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Crítica

Entrechoques de mundos

25.5.2019  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Cacá Bernardes

A expressão “sair do armário” não se aplica apenas ao reconhecimento da sexualidade ou da identidade de gênero, seja sobre si ou o outro. Ela assume o fosso das classes sociais no espetáculo De volta a Reims (a pronúncia aproximada é “rãs”). Ter acesso, ou não, a serviços essenciais, como a educação, marca a vida de qualquer indivíduo. No caso, as barreiras de uma sociedade capitalista não são apenas impostas, mas autoimpostas: as origens do ser resultam apagadas após o “milagre” da formação escolar e da mobilidade social que propiciaram ascender intelectual, afetiva e materialmente falando.

Em seu elogio das ideias, o ensaio memorialístico Retour à Reims (2009), do filósofo Didier Eribon, correlaciona a perversão da desigualdade ao discurso e à prática de ódio (sintomaticamente, o verbo odiar contém a dor em sua grafia). Pois os artistas que produziram e montaram essa obra em São Paulo encontraram ressonâncias na realidade brasileira ou mesmo nas próprias biografias.

Dirigido por Cácia Goulart, atuado por Pedro Vieira e sob dramaturgia de Reni Adriano, o espetáculo livremente inspirado na obra de mesmo nome do francês Didier Eribon é um ato de reconciliação com o processo da vida e seus saberes, dares e tomares. Sua fala firme e reflexiva, inclusive na hora dos impasses e das serenidades, antagoniza com os tempos atuais falaciosos de desconstrução cultural

Por meio do narrador, atuado por Pedro Vieira, presume-se que o aprendizado intelectual pode desaguar na atrofia emocional do sujeito, a menos que revolva o caminho percorrido e cogite o trabalho sobre si. As memórias de quem nasceu e cresceu em família operária interiorana, pai alcoólatra, mãe perseverante na criação dos filhos e irmãos refratários a estudar – conquanto ele tenha sublimado a aplicação do espírito para reexistir – são identificáveis por espectadores de qualquer canto do planeta.

Vieira toma parte no monólogo com texturas de sua condição de migrante nordestino radicado na capital paulista, onde vive como ator profissional. Conterrâneo de Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios (AL), foi ele quem idealizou a transposição cênica do livro.

Para tanto, o dramaturgo Reni Adriano trabalha livremente inspirado na prosa de Eribon. Preserva a autocrítica incondicional, o raciocínio incisivo, o desprezo pela interpretação psicológica dos fatos que dizem respeito à criança, ao adolescente e o adulto que foi/é. Ao mesmo tempo, costura com parcimônia aspectos da trajetória também pessoal de Vieira diante das razões objetivas e subjetivas que aproximaram os mundos do brasileiro e do francês.

Ambos os universos são processados como um terceiro lugar na encenação de Cácia Goulart. Ciosa da responsabilidade que é colocar-se sozinha em cena, a atriz ressalta o poder da eloquência do ator ao navegar pelo pensamento bem urdido de Eribon-Adriano. Como a pedra filosofal da peça é a palavra, manejada de forma aguda pelas conjecturas do escritor-ator, cabe a Vieira, e ele o cumpre, emanar chama à altura e pontuar variantes da literatura, da teoria crítica, da política, da filosofia, do desejo, do amor filial, entre outras. O atuante lembra um José Dumont nos domínios do audiovisual, capaz de suspender o tempo fabular com o olhar árido de um personagem.

Cacá Bernardes
Pedro Vieira atua como o narrador fundindo sua biografia à voz do filósofo Didier Eribon, autor do livro de memórias ‘De volta a Reims’, ainda não traduzido no Brasil

Cácia e demais profissionais ambientam o espaço cênico com a cor branca hegemônica, tal a assepsia ou a porosidade desejante da página a ser preenchida pelo ensaísta-atuante. Um livro físico é uma constante nas mãos de Vieira. Mesmo quando deslocado da enunciação direta para determinada ação, ele não abandona o estado de performance. A fala é o dispositivo encadeador. A descoberta da “pegação” gay aos 17 anos, no centro da cidade, perto do teatro, e a distanciamento de um dos irmãos que trabalhava como açougueiro e, tal como o pai, era homofóbico, são passagens em que as projeções e o desenho de luz acrescentam outros pontos de vista ao que se conta.

Eribon saiu de Reims quando tinha 20 anos. No início, visitava os familiares semanalmente, mas aos poucos foi se desligando. Só retornou aos 55 anos, logo após o funeral do pai ao qual, avisado, não compareceu. A decisão que o inquieta é reencontrar, ou não, a mãe, os irmãos, os vizinhos e, sobretudo, a si mesmo na cena de origem da pobreza de berço. Tinha 4 anos quando o pai, embriagado, atirava garrafas na parede, para desespero da esposa e das crianças.

O escritor de hoje desdenha de traumas como esse, prato cheio para sessões de psicanálise. Ao dar-se conta do exílio de classe e, consequentemente, familiar, ele já era um pensador proeminente, biógrafo de Michel Foucault (1989) e autor de Reflexões sobre a questão gay (1999), obras referenciais em seus campos. O efeito tardio veio a galope e o fez mergulhar em profunda autoanálise.

No reatamento, a mãe lhe mostrou fotos antigas, gancho para que Vieira tenha seu corpo fundido às imagens dos pais. As figuras materna e paterna ampliadas possuem fisionomias tipicamente brasileiras, homem e mulher possivelmente nascidos no Nordeste. Desse modo, a voz do autor e a subjetivação pelo ator que a presentifica como que se tocam afetivamente. No programa do espetáculo, o ator e o dramaturgo Adriano se autodeclaram negros e homossexuais, singularizando a escrita e a cena.

