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Reportagem

O contrapoder da cena na MITsp

14.3.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Mayara Azzi

Para o sociólogo José de Souza Martins, “prestar atenção nos movimentos corporais de quem nos governa é um meio de compreender em tempo o que será o governo e de que tipo serão suas crises”. No caso do novo presidente, os idealizadores da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, a MITsp, estavam de olho no discurso das “arminhas” com as mãos desde a campanha eleitoral. As formas de violência subjacente em muitas promessas de campanha tornaram-se concretas nas primeiras e longas 11 semanas de gestão – serão 208 até 2022.

No artigo As pernas do poder, publicado no último dia 8 no jornal Valor Econômico, Martins, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP, cita as posturas, gestos e expressões que embasam o discurso paralelo sobre o presidente invisível que há em Lula (o operário e sindicalista da porta da fábrica), FHC (o professor da sala de aula), João Figueiredo (“o oficial de cavalaria sempre montado, mesmo quando caminhava”) e o presidente atual, cujo cenário foi assim captado:

“Desde o dia da posse, a rigidez militar da postura do novo presidente em atos públicos e oficiais indica a socialização formal própria da vida de quartel, a sociabilidade limitada às regras da ordem unida, da voz de comando, da disciplina de comando. Seu corpo não está à vontade na pessoa presidencial, seu corpo ainda não assumiu a Presidência”, afirma o sociólogo.

O corpo é o primeiro a ser enfrentado diante de uma ditadura, de uma figura de poder, disse a artista venezuelana Deborah Castillo durante roda de conversa da MITsp, cuja 6ª edição cumpre à risca um programa anticonservadorismo em pleno momento de perplexidade diante de um Estado de viés autocrático

A dois dias do segundo turno, em 28 de outubro, o curador da mostra, Antônio Araújo, do Teatro da Vertigem, circulava via aplicativo de mensagens uma carta do diretor suíço Milo Rau em que se lia: “Nós pedimos aos brasileiros para se oporem à política de ódio e ignorância e votarem por um mundo mais justo e pela sobrevivência da humanidade”. Trecho do documento assinado por Rau, pela dramaturga e assistente de direção Eva-Maria Bertschy e pelo cientista político Raul Zelik, ambos alemães.

Rau e Eva-Maria são ligados ao International Institute of Political Murder, corruptela institucional do coletivo suíço-alemão fundado em 2007 para cometer assassinato político nos marcos artísticos e políticos do teatro, do cinema e da escultura social.

Escultura social é um conceito ampliado de arte cunhado pelo artista alemão Joseph Beuys (1921-1986), cofundador do Partido Verde, para revolucionar as correlações de forças na sociedade, sempre levando em conta a perspectiva histórica e a observação da realidade com lupa.

Artista internacional em foco na 6ª MITsp, Milo Rau, de 42 anos, vem pela primeira vez ao Brasil e chega com três espetáculos que não foram concebidos para tanto, mas cumprem à risca um programa anticonservadorismo em pleno momento de perplexidade diante de um Estado de viés autocrático.

Duas das três criações pesquisadas a partir de histórias reais abordam casos de homofobia e de pedofilia, respectivamente. A tortura e morte de um jovem gay por quatro homens na saída de uma festa na Bélgica, em 2012 – sua ascendência era marroquina –, está no cerne de A repetição. História(s) do teatro (I). Montagem das mais repercutidas no 72º Festival de Avignon, em julho, está escalada para abrir a MITsp na quinta-feira, dia 14, em sessão para convidados no Auditório Ibirapuera.

Michiel Devijver

Cena de ‘A repetição. História(s) do teatro (I)’, um dos três espetáculos do suíço Milo Rau escalado para abrir a programação da MITsp, que vai de 14 a 24 de março

Já o espetáculo Cinco peças fáceis (2016) é baseado nos crimes do belga Marc Dutroux, condenado em 2004 por violência sexual e assassinato de crianças. Como que invertendo o ponto de vista diante de trágico episódio, o elenco é formado exclusivamente por crianças e adolescentes entre 11 e 14 anos. Questões estritamente estéticas e dramatúrgicas unem-se às questões morais.

