Crítica
Uma das primeiras experiências presenciais no país após sete meses de recolhimento da produção teatral, Protocolo Volpone, um clássico em tempos pandêmicos tem na sua proximidade física distanciada a melhor tradução para o gesto da Companhia Bendita Trupe de dotar a farsa do início do século XVII de efeitos imunizantes ante a funesta realidade da qual o trabalho emerge. A supervalorização mórbida de si, pelo agiota endinheirado do título, imprimiu tons mais tétricos à comédia ao refletir o estado de morte à brasileira nas falhas governamentais no enfrentamento ao novo coronavírus.
Aquilo que se depreendia da matéria dramatúrgica, uma vez que o inglês Ben Jonson escreveu sua peça no âmbito da peste bubônica, doença infectocontagiosa que provocou grande mortandade, ganhou clima de corredor de hospital de campanha no uso de expedientes da instalação. Volpone e seu criado, Mosca, recorrem a uma maca para aplicar os simulacros do leito de morte à nata da sociedade que tenta se encaixar no testamento do presumido moribundo. É em torno dela que giram as ações na quadra delimitada cenograficamente por 20 cabines individuais, plastificadas e transparentes, nas quais o público senta e contempla, sentindo o vento em suas costas (recomenda-se ir agasalhado).
Das formalidades sanitárias na entrada do equipamento cultural (medição de temperatura, álcool em gel) à intervenção direta na cena (atores e contrarregras usam máscaras devidamente adereçadas, objetos são duplicados no trânsito de uma mão à outra), as soluções denotam que a idealizadora e diretora Johana Albuquerque e equipe subverteram o atual estágio da pandemia como se esta fosse um dispositivo em si que permitisse acionar a possibilidade de convívio
A área do estacionamento do Teatro Arthur Azevedo, no bairro da Mooca, fica ao ar livre. Parte dela é coberta. Tanto na chegada como na saída, a visão conjunta é de um território em suspensão, em isolamento. A rigor, desde o primeiro contato com a produção, ao reservar a vaga pelo perfil da companhia no Instagram, cada pessoa está ciente de que participará de uma experiência-limite. Guardadas as proporções e contextos, da mesma forma como quem embarcou em ônibus com os vidros vedados para assistir a Viagem ao centro da terra (1992) em um trecho de túnel cujas obras estavam abandonadas, sob o rio Pinheiros, na criação da Kompanhia do Centro da Terra, ou paramentou-se com roupas, luvas, meias e máscara protetoras para espreitar os últimos minutos de um sujeito que dedicou toda a sua vida à carreira científica em Cosmogonia – Experimento número 1 (2005), que a Companhia de Teatro Os Satyros concebeu a partir do poema Teogonia, de Hesíodo.
Nos exemplos citados, como na montagem em análise, o acordo implícito lembra o cumprimento de etapas como um convite a seguir o programa de uma performance. A começar pela saída de casa. Pensemos em quem botou máscara e se deslocou por meio de transporte público em um sábado à noite a fim de acompanhar o ensaio aberto da montagem que entrou em cartaz na semana seguinte.
Das formalidades sanitárias na entrada do equipamento cultural (medição de temperatura, álcool em gel) à intervenção direta na cena (atores e contrarregras usam máscaras devidamente adereçadas, objetos são duplicados no trânsito de uma mão à outra), as soluções denotam que a idealizadora e diretora Johana Albuquerque e equipe subverteram o atual estágio da pandemia como se esta fosse um dispositivo em si que permitisse acionar a possibilidade de convívio.
Ao público, os procedimentos estéticos são brechtianamente expostos, como os fios da marionete, de maneira que se incentiva a conjugar razão e sensibilidade como passes de embarque no jogo de imaginação proposto pelos dez atores e outros 20 e tantos criadores envolvidos nas demais funções. Alguns deles assumem ainda a figura de “anjo protetor”, assim chamado, feito um time de enfermeiros em suas vestimentas brancas e empenhados na contrarregragem. Ou seja, há mais gente colaborando com a cena do que contemplando-a ativamente.
