Crítica
9.3.2019 | por Valmir Santos
Foto de capa: Guto Muniz/Foco in Cena
Em Nós (2016) e Outros (2018), desenvolvidos em parceria com o diretor Marcio Abreu, o Galpão problematizou a relação grupo-sujeito-sociedade com agudeza de espírito. Os espetáculos realçaram o caráter progressista da alteridade por meio do fenômeno artístico, atando consciências crítica e autocrítica como raramente se viu em seu repertório, ainda que sempre aberto a temas sociais e políticos.
O encontro com Abreu provocou sismos estéticos tanto na percepção do público admirador do Galpão como na assimilação de novos procedimentos pelos atores. Na geofísica, o movimento no interior da Terra é causado pela liberação de esforços acumulados ao longo do tempo. O Galpão se permitiu tremores como metáfora para as mutações positivas vivenciadas nos últimos cinco anos de troca com Abreu. Fez da memória alicerce.
As relações interpessoais, o enfrentamento de ruídos na comunicação e a produção de novos sentidos em nome da diversidade, sob todos os ângulos, são alguns dos assuntos de que se fala. As formas de sustentá-los decorrem da complexidade com que o grupo transita em mão dupla: de dentro para fora e de fora para dentro. O primeiro espetáculo reelabora desgastes naturais a qualquer relação duradoura. O segundo, por sua vez, problematiza viver em sociedade.
Os espetáculos ‘Nós’ e ‘Outros’ empreendem uma expedição oxigenadora por outras experiências nas artes da cena. O grupo reaviva a capacidade de ser radical como em diferentes momentos de sua trajetória. Mantém as raízes e o necessário distanciamento delas – afinal, uma atitude de alteridade por excelência
Sem personagens ou enredo delineados, as duas criações despertaram estados ou situações não representacionais. Não há brecha para a sequência espaço-temporal. Prevalecem quebras e reiterações verbais ou físicas de natureza performativa. Por isso o fluxo de atenção da audiência mantido por meio da inversão de expectativas: o estranhamento é como um dispositivo sedutor.
O peso relativo da palavra convive com construções visuais, sonoras e sensoriais mediadas pelo atuante em primeira pessoa, voz manifestadamente cidadã.
Assim, temos as dramaturgias autorais processadas em colaboração por artistas que com urgência de expressão diante do presente agônico, à base de “quem não soube a sombra não sabe a luz”, como versou e cantou Taiguara (1945-1996) em Teu sonho não acabou.
Quem fala em Nós é o grupo. A dramaturgia consolidada por Abreu e Moreira coloca os dedos em feridas com aval de sete atores. Dissensos são compartilhados em torno de uma mesa sobre a qual manejam os ingredientes para uma sopa. Logo, o afeto forra tudo, e apesar de tudo.
As relações de proximidade são discutidas em ‘Nós’ (2016), primeira parceria do Gallpão com o diretor Marcio Abreu
A cozinha simboliza o convívio. Um dos gestos fraternos do Galpão está no costume de preparar galinhada em sua sede, para outros núcleos convidados, ou nas casas que o recebe. Mas, no caso de Nós, também está configurado o ambiente de exposição dos incômodos. Do lado de cá, o público pode intuir analogias de como viver junto (ou juntos).
Decana do elenco e cofundadora, vem da presença de Teuda Bara uma das situações singulares desse trabalho. Ela traz em seu corpo a inscrição do tempo, assim como Antonio Edson e Eduardo Moreira, com os quais contracena. São os mesmos companheiros de primeira hora, em novembro de 1982, quando deram procedência ao Galpão com o quinteto formado ainda por Fernando Linares e Wanda Fernandes (1954-1994).
Questões pessoais, como dificuldades com a saúde (o peso, a infecção óssea numa das pernas) e contratempos internos no dia a dia do coletivo são ressignificados. Sair, ficar ou ser expulsa pelos pares são verbos de ação cogitados em determinadas realidades (talvez até em pensamentos) e apropriados dramaturgicamente como invenção expandida da condição humana. São múltiplas, afinal, as formas de expressar violência, sejam íntimas ou públicas. Dos vícios jurídicos e parlamentares para tirar uma mulher da Presidência, a quem o povo conferiu poder, à disputa de território por fundamentalismos, cabe todo tipo de leitura.
