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Crítica

Recusa à invisibilidade

10.3.2020  |  por Beth Néspoli

Foto de capa: David Wohlschlag

Há três décadas, em uma entrevista, a atriz portuguesa Maria do Céu Guerra vaticinou que os festivais de teatro se tornariam cada vez mais importantes. Em síntese, o argumento é o de que um evento dessa natureza altera a fruição dos participantes, porque desloca foco da atenção do entretenimento e o lança sobre o fenômeno da criação artística. Idealizada pelo diretor Antônio Araújo e pelo produtor Guilherme Marques, a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) surge em 2014 com essa ambição. Com o intuito de produzir pensamento sobre as artes cênicas tendo como polo irradiador teatralidades de diferentes geografias, formas e temas, e as respectivas vinculações entre cena e territórios de origem tornaram-se também objeto de análises promovidas pelos organizadores.

O público, por sua vez, desde a mostra inaugural, brigou por ingressos, produziu longas filas e lotou as salas, adesão que nunca redundou em aporte financeiro proporcional e a MITsp vem enfrentando a tarefa de se sedimentar em meio às turbulências da política e da escassez de recursos. O problema se agrava no atual governo, mas sempre existiu, seja no setor público ou privado, e é obstáculo na trajetória de outros festivais.

Apesar da incompreensão sobre os ganhos materiais e imateriais do fazer artístico, a 7ª edição da MITsp mais uma vez ocupa importantes palcos da cidade com vasta programação apresentada entre os dias 5 e 15 de março. Palavras como diversidade e parceria que soavam um tanto protocolares nos discursos, desta vez tornaram-se evidência física na numerosa equipe chamada à frente da plateia na cerimônia de abertura no Auditório do Ibirapuera e também nos corpos da dupla de apresentadores – a atriz Renata Carvalho (O evangelho segundo Jesus, rainha do céu) e o ator Gabriel Lodi (Cabaret transperipatético).

Interessante notar que todos os elementos cênicos de ‘Multidão’, da franco-austríaca Gisèle Vienne, dos figurinos aos objetos, poderiam pertencer a jovens de qualquer espaço urbano do Planeta. Em ‘Tenha cuidado’, de Mallika, as cores, as texturas e os formatos das peças de roupa utilizadas em cena remetem à cultura indiana em sua singularidade. No entanto, a libido, definida como pulsão vital, também ocupa um lugar central, assim como o seu apagamento

Correndo paralelas nas primeiras edições, as diversas insurgências pretas e transgêneres conquistam participação concreta na 3ª edição da MITbr – Plataforma Brasil, segmento nacional criado para ser um facilitador da internacionalização dos espetáculos selecionados. E, pela primeira vez, produtores brasileiros se organizaram para criar um circuito batizado Faroffa, integrado por 40 espetáculos apresentados em 13 espaços da cidade que buscam difundir suas criações aproveitando a presença de 60 curadores estrangeiros atraídos ao Brasil pelo festival.

Multidão (Crowd), espetáculo de dança vindo da França abriu a 7ª edição e, no dia seguinte, o solo Tenha cuidado, da atriz indiana Mallika Taneja, era uma das cinco montagens apresentadas na reta inicial da programação.

Com concepção, coreografia e cenografia da franco-austríaca Gisèle Vienne e com 15 dançarinos em cena, Multidão retrata uma rave – festa com música eletrônica reproduzida em altíssima densidade sonora. Porém, enquanto a música mantém o batimento acelerado, os movimentos são ralentados ao extremo. Uma cartografia de afetos é traçada no deslocamento dos corpos e a lentidão, contraditoriamente, tem como efeito ressaltar a rapidez com que os vínculos entre os jovens dançantes se fazem e desfazem.

Estelle Hanania Enquanto a música mantém o batimento acelerado, os movimentos são ralentados ao extremo em ‘Multidão’, da franco-austríaca Gisèle Vienne, com 15 dançarinos

Na volumetria das formas em lenta deriva pelo palco, aqui e ali uma linha de fuga se abre e um corpo se destaca, isolado e imobilizado por um longo período. Como o apuro técnico não permite que o jogo entre imobilidade e movimento resulte em atonia, o corpo estático permanece expressivo. Assim, o espetáculo coloca em relevo a distinção entre velocidade e tempo: este último segue atuante mesmo se a primeira é paralisada.

