Crítica
“O que a poeta valorizava sobremaneira era a vida comum, na qual sempre encontrava motivo para assombro”, escreve Regina Przybycien no prefácio do livro Amor sem fim que reúne poemas da polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012). O comentário dá uma pista sobre o que motiva a escolha de alguns dos versos dessa escritora, premiada com o Nobel de Literatura em 1996, para integrar a dramaturgia do solo Eu de você, da atriz Denise Fraga, dirigido por Luiz Villaça. A coleta de histórias reais a partir de uma convocação em diferentes mídias está na gênese desse espetáculo no qual elas surgem fragmentadas, editadas e entrelaçadas a poesias, trechos de romances e canções.
Há muito tempo, atriz e diretor vêm se dedicando a desvelar na forma da arte o valor de gestos talhados no cotidiano mais comezinho. Um exercício iniciado com o programa Retrato falado (2000), com episódios baseados em depoimentos sobre situações inusitadas vividas no dia a dia. Embora de cunho ficcional, o seriado Três Teresas (2013), dirigido por Cláudia Alves e Villaça, acompanha a rotina de três gerações de mulheres de classe média baixa (Denise Fraga, Cláudia Mello e Manoela Aliperti) igualmente às voltas com uma contabilidade diária de finanças, afetos e sonhos, quase sempre em saldo negativo. Na mesma linhagem podem ser enquadrados filmes dirigidos por Villaça como Cristina quer casar (2003) e De onde eu te vejo (2016), ambos protagonizados por Fraga.
A dupla convocação que alicerça a dramaturgia do solo ‘Eu de você’ – às pessoas para contar suas histórias e, depois, aos espectadores para compartilhar de um espetáculo baseado em narrativas reais, ou seja, para a escuta das vozes de seus semelhantes – soa como estratégia para esses tempos de sociedade cindida e brutalizada pelo saturamento de disputas ideológicas
Antes do espetáculo Eu de você, portanto, essa matéria só tinha sido tratada por ambos na vertente do audiovisual. Por que a passagem para o palco? Há sempre algo de imponderável no campo da criação artística e, muitas vezes, o próprio autor só consegue analisar seus passos quando o traçado já se alonga no tempo. O solo, porém, configura uma inflexão na carreira teatral da atriz – primeira vez só em cena e com dramaturgia especialmente criada – e pode ser produtivo pensar sobre as possíveis conexões entre essa alteração de rota e o momento político brasileiro.
No teatro, Denise Fraga sempre se expressou por meio de personagens extraídos de textos de literatura cênica e, nas mais recentes incursões ao palco, o fez como protagonista e produtora de peças de claro viés de crítica social. Era o caso, por exemplo, de Galileu Galilei, dirigida por Cibele Forjaz. Em dado instante, um coro, temendo a queda do poder do clero e a consequente perda de privilégios, batia panelas dizendo: “queremos empregada”.
A montagem realizava nessa cena uma conexão corajosa – se levarmos em conta que o público é, em geral, integrado por pessoas de classe média – entre a situação retratada na peça e o movimento das forças conservadoras que, a partir de 2013, ampliaram seu raio de influência na sociedade brasileira.
Bertolt Brecht tinha como alvo de sua crítica a ascensão do nazismo, na escrita da primeira versão da peça, em 1942. Ao escolher como personagem central o astrônomo e matemático Galileu (1564-1642), seu intuito não era simplesmente contar sobre o modo como a Igreja controlou o conhecimento para se manter no poder, mas sim demonstrar ludicamente que o curso da História não é natural e o conhecimento pode ser ferramenta de interferência e redirecionamento.
Talvez seja um exercício mental interessante pensar como se alteraria, apenas quatro anos depois de sua estreia, a recepção desse espetáculo. A constatação científica de que a Terra é redonda e gira em torno do Sol está no núcleo da trama. Na peça, um cardeal se nega a olhar através do telescópio porque sabe que se o fizer sua teoria será refutada. A escolha é tática e está alicerçada no fato de que em meados do século XX a negação de tal evidência soaria ridícula, assim como em 2015, quando ainda não havia suspeita de que “terraplanistas” pudessem ganhar alguma visibilidade no espaço público.