No seu livro A preparação do diretor: sete ensaios sobre arte e teatro (Martins Fontes, 2011), a diretora estadunidense Anne Bogart, da SITI Company, argumenta sobre a tentativa de equacionar esse estado de coisas agitado: “Estar desperto no palco, distorcer alguma coisa – um movimento, um gesto, uma palavra, uma frase – exige um ato de necessária violência: a violência da indefinição. Indefinição significa remover os pressupostos confortáveis a respeito de um objeto, de uma pessoa, palavras, frases ou de uma narrativa, e voltar a questionar isso tudo.”
A parceria contígua Abreu-Galpão leva a pensar sobre o quanto tratar da falta de entendimento na primeira pessoa do plural, não importa sua grandeza, requer precisão e articulação para angariar relevância artística. Quando se dá pela via do pronome indefinido, então, o caminho pode se revelar ainda mais acidentado, convertendo-se em seu oposto: a condição do maravilhamento carece torna-se mais concreta, como dizia o papa da animação em stop-motion, o artista tcheco Jiří Trnka (1912-1969).
‘Outros’ é a 24ª criação do grupo de Belo Horizonte e aprofunda a expedição oxigenadora por outras experiências nas artes da cena
Em Outros, com dramaturgia de Moreira, Abreu e Paulo André, é um deleite testemunhar a paisagem humana transmutada, quadro a quadro, pelas diferentes gerações de atores. A começar por aqueles que estavam na formação do grupo há 36 anos, o dobro da vida da companhia brasileira de teatro.
Longevidade artística, profissional e afetiva admirável se considerados os casamentos e separações internos. Nada que os desencoraje a aplicar técnicas no modo de atuar dissonantes das conhecidas por quem acompanha o Galpão. O corpo, em coletivo, é afirmado como sujeito em sua instância desejante.
O instante em que Teuda inclina-se à frente para apoiar as duas mãos no tablado pode corresponder à imagem de uma bebê em seus primeiros passos, uma disposição vital que dialoga com as contendas da qual ela foi centro em Nós. Antonio Edson é a melhor tradução de tentativa de harmonia equilibrando-se sobre o corpo alheio, enquanto o entorno é povoado pelas energias impulsiva e compulsiva dos demais atuantes que atingem níveis gestuais, vocais e musicais que mais condizem com os códigos da performance e sua interface com as artes visuais.
A sequência de movimentos cadentes e depois viscerais, em jogo erótico, também é um registro inusual na trajetória. O conjunto de atores cumpre partituras de corpo e de voz que espelham a cacofonia do panorama nacional ou ainda a exaustão através de um proceder condicional à cultura de teatro: a repetição, que em francês equivale a ensaiar.
O contexto agonizante da sociedade redobra o fôlego invejável dessas mulheres e homens atentos ao país cujas cinco regiões percorreram desde meados dos anos 1980, nos estertores da ditadura civil-militar e consequente restabelecimento da democracia com todas as limitações do regime que conhecemos. Agora, os artistas avistam o precipício, como a maioria dos brasileiros, aflitos com as ideias e práticas reacionárias em curso.
São categóricas as frestas expostas em Outros. Arte sem floreios impactada pela opressão no peito. Balões pretos lembram a arte de rua de Banksy quando segurados por uma menina que olha para o alto: imagem pintada numa parede para protestar contra barreiras à liberdade.
No espetáculo, os batimentos do formato de uma banda de rock ao vivo não impedem que lá pelas tantas vaze a noite escura dos versos de Melodia sentimental. A composição de Villa-Lobos para o poema de Dora Vasconcelos soa mais doída no presente.
O Galpão realimenta a veia popular ciente de que precisa mover-se desse porto, de quando em quando, sob pena de estagnação.
O Galpão se permitiu abalos sísmicos como metáfora para as mutações positivas vivenciadas nos últimos cinco anos de troca com Abreu
Nós e Outros, respectivamente a 23ª e a 24ª criações, empreendem uma expedição oxigenadora por outras experiências nas artes da cena. O grupo reaviva a capacidade de ser radical como em diferentes momentos de sua trajetória. Mantém as raízes e o necessário distanciamento delas – afinal, uma atitude de alteridade por excelência.
Também contribuem para desconstruir certo estigma conciliador pespegado no trabalho continuado dos mineiros, como entreouvido em âmbitos artístico, universitário e jornalístico. Preconceito parente do menosprezo por manifestações populares da rua e do circo.
