Crítica
18.10.2020 | por Maria Eugênia de Menezes
Foto de capa: Aurora Cerello
É fácil entender o desejo da atriz Helena Cerello de transpor o romance O peso do pássaro morto para o teatro. Ainda que tenha sido escrito como um longo poema – ou um fluxo de consciência – o texto de Aline Bei carrega na oralidade, cabe na boca sem esforço e não pede alterações profundas para se converter na encenação que atualmente cumpre temporada virtual.
Na obra, dirigida por Nelson Baskerville, a protagonista conta a própria história, passando por episódios que a marcaram em algumas idades, entre os 8 e os 52 anos. Como tudo nos chega pelo olhar da narradora – só há apartes para brevíssimos diálogos – também parece natural o formato escolhido: um monólogo, em que todas as vozes, em todas as idades, serão responsabilidade de uma única intérprete.
Se a câmera dirige o foco do espectador, algo nessas cenas convida o olhar a vagar. Ou a mergulhar mais profundamente nas palavras que a atriz maneja com destreza. Responsável por todas as vozes – seja a da protagonista em diferentes idades, seja a de personagens secundários – Helena Cerello consegue entregar a cada uma delas uma tonalidade particular. Há uma bem construída distância, por exemplo, entre o desalento infantil e a decepção da maturidade
À facilidade de adaptar o texto, porém, interpôs-se uma dificuldade imprevista: a pandemia, que tornou impossível a apresentação em moldes tradicionais: com um palco e uma plateia. Iniciado antes do confinamento, o processo criativo precisou abraçar a limitação como elemento constitutivo e não como mero entrave. Mais do que conceber uma nova maneira de apresentar a obra, foi preciso antes encontrar uma forma outra de criação, em que os artistas, atriz e diretor trabalharam separados e tiveram que assumir novas funções. Além de atuar, Helena Cerello também opera a câmera. Juntou-se ainda à equipe Daniel Maia, que responde pela trilha sonora original e pela edição das imagens captadas.
Neste período de quarentena e confinamento, o uso de câmeras disseminou-se como principal estratégia para continuar a trazer a público títulos de caráter teatral. São trabalhos híbridos, dificilmente classificáveis em um único gênero artístico, como cinema, teatro ou televisão. No caso de O peso do pássaro morto, contudo, as imagens exibidas embaralham ainda mais essas fronteiras já tênues, uma vez que estamos lidando tanto com cenas transmitidas ao vivo como com tomadas pré-gravadas.
Como a intérprete é responsável por todas as filmagens – e suas consequentes questões técnicas, como iluminação, enquadramento etc – a estratégia de mesclar imagens captadas previamente com intervenções ao vivo parece abrir espaço para que sejam buriladas a contento as sutilezas da interpretação. Ao longo de uma hora, Helena percorre a personagem principal em suas várias idades, da infância à maturidade.
Durante a passagem inicial da peça, que lembra as reminiscências infantis e as evocações da natureza tão comuns na poesia de Manoel de Barros, conhecemos uma menina encantada pelo cheiro do mato, com medo de borboletas e sem referências para compreender a morte. Não por acaso, a perda de uma amiga, aos 8 anos, será o ponto de partida da narrativa para visitar outros lutos – tanto factuais quanto simbólicos. A morte, que paira primeiro como enigma, se tornará presença constante.
A adolescência se insinua como ponto de inflexão: aos 17, ela é uma menina sorridente a descobrir o prazer da dança, do beijo, do encontro. Mas um estupro reforçará a percepção de que o corpo é um invariável espaço de suplício. Sua mãe, para explicar-lhe o que significa a morte mostrou-lhe um pedaço de carne que fritava na panela: “O bife é morrer, porque morrer é não poder escolher o que farão com a sua carne.”
Carla, a amiga que morreu, foi estraçalhada por um cachorro. O estupro – além da sua dimensão mais evidente de negação da vontade e do livre-arbítrio – legou-lhe uma gravidez indesejada e mais uma vez retirou-lhe o domínio sobre o próprio corpo. Nascido, o filho permanece como incômodo, primeiro pela sua semelhança física com o pai violador e finalmente por um episódio – que não por acaso empresta nome à obra – em que ela descobre sua disposição de assassinar pássaros.
Diferentemente do que se viu ao longo da pandemia, em que muitos projetos foram transpostos do teatro para o audiovisual tal e qual se apresentariam em salas de espetáculo, O peso do pássaro morto surge com o novo suporte já introjetado como linguagem estruturante. Linguagem essa que é trabalhada de forma não homogênea, em situações mais e menos felizes.