Atualmente, o retrocesso no campo do pensamento é de tal ordem que mesmo olhando ao telescópio, a evidência seguiria sendo ignorada. Não é o que vem ocorrendo com dados estatísticos colhidos por métodos e tecnologias de precisão sobre desmatamento ou distribuição de renda? Em algum momento depois das manifestações de 2013, o discurso pelo engajamento político foi apropriado e distorcido. O atrito ganhou o lugar da reflexão e contaminou as relações íntimas, erguendo barreiras entre indivíduos.
Assim, a dupla convocação que alicerça a dramaturgia do solo Eu de você – às pessoas para contar suas histórias e, depois, aos espectadores para compartilhar de um espetáculo baseado em narrativas reais, ou seja, para a escuta das vozes de seus semelhantes – soa como estratégia para esses tempos de sociedade cindida e brutalizada pelo saturamento de disputas ideológicas.
Como já fizera em espetáculos anteriores, Denise Fraga recebe o público na entrada da sala, mas desta vez o gesto é expandido e atravessa a forma cênica na qual ela intercala sua própria voz com as demais colhidas nos depoimentos ou no repertório universal da arte, sempre em diálogo direto com os espectadores.
Uma equipe composta por artistas de diferentes áreas – entre eles a diretora musical Fernanda Maia, o fotógrafo André Dib e o dramaturgo Rafael Gomes – foi convidada para elaborar, junto com a atriz e o diretor, uma composição em mosaico. Nela, todos os elementos convergem para tocar os sentidos e a sensibilidade do espectador com a delicadeza necessária em tempos de cólera. Brandura que não redunda acrítica.
No solo estão retratadas questões na ordem do dia como as relações tóxicas conjugais e a exploração extrema no mundo corporativo. A atriz busca provocar ainda importante reflexão sobre o problema da representatividade. Ao trazer a história de uma mulher negra, assume não poder falar no lugar dela, e gentilmente pede licença para narrar com o devido distanciamento um depoimento julgado importante. Eu de você é poética criada na tensão entre identidade e alteridade – desde o título – e nesta cena faz reverberar o pensamento de que nem sempre é possível se colocar no lugar do outro – infelizmente há dores e tragédias pertencentes só a determinados grupos –, mas a indiferença não é a outra opção.
Se a arte não muda o mundo, pode mudar os seres e, estes, o modo como convivem – é a crença enfaticamente compartilhada ao longo da encenação. Em dado momento, a atriz se posta no centro do palco, abre os braços e afirma acreditar no poder do rito coletivo do teatro. Soa como confissão de fé, e pode ser. Mas é também, e principalmente, gesto instaurador do que se pretende; afinal é preciso prefigurar o futuro a ser construído, e só se pode fazê-lo com as pessoas do presente.
Para além da ética que perpassa o gesto criador e afeta a recepção, boa parte da fruição prazerosa propiciada pelo solo reside na expressividade da atriz. Formada na tradição do drama, que valoriza nas partituras vocal e textual a possibilidade de transmitir toda uma ampla gama de sentidos e emoções embutidos nas palavras, Denise Fraga é intérprete de muitos recursos. Parte deles, vale frisar, burilados na linguagem do humor.
Na comédia, o artista recebe o retorno imediato do público e aprende a valorizar esse vínculo, um jogo de ação e reação. A expertise alcançada na lida com essa espécie de fio de marionete ligando palco e plateia é elemento fundamental no trabalho e ganha o plano central quando Denise propõe silêncio coletivo ou ainda quando atua como regente dos espectadores e quebra o formato solitário ao contracenar com as instrumentistas que a acompanham. Um dinamismo que percorre esse elo todo o tempo e é fruto de quatro décadas de experiência.
.:. Participe do Encontro com Espectadores que no domingo, 24/11, às 14h, recebe Denise Fraga e Luiz Villaça para conversar acerca de Eu de você. No Itaú Cultural, entrada franca.