Dentre as definições de empatia, está a capacidade de compreensão emocional e estética de um objeto, geralmente de arte, e de colocar-se no lugar do outro em suas experiências humanas. O Galpão é pródigo em atrair para si esse tipo de projeção através do DNA do teatro de rua citado há pouco. Seus criadores iniciais foram nutridos, por assim dizer, pelo chão de praça, riscando o olhar nos olhos da roda.
O auge desse laço com públicos brasileiro ou internacional foi em Romeu e Julieta (1992), a obra-prima do diretor Gabriel Villela. Equilibrada em pernas-de-pau, a adaptação de Shakespeare foi coroada com o estilo barroco do interior de Minas.
Vinte e seis anos depois, encontramos um Galpão voltado às entranhas. O grupo reelabora a autoimagem e, no que pode soar irônico, mas não menos ferino, toca no déficit de empatia desses dias incontornáveis de culto ao ódio. A faculdade de compreender lhe é nata; a de sublevar, foi adquirida por quem nasceu lutando pela democracia, chorou copiosamente a derrota das Diretas-Já, consolou-se com a redemocratização e agora vê o signo da militarização voltar à carga na República Federativa do Brasil.
Os dois trabalhos mais recentes, portanto, resultam politizados e incisivos para destoar de uma identidade tão somente gregária. Afinal, a história dos atores sediados à rua Pitangui, na região leste de Belo Horizonte, tem sido feita de passagens tão disruptivas como a atual. Vide as convicções inventivas, segundo os livros, com que Eid Ribeiro e Cacá Carvalho levantaram junto aos atores as montagens de Álbum de família (1990) e Partido (1999), respectivamente, obras que tiraram o grupo, o público e a crítica da zona de conforto.
Sabemos que a base constitutiva do Galpão são os atores e atrizes dispostos a abrir a casa a diretores convidados. Na ausência de uma personalidade decisória, o grupo buscou cumplicidades em processos criativos que poderiam vir a desdobrar.
Atores derivam pelas ruas de Belo Horizonte, no ano passado, como parte da pesquisa acerca de ‘Outros’. O espaço público está na base da formação desde 1982
Nas ocasiões em que os profissionais solicitados colaboraram em mais de uma montagem houve verticalização de parte a parte. Isso aconteceu cinco vezes desde 1982, compreendendo períodos de expansão em termos de filosofia de trabalho, de práticas e de saberes. Uma miríade de técnicas e linguagens cultivadas entre o teatro de rua de origem e o palco por extensão, com frequente assimilação circense na caminhada.
Fernando Linares dirigiu as quatro primeiras peças; Gabriel Villela, três; e Eid Ribeiro, Paulo José e Marcio Abreu duas cada um. Também já encenaram a atual dúzia de atores Paulinho Polika, Carmem Paternostro, Cacá Carvalho, Paulo de Moraes (da Armazém Companhia de Teatro) e Yara de Novaes (Grupo 3 de Teatro).
Seria ingênuo pensar que Marcio Abreu apenas reimplantou procedimentos caros à companhia brasileira de teatro que se afirmou no panorama nacional pelo entendimento híbrido da ação em obras como Volta ao dia… (2002), Vida (2010) e Preto (2017).
Por mais que alguns dos parceiros da equipe de Abreu o acompanhem na imersão mineira (como a iluminadora Nadja Naira e o músico Felipe Storino), os dois espetáculos carregam, como não poderia deixar de ser, características singulares das respectivas identidades: a do grupo anfitrião e a do diretor convidado.
Essas identidades dão margem a um terceiro mundo cênico possível, sujeito a impulsos conflitivos que aparecem incorporados (não necessariamente solucionados) e vão além dos abalos primitivos.