A noite de abertura da mostra, citada há pouco, terá como mestre de cerimônia o performer, coreógrafo e escritor Wagner Schwartz, que sofreu ameaças de morte após apresentar a ação La bete (A besta).

Em setembro de 2017, o coreógrafo foi acusado de incitação à pedofilia e recebeu dezenas de ameaças de morte depois que uma foto da performance La bête serviu de bode expiatório para a sanha reacionária da internet.

Na imagem, o seu corpo nu poderia ser manipulado pelo público à maneira de um origami, pequena dobradura com a qual dividia o espaço cênico no nível do chão e contrastava a escala. Numa sessão realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, uma criança acompanhada pela mãe tocou a perna e a mão do artista – foto captada para distorcer a narrativa da performance em nome do falso moralismo.

Schwartz está contemplado ainda na mostra de espetáculo da MITsp com a estreia nacional de A boba, performance inspirada no quadro de mesmo nome da pintora Anita Malfatti (1889-1964). Ele percebe na obra expressionista as cores da bandeira nacional e confronta a ideia de nação, segundo ele “uma fantasia de continuidade histórica constituída e mantida através da opressão”.

De Souza

Após vivenciar censuras, a atriz e ativista Renata Vasconcelos radica no inédito ‘Manifesto transpofágico’ a construção social e a criminalização do corpo travesti na sociedade

Outra estreia da mostra é o solo Manifesto transpofágico, de Renata Vasconcelos e direção de Luiz Fernando Marques, cofundador do Grupo XIX de Teatro. Após a censura enfrentada no drama O evangelho segundo Jesus, rainha do céu (2016), texto da escocesa transexual Jo Clifford, Renata radica no palco a construção social e a criminalização do corpo travesti na sociedade. Boa parte do material de sua pesquisa vem da experiência de 11 anos atuando como agente de prevenção voluntária de infecções sexualmente transmissíveis, hepatites e tuberculose, atendendo especificamente às travestis e mulheres trans na prostituição, em Santos e São Paulo.

Em março do ano passado, Renata e Schwartz se juntaram à coreógrafa Elisabete Finger (a mãe da criança acima) e ao performer Maikon K para compor o espetáculo Domínio público, talvez o gesto curatorial mais relevante de 2018 nas artes cênicas do país, por Guilherme Weber e Marcio Abreu, no âmbito do Festival de Curitiba. Pois Maikon K completava o quarteto de artistas e cidadãos vítimas da ignorância. Em julho de 2017, ele teve sua performance DNA de Dan interrompida por forças de segurança, na área externa do Museu Nacional, em Brasília. Ele foi levado à delegacia no camburão da viatura. Um homem nu, no invólucro de uma bolha, detido por atentado ao pudor.

A questão de gênero no espetáculo chileno Paisagens para não colorir, dirigido por Marco Layera, realizado em colaboração com onze adolescentes chilenas entre 13 e 17 anos em cena; e o lugar de fala sobre identidade, androgenia, dor e aceitação em MDLSX., da performer italiana Silvia Calderoni, do grupo Motus, estão entre as experiências que reverberam do corpo para refletir acerca de liberdade.

Ao todo, serão nove espetáculos internacionais (Bélgica, Chile, Congo, Itália, Reino Unido e Suíça) e três estreias nacionais na mostra. A MITbr – Plataforma Brasil, voltada a programadores internacionais, os “olheiros”, abrigará dez trabalhos em que o discurso corporal é preponderante na quebra de tabus, como Vestígios, da bailarina e coreógrafa Marta Soares; Lobo, da atriz e diretora Carolina Bianchi e coletivo Cara de Cavalo; (Ver[ ]ter) à deriva, da Cia. Les Commediens Tropicales; V:u:l:v:a, concepção e direção de Mariana Senne; e Isto é um negro?, com direção de Tarina Quelho.