O mosaico formado pelas imagens desenhadas ao longo da performance remete ao conceito de entropia, uma espécie de implosão de um sistema causada pelo excesso de energia que não gera trabalho. Na ligeireza das interações, a todo momento erotismo e violência ameaçam explodir, mas o que predomina é o represamento da libido – força vital e transformadora quando bem canalizada. Ao fim, tudo o que se produz é um rastro de lixo: objetos pessoais, garrafas e embalagens plásticas lançadas ao ambiente.

Multidão propõe uma interação quase sensorial e o que toca a sensibilidade é a sua formalização, tão minuciosamente elaborada que, num efeito reverso, pode provocar um sentimento de falta ou, ao menos, de desproporção no que diz respeito à potência da forma como disparadora de pensamento.

Interessante notar que todos os elementos cênicos de Multidão, dos figurinos aos objetos, poderiam pertencer a jovens de qualquer espaço urbano do Planeta – signo da globalização, processo que padroniza comportamentos em seu aspecto negativo, mas pode fortalecer redes em lutas contra autoritarismos. Em Tenha cuidado, o solo de Mallika, as cores, as texturas e os formatos das peças de roupa utilizadas em cena remetem à cultura indiana em sua singularidade. No entanto, a libido, definida como pulsão vital, também ocupa um lugar central, assim como o seu apagamento, neste caso devido ao machismo que ainda impregna as relações no seu país de origem.

Mallika surge nua, imóvel e silenciosa em cena. A ousadia do ato é de compreensão inescapável em se tratando de uma jovem indiana. Assim como no Brasil o aparato jurídico não é capaz de conter o crescimento do feminicídio, na Índia o número de mulheres que sofrem estupros, muitas vezes coletivos e em locais públicos, é maior do que os homens punidos por essa prática.

Ainda que a legislação tenha avançado nos últimos anos, em grande parte devido aos protestos de mulheres que conquistaram solidariedade internacional, os valores patriarcais seguem impregnados na sociabilidade indiana: meninas ainda se casam mal saem da infância e com maridos escolhidos pelos pais. Muitas vivem quase confinadas – como informa Mallika, proibidas de sair de casa sem estarem acompanhadas por um guardião, e devem evitar fazê-lo depois das 18h.

Sem dúvida abrir a cena com seu corpo nu é atitude afirmativa, porém o tom do solo será o da ironia, e não do desafio. Depois de algum tempo encarando o público, o corpo se move como se ela admirasse a si própria diante do espelho em autoenamoramento. E as primeiras palavras dizem respeito ao desejo de ser admirada e fazem lembrar os versos de Caetano Veloso: “Pois quando eu te vejo eu desejo seu desejo”. Fruir e despertar libido é pulsão vital para mulheres e homens, cis ou trans, de qualquer parte do mundo.

Tani Simberg A atuante Mallika Taneja vive e trabalha em Nova Deli, onde lida com questões de experiências de gênero da cidade, saúde mental e sexualidade

Mas o que fazer quando o outro se sente no direito de tomar posse do objeto de seu desejo – ou de exterminá-lo negando assim a atração? E, mais ainda, quando tal violência é legitimada socialmente? Tornar-se invisível. É sobre a crítica a essa diretriz que Mallika constrói a sua dramaturgia. Invisibilidade é palavra-chave nessa performance em que a atriz vai cobrindo o corpo com dezenas e dezenas de roupas coloridas para, contraditoriamente, passar despercebida.

Com boa dose de humor, o solo aborda a atitude de sujeição às regras do poder patriarcal pelo viés da força motriz da vida que se esvai com a repressão e, nesse ponto, a performance se abre a todos os corpos desejantes. Mais do que nas palavras, o núcleo sensível reside na subjetividade da atriz e no compartilhamento de sua conquista por autonomia em campo cultural adverso.

Diferentemente do que ocorre em Multidão, a precisão técnica não é o ponto forte do trabalho. Aqui e ali sente-se falta de algum ajuste, por exemplo nos tempos de duração das imagens que se desdobram na cena inicial ou no preparo da voz nos momentos de fala compulsiva. Porém, o que realmente importa é o contraponto entre o discurso de sujeição às regras defendido com ironia por Mallika e o seu ato pessoal de desnudamento em atitude manifesta de recusa à invisibilidade.