.:. Visite o site do Grupo Galpão
Serviço
Nós
Onde: Sesc Bom Retiro (Alameda Nothmann, 185, Campos Elíseos, São Paulo, tel. 11 3332-3600)
Quando: dias 9 e 10 de março, sábado, às 21h, e domingo, às 18h. Até 10/3
Quanto: R$ 9 a R$ 30
Outros
Fez temporada no Sesc Bom Retiro de 25 de janeiro a 3 de março
Equipe de criação
Nós
Com: Antonio Edson, Beto Franco, Eduardo Moreira, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André e Teuda Bara
Direção: Marcio Abreu
Dramaturgia: Marcio Abreu e Eduardo Moreira
Cenografia: Play Arquitetura – Marcelo Alvarenga
Figurino: Paulo André
Iluminação: Nadja Naira
Trilha e efeitos sonoros: Felipe Storino
Assistência de direção: Martim Dinis e Simone Ordones
Preparação musical e arranjos vocais/instrumentais: Ernani Maletta
Preparação vocal e direção de texto: Babaya
Colaboração artística: Nadja Naira e João Santos
Assistência de figurino: Gilma Oliveira
Assistência de cenografia: Thays Canuto
Cenotécnica e construção de objetos: Joaquim Pereira e Helvécio Izabel
Assistência e operação de luz: Rodrigo Marçal
Desenho de som e programação de efeitos: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Cleo Magalhães
Confecção de figurino: Brenda Vaz
Técnica de pilates: Waneska Torres
Fotos de divulgação: Guto Muniz
Fotos do programa: Fernando Lara, Gustavo Pessoa e Guto Muniz
Imagens escaneadas: Tibério França e Lápis Raro
Registro e cobertura audiovisual: Alicate
Projeto gráfico: Lápis Raro
Design web: Laranjo Design (Igor Farah)
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Produção: Grupo Galpão
A cozinha, espaço do afeto e da peleja em ‘Nós’
Outros
Com: Antonio Edson, Beto Franco, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara
Direção: Marcio Abreu
Dramaturgia: Eduardo Moreira, Marcio Abreu e Paulo André
Iluminação: Nadja Naira
Cenografia: Play Arquitetura – Marcelo Alvarenga
Figurino: Paulo André e Gilma Oliveira
Trilha e efeitos sonoros: Felipe Storino
Direção de movimento: Kenia Dias
Colaboração artística: Nadja Naira, Felipe Storino e Kenia Dias
Preparação musical e arranjos vocais/instrumentais: Ernani Maletta
Preparação vocal: Babaya
Adereços: Junia Melillo
Interlocuções artísticas: Leda Martins e Eleonora Fabião
Assistência de direção: Paulo André, Lydia Del Picchia e Eduardo Moreira
Assistência de cenografia: Thays Canuto
Assistência de iluminação e operação de luz: Rodrigo Marçal
Cenotécnica e construção de objetos: Joaquim Pereira e Helvécio Izabel
Assistência de sonorização e operação de som: Fábio Santos
Assistente técnico: William Teles
Assistente de produção: Cleo Magalhães
Confecção de figurino: Bárbara Toffanetto, Maria Antônia, Penha Hermisdorf e Sonia Maria da Boa Viagem
Estagiárias de cenografia: Taísa Campos e Laís Martins
Estagiárias de figurino: Emiliana Normandia, Élida Murta e Maria Cândida Lacerda
Técnica de Gyrotonic: Waneska Torres
Registro e cobertura audiovisual: Luiz Felipe Fernandes
Fotos: Guto Muniz
Músicas originais: Beto Franco, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel e Paulo André, Lydia Del Picchia e Luiz Rocha, Teuda Bara e Luiz Rocha
Projeto gráfico: Estúdio Lampejo
Produção executiva: Beatriz Radicchi
Direção de produção: Gilma Oliveira
Produção: Grupo Galpão
Grupo Galpão – Atores: Antonio Edson, Arildo de Barros, Beto Franco, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia Del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara
Gerente executivo: Fernando Lara
Coordenadora de produção: Gilma Oliveira
Coordenadora de planejamento: Larissa Scarpelli
Coordenadora de comunicação: Bárbara Prado
Coordenadora administrativa: Wanilda D’Artagnan
Coordenador técnico e técnico de luz: Rodrigo Marçal
Produtora executiva: Beatriz Radicchi
Cenotécnico: Helvécio Izabel
Técnico de som: Fábio Santos
Assistente financeiro: Cláudio Augusto
Assistente administrativa: Andréia Oliveira
Assistente de comunicação: Letícia Leiva
Assistente de planejamento: Emiliana Normandia
Auxiliar técnico: William Teles
Auxiliar administrativo: Rayane Gregório
Recepcionista: Cídia Edvania Santos
Serviços gerais: Danielle Rodrigues
Gestor financeiro de projetos: Artmanagers
Assessor contábil: Maurício Silva
Patrocinadora: Petrobras
Realização: Sesc SP, Ministério da Cultura e Governo Federal
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.