Algumas das imagens veiculadas possuem caráter evidentemente ilustrativo, o que costuma torná-las algo redundantes ou inócuas. À menção de um menino jogando videogame, por exemplo, aparece na tela um menino jogando videogame. Outras passagens, contudo, mesmo que estejam claramente a materializar o que foi dito – como ocorre no momento em que se mostra um bife na frigideira – recebem um tratamento e um tempo de exposição que ajudam a descolá-las de uma função apenas utilitária.
Se a câmera dirige o foco do espectador, algo nessas cenas convida o olhar a vagar. Ou a mergulhar mais profundamente nas palavras que a atriz maneja com destreza. Responsável por todas as vozes – seja a da protagonista em diferentes idades, seja a de personagens secundários – Helena consegue entregar a cada uma delas uma tonalidade particular. Há uma bem construída distância, por exemplo, entre o desalento infantil e a decepção da maturidade. São muitos os estágios dessa trajetória de perdas e renúncias – o que exige não apenas técnica da intérprete, mas um entendimento profundo da personagem e de sua singular humanidade. Igualmente essenciais são as breves rupturas desse estado de solidão, instantes em que se vislumbra a possibilidade do afeto.
Nunca concretizada, a expectativa de uma conciliação com o filho é sobretudo um cansaço. Um mal-estar que poderá ser apaziguado no encontro com Vento, um cachorro. Aqui, uma vez mais, a encenação parece por demais óbvia: a cena do encontro entre a protagonista e o cão repete com imagens o que o texto já traz muito claramente, sem nada acrescentar-lhe. Limitações que talvez não provenham propriamente do suporte audiovisual, e sim das condições especiais em que a obra foi gestada, com seus criadores apartados e sem suficiente aparato técnico.
Esses senões, contudo, não interrompem a cadência do “espetáculo” (se assim puder ser chamado um trabalho dessa natureza). E pode-se dizer que a edição resolve suficientemente as dificuldades da captação de imagens. A mulher, de quem nunca chegamos a conhecer o nome, viveu anos anestesiada pelo próprio silêncio, sem nunca chegar a relatar a ninguém o que lhe aconteceu. Seu segredo passa a funcionar como uma bolha que a aparta do mundo e dos outros. O encontro com um animal, nesse contexto, talvez seja a única chance de ser aceita e amada – sem ter que omitir a verdade e sem correr o risco de ser julgada.
Lembrando que havia sido justamente um cachorro o seu primeiro algoz – ao subtrair-lhe a amiga de infância –, imagina-se que um acerto de contas com o passado se encaminha. Mas a personagem nunca chegará a assenhorar-se da própria narrativa. Atropelado, Vento transforma-se em mais um corpo supliciado: imagem sangrenta que sepultará qualquer expectativa de redenção.
Serviço:
O peso do pássaro morto
Onde: Plataforma Sympla
Quando: Sábados e domingos, às 16h. Até 1º de novembro
Quanto: R$ 20
Duração: 75 minutos
Classificação indicativa: 16 anos
Equipe de criação:
Autora: Aline Bei
Idealização e atuação: Helena Cerello
Direção: Nelson Baskerville
Adaptação dramatúrgica: Cristiana Britto, Helena Cerello e Nelson Baskerville
Música original e edição de cenas: Daniel Maia
Figurino: Claudia Schapira
Assessoria de ilusionismo: Henry Vargas e Klauss Durães
Participações
especiais: Aline Bei e Aurora Cerello
Participações caninas:
Caramelo, Borges
Assessoria de
imprensa: Fernanda Teixeira – Arteplural
Assessoria em mídias
sociais: Jessica Rodrigues
Assistência de
divulgação: Kevin Telolli
Captação de imagens: Helena Cerello
Obra imagem do cartaz: Victor Grizzo
Assistência de produção: Janayna Oliveira
Coordenação de produção: Raul Barretto e Helena Cerello
Realização: Cia. VA DA BORDO (do italiano, “volte a bordo”)
Crítica teatral, formada em jornalismo pela USP, com especialização em crítica literária e literatura comparada pela mesma universidade. É colaboradora de O Estado de S.Paulo, jornal onde trabalhou como repórter e editora, entre 2010 e 2016. Escreveu para Folha de S.Paulo entre 2007 e 2010. Foi curadora de programas, como o Circuito Cultural Paulista, e jurada dos prêmios Bravo! de Cultura, APCA e Governador do Estado. Autora da pesquisa “Breve Mapa do Teatro Brasileiro” e de capítulos de livros, como Jogo de corpo.