Resenha
Toda obra de arte é uma virtualidade que só se concretiza no encontro com seu público, afirmam os teóricos da recepção. Seu valor é fruto de uma espécie de negociação envolvendo a matéria moldada pelo autor e o chamado horizonte de expectativa, conceito definido como a soma de experiências e conhecimentos éticos e estéticos acumulados em determinado tempo histórico que, atuando sobre as subjetividades, são investidos na interação com a arte. Trata-se de um movimento de mão dupla, ou seja, esse campo de tensão afeta o modo de se conectar com a manifestação artística e, por sua vez, pode ser por ela alterado.
Uma vez aceito, tal paradigma indica a possibilidade de abordagem crítica de obras por meio da reconstituição dos sentidos que lhe foram atribuídas em diferentes épocas ou territórios. Afinal, é sabido, de acordo com as forças em jogo, alguns pontos de vista se impõem, outros são apagados, outros ainda permanecem em penumbra para serem retomados tempos depois. Sendo um campo de estudos recentes – a teoria da recepção surge na década de 1960, na Alemanha – ainda não são numerosas as pesquisas baseadas em seus parâmetros.
‘Tchékhov e os palcos brasileiros’ não é investigação biográfica e tampouco tem como objetivo a análise dramatúrgica e cênica, ainda que não se furte a isso ao longo do volume. Mas o principal ponto de interesse reside no modo como Rodrigo Alves do Nascimento investe na reconstituição do horizonte de expectativa em distintos tempos e territórios
Pois a essa tarefa se lança Rodrigo Alves do Nascimento no livro Tchékhov e os palcos brasileiros recém-publicado pela Editora Perspectiva, na coleção Estudos, um rastreamento inédito da percepção da obra de Anton Tchékhov (1860-1904) desde os contos publicados originalmente na imprensa russa, passando pelas peças curtas de viés cômico até os grandes textos teatrais da maturidade.
Ainda que o título indique foco no Brasil, um dos pontos relevantes da pesquisa é desvelar as diferentes leituras produzidas por essa literatura em países como Polônia, França, Inglaterra e Estados Unidos, sem contar as nuances entre aceitação e recusa na Rússia pré e pós Revolução de 1917. Uma obra que passa por uma imensa gama de modulações não apenas no seu continente de origem como também na Europa e na América já nas primeiras quatro décadas do século XX, quando o autor era praticamente desconhecido no Brasil.
Por outro lado, demonstra Nascimento, essa fortuna crítica ecoa em solo nacional antes mesmo das primeiras traduções de suas peças. Euclides da Cunha (1866-1909), o autor de Os Sertões, fora responsável por um dos primeiros registros do nome de Tchékhov (com a grafia Tchkkorf), em 1905, mencionado por ele como um escritor “de raça”, apegado ao “solo eslavo”.
Os contos serão os primeiros a aportar no Brasil, em traduções esparsas, mas só em fins da década de 1950, em um posfácio à tradução de A dama do cachorrinho assinado pelo professor Boris Schnaiderman (1917-2016), Tchékhov será tratado como renovador das formas do conto. Em análise comparativa com autores como Guy de Maupassant (1850-1893) e Edgar Allan Poe (1809-1849) “que haviam feito escola e marcavam os padrões de composição”, Tchékhov iria romper com a concepção do conto como “caso” ou “acontecimento”.
Como anota Nascimento, Schnaiderman disseca a mudança promovida pelo russo: “Em vez do desfecho, o processo; em vez do acontecimento concentrado, o próprio processo narrativo como acontecimento”. Se a visão é arguta, seguiria bastante circunscrita, até pela natureza da publicação.
Quanto à obra teatral, um dos pontos de vista a reverberar entre nós virá da França e se articula ao que seria a existência de algo como uma “alma russa”, visão associada ao exotismo e não livre de preconceitos, sedimentada pelas encenações de Georges Pitoëff (1884-1939) nas primeiras décadas do século XX.
Vale frisar que, em se tratando de dramaturgia, essa só chega ao espectador depois de passar pelo filtro da leitura dos encenadores. Esses, por sua vez, são inevitavelmente afetados pelo conhecimento, por vezes muito parcial ou até mesmo distorcido, das experiências de recepção antecedentes, o que amplia a complexidade do processo e a relevância de um estudo realizado com o devido rigor e amplitude de campo.
Tendo como origem uma pesquisa de mestrado defendida no âmbito do Programa de Literatura e Cultura Russa da Universidade de São Paulo (USP), sob orientação do professor Bruno B. Gomide, Tchékhov e os palcos brasileiros não é investigação biográfica e tampouco tem como objetivo a análise dramatúrgica e cênica, ainda que não se furte a isso ao longo do volume. Mas o principal ponto de interesse reside no modo como o autor investe na reconstituição do horizonte de expectativa em distintos tempos e territórios.