Mediada pela versão do austríaco Stefan Zweig (1881-1942), cometida mais de três séculos depois, em 1925, e, na montagem da Bendita, pela adaptação de Marcos Daud, a dramaturgia apropriada do texto de Ben Jonson (1572-1637) preserva a sátira deste e a demão crítica de Zweig (ele reescreveu e não simplesmente adaptou a peça, avalia o crítico Décio de Almeida Prado). A ganância e a corrupção universais tornam a identificação com a trama elementar em nossa contemporaneidade. Sabemos que a comicidade em Jonson é mais adensada se comparada àquela de seu contemporâneo Shakespeare. O conflito de classes em A comédia dos erros, por exemplo, dá margem para o humor físico na confusão armada pelos criados gêmeos. Na escrita de Jonson, a travessia se mostra mais incisiva, no plano das ideias, ao entrelaçar o riso e o siso. Não à toa, ele via na função do poeta cômico potencialidades para “imitar a justiça e instruir para a vida”.
As precarizações e rearranjos demandados deste Protocolo Volpone em plena fase verde das regras de saúde pública no Estado talvez imprimam mais sobriedade à recepção. Como se um olhar analítico tomasse a dianteira no acompanhamento das artimanhas de Maurício de Barros, intérprete de Mosca, e de Daniel Alvim, como Volpone. Afinal, a virulência se insinua sorrateira nessa obra de inspiração engenhosa. Difícil não se deixar afetar, independentemente das circunstâncias.
É surpreendente o efeito cascata das desilusões. A comorbidade de falhas de caráter expostas uma a uma na bajulação de membros da aristocracia ou de falsos aristocratas que vendem a alma ao diabo no afã de figurar como herdeiro do homem especializado na arrecadação de riquezas. Ele não teria descendentes, ascendentes ou cônjuge, daí o apetite da fauna composta de homens e mulheres que atendem por nomes de animais, em italiano, como raposa, abutre e corvo. Batismos elucidativos de suas garras para conspirar contra o dissimulado paciente. Mal sabem que serão respondidos com as mesmas moedas e violência.
O ambiente de tribunal conformado na segunda metade assevera a postura nefasta de quem entregou ouro ou até prostituiu a mulher para lucrar com a morte do sujeito que, imaginavam, agonizava à beira da morte. O próprio sistema de justiça se revelará putrefato, equilibrando os malfeitos. Humilhação e expiação são incompatíveis na corrida desses personagens obcecados. O destino do servo e do patrão é representativo da falsa moralidade que vicejava no teatro elizabetano. Na Renascença, essa arte se dava como uma instituição na vida da cidade, no caso, Londres. Na São Paulo de 2020, o fôlego da Companhia Bendita Trupe sugere, talvez involuntariamente, uma crônica do nosso tempo, com todos os seus perigos.
A sessão de pré-estreia expôs a necessidade de ajustes, como na condução da espacialidade. Apesar de ocupar espaço aberto, a criação ainda não dava conta da dinâmica relacional aparentada do teatro de rua levado a praças, parques e afins. A conversão da maca em uma carroça é tributária desse espírito, da Commedia dell’Arte. A posição estática do leito do protagonista durante passagens decisivas do enredo prejudicava a visão de quem estava posicionado na cabine atrás dele. Apresentações subsequentes podem propiciar ajustes nessa dinâmica. Por outro lado, a arquitetura desenhada é inclusiva: cada espectador percebe a movimentação ao seu redor para que se dê a construção do ato vivo, sincronizando cena, plateia e bastidores. Respira-se o mesmo ar no território da ficção, em que pesem os cuidados.
De volta ao começo, logo na chegada, no caminho até o estacionamento, atuantes e “anjos” surgem entranhados nas árvores do jardim do Teatro Arthur Azevedo. Essa paisagem dúbia da natureza humana firma a premissa de que a experiência comungada na noite fugirá às convenções da própria expressividade que o mundo da artes cênicas enunciava até março passado.
