), no ano anterior, e fechado meses depois. Foi no Teatro da Experiência que encenou Bailado do deus morto, espetáculo de teatro-dança que inovava em sua estética e trazia no elenco artistas de maioria negra. “O Teatro de (sic) Experiência ali acaba de ser brutalmente fechado pela polícia. Um grupo de literatos lançou-se ao trabalho de organizar um teatro independente. Os proletários têm sido presos sob suspeita de comunismo”.

Dentre os diretores que mais recorrentemente visitaram a obra teatral de Vianinha estão o Aderbal Freire-Filho, no Rio de Janeiro, que desde meados da década de 1970 montou Corpo a corpo, Moço em estado de sítio, Mão na luva e Em família, rebatizada Vianinha conta o último combate do homem comum. E Eduardo Tolentino de Araújo, que assinou duas das produções do Grupo Tapa a partir da metade dos anos 1990, Corpo a corpo e Moço em estado de sítio – a terceira, Mão na luva, foi concebida e interpretada por Isabella Lemos e Marcelo Pacífico, atores do núcleo de estudos do Tapa. Tolentino faz parte do conselho editorial da Editora Temporal, assim como Maria Silvia Betti. A casa vai reeditar outras peças do autor e acaba de lançar Papa Highirte.

Em entrevista a este jornalista, em 2014, por ocasião da montagem de Os Azeredo mais os Benevides, no teatro da União Metropolitana dos Estudantes Secundaristas (UMES), em São Paulo, o diretor João das Neves (1935-2018), parceiro de Arena, CPT e Opinião, afirmou que ao expor o conflito entre a classe dominante e os trabalhadores camponeses Vianinha fez “uma fotografia do passado para compreender o presente, de onde saímos para saber onde estamos chegando”.

Talvez seja esse o movimento comum em seus textos, de mergulho nos processos históricos em busca de fontes para interpretar e transformar a realidade. Mesmo quando pisava a indústria cultural da televisão: “Há valores que precisam ser permanentemente veiculados, como a solidariedade, o direito ao fracasso, a beleza da justiça, a igualdade dos seres humanos, o direito à busca da felicidade. Nada criei em tudo que escrevi para a televisão. Mas sempre procurei tornar extensivos estes valores mais nobres criados pela humanidade à custa de séculos”.

O livro e o filme Rasga coração interagem nesses termos. Infelizmente o trabalho de Jorge Furtado ficou apenas cinco semanas em cartaz em São Paulo, em sala única, equilibrando-se entre os ingratos meses de dezembro e início de janeiro em que predominam os blockbusters de Hollywood. No início deste mês entrou no menu das plataformas digitais pagas NOW, Vivo e Oi Play.

E no último dia 9, o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo, acolheu a leitura do texto no projeto Liberdade em Cena, parceria com o Observatório de Comunicação e Expressão e Censura (OBCOM) da Escola de Comunicações e Artes da USP. Participaram atores de distintas gerações: Adriana Dham, Carlos Palma, Lia Benacon, Oswaldo Mendes, Pedro Bonilha, Pedro Paulo Vicentini, Rodrigo Mercadante, Tin Urbinatti e Walter Breda. A ação foi dirigida por Roberto Ascar e acompanhada pelos músicos Jean Garfunkel, Pratinha Saraiva e Betinho Sodré.

Assim, a obra artística de Oduvaldo Vianna Filho segue batendo forte em suas convicções, incertezas, contradições e autocríticas para quem se dispõe a ir ao seu encontro.

Fabio Rebelo

O diretor Jorge Furtado (de costas) e Marco Ricca (à direita) conferem gravação no set do filme

Em outra passagem da peça, Lorde Bundinha convida Manguari Pistolão para ajudá-lo na criação de uma revista teatral para o Serviço de Propaganda e Turismo do governo Vargas, um bico que o colega que faz parte do coro de uma rádio recusa, veemente, para não engrossar a onda getulista. No filme, a cena muda de contexto. Bundinha chama Manguari para um trabalho no espaço público e, chegando lá, descobre tratar-se de panfletagem para alistar jovens no Exército, serviço que também recusa, soltando o verbo do patrulhamento ideológico.

Na vida real, Vianinha também foi preso quando distribuía panfleto a favor da posse de João Goulart, no início dos anos 1960. Jango era vice-presidente, estava em viagem diplomática à China, Jânio Quadros renunciou, mas ministros militares resistiram seguir a Constituição, que mandava o vice assumir. E assim foi.

O dramaturgo ficou poucas horas detido. “Vianna acabrunhou-se ao ser preso. É estranho que ele nunca tivesse pensado nessa possibilidade. Mas ninguém ia para a rua distribuir panfletos políticos sem saber dos riscos. Ou sem se dar conta de sua vulnerabilidade. Soube por terceiros, presos junto com ele, o quanto se sentiu intimidado com os primeiros tapas e xingamentos dos policiais, ainda dentro da viatura”, escreveu Vera Gertel na autobiografia Um gosto amargo de bala (Civilização Brasileira, 2013).

A atriz e ex-mulher o trata o tempo todo por Vianna e, com admiração e relativo grau de resignação, expõe facetas do homem cuja insegurança sentimental era inversamente proporcional à pujança das ideias. Vera recorreu a um verso de Paulo Leminski como epígrafe de seu livro, verso evocado aqui sob medida para o autor de Rasga coração: “Haja hoje para tanto ontem”.

.:. Visite o site da Editora Temporal que, após Rasga coração, lançou Papa Highirte. A casa promete outros títulos de Oduvaldo Vianna Filho

.:. Conheça as produções da Casa do Cinema de Porto Alegre

.:. Leia artigo acerca da montagem de João das Neves para Os Azeredo mais os Benevides

 

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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