A rigor, ninguém deveria escrever uma autobiografia, mas dez delas, ou uma centena, porque embora tenhamos apenas uma vida, existem inúmeras maneiras de relatá-la a nós mesmos. Essa proposição do psicanalista francês J.-B. Pontalis faz sentido diante do trabalho que superpõe vidas fragmentadas, compondo elos e lacunas na cadeia dos criadores e colaboradores da montagem que parte de obra inédita no país. Vieira promove um deslizamento na instância autoral, na medida em que associa sua memória à do filósofo.

Cacá Bernardes
Vieira assistiu à versão da obra pela francesa Laurent Hatat, no Festival de Avignon de 2017; também a encenaram o alemão Thomas Ostermeier (2014) e o belga Stéphane Arcas (2017)

A voltagem política em De volta a Reims tem sua potência redobrada em função do momento brasileiro, quando visões à esquerda e à direita no espectro ideológico são colocadas em xeque e as pautas identitárias ganham mais visibilidade enquanto sofrem oposição sistêmica do governo conservador empossado no início do ano. Na narrativa de Eribon-Adriano, as questões homoafetivas e étnico-raciais não pulverizam os estigmas da elite sobre as classes sociais inferiorizadas. Estas, por sua vez, jamais aparecem edulcoradas, porque são passíveis de reproduzir o racismo e a xenofobia, por exemplo. “Não há nada mais terrível que a ignorância”, escreveu Goethe.

É positivamente perturbador o instante em que o trecho de um vídeo mostra o gado no pasto, talvez precedendo o abatedouro, numa conexão possível com o irmão açougueiro. Vieira aninha-se no corredor da plateia do Viga Espaço Cênico e, observando a tela ao fundo do palco, fala de greve, das condições desumanas do proletariado, categoria que o filósofo (ou o ator?) até então considerava uma abstração, eles mesmo filho de um operário não qualificado e de uma faxineira. O tom indignado da cena e as imagens remetem à carta que a filósofa e economista Rosa Luxemburgo envia da prisão, na Polônia, descrevendo o esgotamento de búfalos que transportavam material militar numa carroça. Clamou por compaixão aos animais, em vão. Era dezembro de 1917. Ela foi executada em janeiro de 1919.

Outra virtude das memórias de Eribon realçada no monólogo é a sua capacidade de dissertar acerca dos fracassos emocionais, autocomiseração devidamente dispensada, e estender as mãos a outros pensadores contemporâneos. Como ele, a francesa Annie Ernaux, o britânico Raymond Williams e os estadunidenses James Baldwin, John Edgard Wideman e Eve Sedgwick ressignificaram suas biografias, pesquisas e criações por meio da linguagem, revisitando a história sob novas percepções.

O interesse em arte é algo que se aprende, no dizer do narrador. “Era parte do meu projeto de verdadeira autorreeducação, necessário para me mover entre mundos diferentes”. Entrechoques. Sua escolha para sobreviver foi a mesma que o ilhou, paroxismo que agora problematiza publicamente o filósofo cuja identidade gay foi formada pela experiência do xingamento desde cedo. “Eu fui forjado pelo insulto. Eu sou o filho da vergonha”, diz.

Aproveitando o pêndulo educar-reeducar, retomamos Graciliano Ramos e sua gestão como prefeito de Palmeira dos Índios. Num relatório de contas de 1929, ele abordou a rubrica “instrução” e mencionou que foram construídas três escolas em diferentes aldeias do município. Elas passaram a funcionar precariamente, graças ao esforço de uma associação fundada por operários e dedicada à alfabetização de adultos. Realista, o autor de Vidas secas manteve a margem de arribação da comunidade: “Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros”.

De volta a Reims, assim, é um ato de reconciliação com o processo da vida e seus saberes, dares e tomares. Sua fala firme e reflexiva, inclusive na hora dos impasses e das serenidades, antagoniza com os tempos atuais falaciosos de desconstrução cultural.

.:. O espetáculo De volta a Reims é tema do 29º Encontro com Espectadores no dia 26 de maio, domingo, às 15h, no Itaú Cultural. O dramaturgo Reni Adriano e o ator Pedro Vieira vão conversar com a crítica Beth Néspoli e com o público. Entrada gratuita. Mais informações, aqui.

Serviço:

Onde: Viga Espaço Cênico (Rua Capote Valente, 1.323, próximo ao metrô Sumaré, tel. 11 3801-1843)

Quando: Sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 19h. Até 26 de maio. Reestreia dia 5 de junho, no mesmo teatro, com sessões quarta e quinta, às 21h. Até 26 de junho

Quanto: R$ 30 ou R$ 15 (meia-entrada)

Capacidade: 73 lugares

Classificação indicativa: Livre

Duração: 90 minutos

Equipe de criação:

Direção: Cácia Goulart

Dramaturgia: Reni Adriano (livre inspiração para o teatro do romance Retour à Reims, de Didier Eribon)

Com: Pedro Vieira

Assistência de direção: Emerson Rossini

Luz e vídeos de cena: Bruna Lessa e Cacá Bernardes – Bruta Flor Filmes

Cenografia: Carol Buček

Figurinos: Cácia Goulart e Emerson Rossini

Música original e desenho de som: Marcelo Pellegrini

Assistência e operação de luz, som e vídeos: Michele Bezerra

Cenotécnico: Wanderley Wagner da Silva

Fotografia: Cacá Bernardes

Projeto gráfico: Osvaldo Piva

Colaboradoras: Bibianne Riveros e Maria Betânia Ferreira

Assessoria de imprensa: Canal Aberto

Produção: Pedro Vieira e Emerson Rossini

Agradecimentos: André Spinola e Castro, Bira Nogueira, Daniel Ortega, Evill Rebouças, Marília de Santis, Rever – Estudos em Fotografia e Tom Dupin.

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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