Sem citar teorias, as coloca em prática, em texto fluente que tem a virtude da clareza e das citações precisas, sem que o autor deixe de indicar as muitas fontes de pesquisa. Reportagens, críticas, ensaios, trabalhos acadêmicos e cartas são alguns dos documentos por ele trazidos ao diálogo, analisados sempre em conexão com as experiências de recepção da obra.
A abordagem propicia, por exemplo, traçar paralelos entre o panorama teatral russo no fim do século XIX e a cena brasileira das primeiras décadas do século XX, quando o público acorre aos espetáculos em busca do riso fácil em edifícios teatrais nos quais os tumultos e as pateadas – bater os pés com força no chão – eram comuns. Eram também, nos dois países, alvo de protestos na imprensa que pedia aprimoramento da cena e mudança de comportamento.
Nascimento aponta as similaridades, mas também coloca em relevo dissonâncias. Em uma “cena moscovita repleta de peças ágeis e cômicas”, os textos curtos de Tchékhov são tratados em chave de sucesso comercial, entre ele O urso e Pedido de casamento, para citar dois entre os mais conhecidos. O autor é solicitado a escrevê-los e são facilmente recebidos numa época que sufocava impulsos “verdadeiramente literários e artísticos”, nas palavras de um Tchékhov traumatizado com a recusa de Platónov, sua primeira tentativa de escrever um drama de fôlego.
No entanto, em aparente contradição, essas mesmas peças são tomadas como material de experimentação e de ruptura entre nós. “A primeira encenação de uma peça de Tchékhov no Brasil da qual se tem registro foi feita em 13 de abril de 1946”. Era O urso, dirigida pelo jovem Hermilo Borba Filho (1917-1976) em um palco improvisado na Biblioteca da Faculdade de Direito do Recife, com cenário que simulava uma sala de estar propositalmente desproporcional. Em vez de adesão ao riso, fora tomada como manifesto do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) contra “encenações sentimentais e burguesas de caráter digestivo”.
Nas palavras de Nascimento, “o tamanho reduzido dessas farsas em um ato – que facilitava a condução de ensaios e mesmo a improvisação de espaços para apresentação –, o dinamismo dos diálogos, a comicidade nada apelativa e por vezes temperada de trágico ofereciam um prato cheio para os grupos em busca de formas arejadas fora dos roteiros batidos das encenações vigentes”. Não por acaso, no Brasil, elas foram levadas ao palco pelo movimento amador que, na década de 1940, iria renovar a cena nacional, trajetória redesenhada nesse estudo que pinça encenações realizadas por estudantes em diferentes regiões do país, outra das virtudes do estudo, o descolamento do eixo Rio-São Paulo, sempre que os documentos permitem.
Nascimento problematiza ainda o lugar secundário a que seriam relegadas essas “pequenas obras-primas de ironia e humor” – como afirma o texto de apresentação de O jubileu dirigido por Rubens Corrêa (1931-1996) no grupo amador O Tablado, no Rio de Janeiro – desprezo que não se restringe à produção de Tchékhov, mas ocorre também com a dramaturgia cômica brasileira.
Realizada em ordem cronológica, sem saltos temporais, a investigação parte do fim do século XIX na Rússia e termina em 2008 no Brasil. E deixa ver que só na década de 1960 se sedimenta no nosso país a imagem do autor como o retratista do tédio em peças crepusculares de longas pausas. Algo que o professor J. Guinsburg (1921-2018) irá cunhar de Tchékhovismo e será alvo de contestação, como já havia ocorrido na Rússia, em debates e no palco, e se repetirá no Brasil, por exemplo, com encenações do Teatro Oficina (As três irmãs, 1972) e da Cia. dos Atores, (Gaivota – Tema para um conto curto, 2006) para citar duas, entre outras nessa linha, comentadas no volume.
Professor de literatura, tradutor e pesquisador de dramaturgia russa, Nascimento sem dúvida enriquece o acervo de estudos teatrais com a publicação desse livro que permite ao leitor acompanhar construção e desconstrução dos modos de apreender a obra de Anton Tchékhov, escritor que permanece sendo um dos mais encenados nos palcos do Brasil e do mundo.
Serviço:
Tchékhov e os palcos brasileiros (256 páginas, R$ 54,90)
Autoria: Rodrigo Alves do Nascimento
Editora: Perspectiva/Fapesp (2018)
Coleção: Estudos 360
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.