.:. Acompanhe a programação da MITsp

Estelle Hanania Na volumetria das formas em lenta deriva pelo palco da criação francesa, aqui e ali uma linha de fuga se abre e um corpo se destaca, isolado e imobilizado por um longo período

Multidão (Crowd)

Equipe de criação:

Concepção, coreografia e cenografia: Gisèle Vienne

Assistência: Anja Röttgerkamp e Nuria Guiu Sagarra

Designer de luz: Patrick Riou

Dramaturgia: Gisèle Vienne e Denis Cooper

Seleção musical: Underground Resistance, KTL, Vapour Space, DJ Rolando, Drexciya, The Martian, Choice, Jeff Mills, Peter Rehberg, Manuel Göttsching, Sun Electric e Global Communication

Edição e seleção de playlist: Peter Rehberg

Supervisor: Stephen O’Malley

Performers: Lucas Bassereau, Philip Berlin, Marine Chesnais, Sylvain Decloitre, Sophie Demeyer, Vincent Dupuy, Massimo Fusco, Rehin Hollant, Georges Labbat, Theo Livesey, Katia Petrowick, Linn Ragnarsson, Jonathan Schatz, Henrietta Wallberg e Tyra Wigg

Figurinos: Gisèle Vienne em colaboração com Camille Queval e os performers

Engenheiro de som: Mareike Trillhaas

Diretor técnico: Richard Pierre

Diretor de palco: Antoine Hordé

Operador de luz: Arnaud Lavisse

Agradecimentos: Louise Bentkowski, Dominique Brun, Patric Chiha, Zac Farley, Uta Gebert, Margret Sara Guðjónsdóttir, Isabelle Piechaczyk, Arco Renz, Jean-Paul Vienne e Dorothéa Vienne-Pollak

Produção e divulgação: Alma Office, Anne-Lise Gobin, Alix Sarrade, Camille Queval & Andrea Kerr

Administração: Etienne Hunsinger & Giovanna Rua

Produtor executivo: DACM

Coprodução: Nanterre-Amandiers, centre dramatique national/Maillon, Théâtre de Strasbourg – Scène européenne / Wiener Festwochen / manège, scène nationale – reims / Théâtre national de Bretagne / Centre Dramatique National Orléans/Loiret/Centre/La Filature, Scène nationale – Mulhouse / BIT Teatergarasjen, Bergen

Support: CCN2 – Centre Chorégraphique national de Grenoble / CND Centre national de la danse

A companhia Gisèle Vienne é apoiada pelo Ministério da Cultura e da Comunicação da França – Direção Regional de Assuntos Culturais Grande Leste, pela Região Grande Leste e pela cidade de Estrasburgo. Para turnês internacionais, o grupo tem apoio do Institut Français Paris. Gisèle Vienne é artista associada no Nanterre-Amandiers, centro dramático nacional, e no Théâtre National de Bretagne, dirigido por Arthur Nauzyciel

Tenha cuidado (Be careful)

Equipe de criação:

Concepção e performance: Mallika Taneja

Turnê e produção: Meghna Singh Bhadauria

Divulgação internacional: Judith Martin e Ligne Directe.

Peça criada no Tadpole Repertory em 2013 como parte de seu show NDLS

Jornalista, crítica e doutora em artes cênicas pela USP. Edita o site Teatrojornal - Leituras de Cena. Tem artigos publicados nas revistas Cult, Sala Preta e no livro O ato do espectador (Hucitec, 2017). Durante 15 anos, de 1995 a 2010, atuou como repórter e crítica no jornal O Estado de S.Paulo. Entre 2003 e 2008, foi comentarista de teatro na Rádio Eldorado. Realizou a cobertura de mostras nacionais e internacionais, como a Quadrienal de Praga: Espaço e Design Cênico (2007) e o Festival Internacional A. P. Tchéchov (Moscou, 2005). Foi jurada dos prêmios Governador do Estado de São Paulo, Shell, Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e Prêmio Itaú Cultural 30 anos.

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