Serviço:
Onde: Teatro Vivo (Avenida Dr. Chucri Zaidan, 2.460, Morumbi, tel. 11 3279-1520 e 97420-1520)
Quando: Sexta, às 20h; sábado, às 21h; e domingo, às 19h. Até 15 de dezembro
Quanto: R$ 50 (sexta) e R$ 70 (sábado e domingo), ou meia-entrada
Duração: 80 minutos
Classificação indicativa: 12 anos
Gênero: comédia dramática
Bilheteria: de terça a domingo, a partir das 14h. Aceita todos os cartões de crédito e débito. Acessibilidade: 6 lugares para cadeirantes, 2 lugares para mobilidade restrita e 2 cadeiras para obesos. Estacionamento no local: R$ 20.
Vendas: www.sympla.com.br
Equipe de criação:
Idealização e criação: Denise Fraga, José Maria e Luiz Villaça
Com: Denise Fraga
Direção: Luiz Villaça
Produção: José Maria
Obra inspirada livremente nas narrativas de: Akio Alex Missaka, Anas Obaid, Barbara Heckler, Bruno Favaro Martins, Clarice F. Vasconcelos, Cristiane Aparecida dos Santos Ferreira, Deise de Assis, Denise Miranda, Eliana Cristina dos Santos, Enzo Rodrigues, Érico Medeiros Jacobina Aires, Fátima Jinnyat, Felipe Aquino, Fernanda Pittelkow, Francisco Thiago Cavalcanti, Gláucia Faria, José Luiz Tavares, Julio Hernandes, Karina Cárdenas, Liliana Patrícia Pataquiva Barriga, Luis Gustavo Rocha, Maira Paola de Salvo, Marcia Angela Faga, Marcia Yukie Ikemoto, Marlene Simões de Paula, Nanci Bonani, Nathália da Silva de Oliveira, Raquel Nogueira Paulino, Ruth Maria Ferreiro Botelho, Sonia Manski, Sylvie Mutiene Ngkang, Thereza Brown, Vinicius Gabriel Araújo Portela e Wagner Júnior
Dramaturgia: Cassia Conti, André Dib, Denise Fraga, Fernanda Maia, Luiz Villaça e Rafael Gomes
Texto final: Rafael Gomes, Denise Fraga e Luiz Villaça
Colaboração dramatúrgica: Geraldo Carneiro, Kenia Dias e José Maria
Colaboração artística (residência no RJ): Artur Luanda e André Curti
Direção musical: Fernanda Maia
Musicistas: Fernanda Maia, Clara Bastos e Priscila Brigante
Direção de imagens em vídeo: André Dib
Direção de movimento: Kenia Dias
Direção de arte: Simone Mina
Iluminação: Wagner Antônio
Programação de video mapping: Bruna Lessa
Design e operador de som: Carlos Henrique
Assistente e operador de luz e video mapping: Ricardo Barbosa
Assistente de direção de arte: Nika Santos
Assistente de cenografia: Vinicius Cardoso
Técnico de palco: Alexander Peixoto
Contrarregra: Cristiane Ferreira
Camareira: Maria da Guia
Costureira: Judite de Lima
Produção das imagens em vídeo: Café Royal
Produtora executiva: Adriana Tavares
Fotógrafo: Thiago “Beck” de Vicentiis
Primeiro assistente de câmera: Diego José Marinho
Som direto: Fernando Akira
Eletricista: Alberto Ferreira
Logger: Hugo Dourado
Administração financeira: Evandro Fernandes
Assistente administrativa: Cristiane Souza
Fotos para arte: Willy Biondani
Fotos de cena: Cacá Bernardes
Programação visual: Guime Davidson e Phillipe Marks
Redes sociais: Pedro Lins
Assessoria de imprensa: Morente Forte Comunicações
Roteiro de audiodescrição: Letícia Schwartz
Consultoria: Luís D. Medeiros
Intérprete em Libras: Ângela Russo
Parceria institucional: Theatro São Pedro
Coprodução: Café Royal
Produção: NIA Teatro
Patrocínio: BB Seguros e VIVO
Realização: Secretaria Especial da Cultura, Ministério da Cidadania e Governo Federal
Projeto realizado por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura
Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.