O empenho incomum para compartilhar Protocolo Volpone é coerente com o histórico da companhia que completa duas décadas de atividades. Lembramos de dois espetáculos que escancaravam problemas endêmicos da realidade brasileira, como a tragicômica Era Collor abordada em Os collegas (2003) ou o poder paralelo das forças de segurança e do crime nos centros urbanos, em Miserê bandalha (2006).
A obra da vez pode ser vista como uma tentativa técnica estrutural de plasmar poética em condições adversas inimagináveis, o que se alcança, em certa medida, pela reunião de pessoas acostumadas ao risco em todas as etapas. Como se esse coletivo concordasse com Oduvaldo Vianna Filho e seu amor incondicional ao teatro, quando o dramaturgo militante escreveu que, “na verdade, cada vez que um pano de boca se abre neste país, cada vez que um refletor se acende, soam trombetas no céu – trata-se de uma vitória da cultura, qualquer que seja o espetáculo”. Uma citação do artigo Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém, publicado em 1968 na Revista Civilização Brasileira, sob ditadura, sob censura, sob exceção.
Serviço:
Protocolo Volpone, um clássico em tempos pandêmicos
Onde: Teatro Arthur Azevedo (Avenida Paes de Barros, 955, Mooca, tel. 11 2604-5558)
Quando: quarta a sábado, às 20h, e domingo, às 18h. Até 8/11
Quanto: contribuição voluntária (de entrada grátis a R$ 20). Os ingressos são liberados na véspera da apresentação, sempre às 11h, por meio do perfil da Companhia Bendita Trupe no Instagram, https://linktr.ee/protocolovolpone. Um ingresso por pessoa. 20 lugares
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: 110 minutos
Ficha técnica:
Texto: Ben Jonson, na versão de Stefan Zweig
Adaptação: Marcos Daud
Idealização e direção: Johana Albuquerque
Assistência de direção: Cacá Toledo
Com: Daniel Alvim (Volpone), Helena Ranaldi (Canina), Joca Andreazza (Corvino), Luciano Gatti (Leone), Marcelo Villas Boas (Juiz), Maurício de Barros (Mosca), Pedro Birenbaum (Inspetor e Músico em cena), Vanderlei Bernardino (Voltore), Sérgio Pardal (Corbaccio) e Vera Bonilha (Colomba).
Cenografia e adereços: Julio Dojcsar
Desenho de luz: Aline Santini
Figurinos: Silvana Marcondes
Direção musical, músicas originais e produção de som: Pedro Birenbaum
Visagismo: Leopoldo Pacheco
Colaboração nos desenhos de cena: Kenia Dias
Preparação corporal kempô: Ciro Godoy
Pesquisa acervo de Brecht: Christine Röhrig
Letra da música Oh Veneza, cidade dos sonhos: Bertolt Brecht
Sonorização: Kako Guirado
Operação de som: Anderson Moura
Microfonista: Matheus Santos
Assistente de luz e operação: Pajeú Oliveira
Costura: Bene Calistro, Marcelo Leão e Julmira Mendes
Maquiagem atores para fotos do programa: Jéss Inamura
Cenotécnico: Zito
Design gráfico: Helena de Barros
Mídias sociais do espetáculo: Platea
Mídias sociais da Bendita Trupe: JustWebSites
Assessoria de imprensa: Pombo Correio
Fotos do espetáculo e do programa: Maria Clara Diniz
Fotos de ensaios: Marcelo Villas Boas
Vídeo de registro do espetáculo e teasers: Kim Leekyung e Marcelo Villas Boas
Edição de vídeo de ensaios abertos: Lucca Savio
Edição de vídeo de leitura: Luciano Gatti
Contabilidade: RC Master
Produção-executiva: Marcelo Leão
Produção e administração: Anayan Moretto
Coordenação-geral: Johana Albuquerque
Realização: Companhia Bendita Trupe
Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.