A identidade visual desta MITsp está pautada pelos poros do corpo, um contraponto à perseguição aos artistas, à militarização de escolas, à perpetuação do machismo e do racismo, à subjugação dos povos indígenas e ao desprezo pelo ambiente, para citar alguns dos entes desse território físico e simbólico alvo de injúria. Não é demais lembrar que a abertura da mostra acontece na data de um ano de execução da vereadora carioca Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes.

Simone Stanislai

Em ‘MDLSX’, a performer italiana Silvia Calderoni, do grupo Motus, reflete sobre liberdade a partir de tópicos como identidade, androgenia, dor e aceitação

No eixo Olhares Críticos, o fórum Descolonização: Os Desafios de Quem Vive em Estado de Emergência e o seminário O Estatuto da Arte no Brasil Contemporâneo: Silenciamentos, Interdições e Insubordinações vão direto ao ponto nos enunciados de mesas como Arte: Mantenha Fora do Alcance das Crianças; Amor e Ódio à Arte no Brasil; e Infância e Juventude, Direito e Liberdade de Expressão.

Já o eixo Ações Pedagógicas é norteado pelas Performatividades Políticas – Mobilizando Corpos, Poéticas e Práticas. Difunde a pergunta que não quer calar: “Que lugar ocupo com meu corpo no hoje e no agora?”. São pelo menos 25 ações entre intercâmbios, oficinas, rodas de conversas e conferências, entre elas Corpos que Falam: Exercícios de Partilha, com diretor, dramaturgo e atuante Dieudonné Niangouna (Congo/França);

“O corpo é o primeiro a ser enfrentado diante de uma ditadura, de uma figura de poder”, disse a artista multidisciplinar Deborah Castillo durante a roda de conversa Como Ser Artista na Venezuela de Hoje, na última terça-feira, dia 12, na Casa do Povo. Ela vive um autoexílio em Nova York, desde 2014. Alega falta de liberdade de expressão. Tem 20 anos de carreira atuando em vídeo-performances ou ao vivo, o que afirma ser impossível no atual regime de Nicolás Maduro, definido por ela como uma ditadura. “Não se trata de tomar partido à esquerda ou à direita, mas de criar uma plataforma artística. Eu e outros artistas somos uma voz antissistema.”

Deborah vai levar à Avenida Paulista, em pleno horário de almoço, a performance LameBrasil, lamezuela – questionamentos ao poder na América Latina. Iconoclasta convicta, atualiza a ação de 2012 em que questiona figuras de autoridade lambendo as botas de um soldado, um policial militar e um político.

Ciente do que é viver sob cultura da militarização, ela faz da língua o órgão dileto para testar limites ideológicos. Já foi acusada de “profanadora da pátria” na ação El beso emancipador, quando pespegou um demorado beijo em um busto de Simón Bolívar (1783-1830). De novo, afirma não ter nada contra a compatriota considerado libertador de países dos Andes, mas sente-se impelida a apontar as contradições da atual Revolução Bolivariana.

João Caldas Fº

Na MITbr – Plataforma Brasil, a bailarina e coreógrafa Marta Soares apresenta ‘Vestígios’, que parte de aspectos monumentais dos sambaquis, sítios indígenas pré-históricos encontrados no litoral do país

RIO DE JANEIRO

Orçada em R$ 3,1 milhões, a MITsp chegou a anunciar uma extensão no Rio de Janeiro com espetáculos e ações, mas o Sesc RJ recuou da parceria.

AS CINCO EDIÇÕES ANTERIORES SOMARAM

100 mil espectadores

35 países

60 espetáculos

220 sessões

223 ações reflexivas e pedagógicas destinadas a 7.888 participantes

350 empregos gerados diretamente, média de 70 por edição

960 indiretos

1.528 citações em mídia espontânea

Serviço:

6ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, MITsp

Quando: 14 a 24 de março

Quanto: de gratuito a R$ 40

Onde: em diferentes espaços da cidade

Mais informações no site

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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