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Crítica

O evangelho das libertárias

29.3.2021  |  por Valmir Santos

Foto de capa: Captura de tela

Mulheres acostumadas a singrar a pista e os espaços subterrâneos e aéreos do Teatro Oficina, bem como ruínas do terreiro vizinho e ruas do entorno, derrubam a geopolítica dos quadradinhos de um aplicativo universal de videochamadas, suspendem o tempo isolacionista, dão uma banana para a demagógica ideologia de gênero e como que “teletransportam” amantes da presença cênica para a vida pré-pandemia no experimento em formato digital Das paredes, combinação de live e conteúdos gravados.

Se a bigorna é o símbolo adotado pelo Oficina em 62 anos de história, o tijolo serve de alegoria para o texto da atriz e diretora Letícia Coura. Ela, que também é cantora e compositora, bebe da filosofia e do absurdo para criticar o emparedamento da liberdade e da potência de desenvolvimento da mulher em sociedades que naturalizam a desigualdade de gênero. Em seus acenos aos feminismos, porém, a criação exercita a velha e boa dialética ao expor, também, a cooptação pelo discurso machista. A consciência sobre isso é que são elas.

Aliás, o muro do patriarcado é tão arcaico que chega a ser aludido à Muralha da China, construída entre os séculos 11 e 13.

Há um espírito libertário nessa empreitada que pode ser atribuído, em parte, ao vínculo das atuantes com o diretor José Celso Martinez Corrêa. A começar por Letícia, que desde 2001 trilha com autonomia e coerência nas criações do Oficina, plataforma onde jamais deixou de realimentar seu talento para a performatividade segundo a maravilhosa contribuição de todas as promiscuidades em arte

Corajosas, enfurecidas e bem-humoradas, cinco artistas alicerçam música e atuação para fazer de uma parede a personagem central em que estão entranhadas quatro “tijolAs”, cantoras/atrizes/instrumentistas determinadas a contar e a refletir sobre si e as demais pessoas do mesmo gênero acerca das circunstâncias do que as aprisionam nos diferentes campos da vida. .

Soa prosaico, mas é sofisticado. Uma vez circunscrito esse lugar concreto, essas figuras vão desconstruí-lo com arsenal poético de textos, canções e imagens que põem em relevo o sentido crítico dos tempos em mutação.

Nos marcos tecnológicos que temos para hoje, a obra parte dessa situação inusitada para alcançar ressonâncias operísticas, sincopadas, sinfônicas, sambistas, choronas e que tais.

Chiris Gomes, Nana Carneiro da Cunha, Tetê Purezempla, Maria Bitarello e Letícia derrubam qualquer suspeição de implausibilidade de se transcender a virtualidade. Dignificam vozes, corpos e pensamentos musicais e desejantes que reafirmam a condição de artistas maiúsculas. O quinteto expressa visões questionadoras sem fugir do contraditório em termos racionais e absurdos. Acredita incondicionalmente na sensibilidade das pessoas a que se dirige.

Captura da tela Equipe criativa de ‘Das paredes’, experimento digital escrito e dirigido por Letícia Coura, desdobramento da montagem teatral prospectada antes da pandemia

Há um espírito libertário nessa empreitada que pode ser atribuído, em parte, ao vínculo das atuantes com o diretor José Celso Martinez Corrêa. A começar por Letícia, que desde 2001 trilha com autonomia e coerência nas criações do Oficina, plataforma onde jamais deixou de realimentar seu talento para a performatividade segundo a maravilhosa contribuição de todas as promiscuidades em arte.

A dimensão ética é iluminada com franqueza. O tom varia do confessional à galhofa, passando pela psicodelia, pela revista e pelo cabaré à Brecht. As mudanças de clima são protagonizadas por solos, duetos e coros em meio às intervenções de uma mulher ou outra que expõem suas inquietudes.

“De quem é a vida de uma voz?”, indaga uma das TijolAs, prenunciando formas de encarar o vazio e a finitude. “Então, era assim que eu era?”, diz outra delas, indicando a mudança de chave. Não se trata de prejulgar, mas exercer a impermanência do budismo, algo na linha do dilatar e do agir. Tanto que procedimentos desse sistema filosófico-religioso aparece na abertura e no desfecho do experimento. “Você já se olhou no espelho para saber se você é mesmo um tijolo?”, ouve-se do outro lado da tela.

Deu um modo geral, Das paredes toca em diferentes expressões para colocar a linguagem na berlinda. Os vídeos que pontuam a narrativa lembram os videoclipes de outrora, hipercoloridos, independente dos arranjos e das letras das canções, sempre sugestivos. No plano da palavra, é lembrado que, em francês, o gênero de tijolo é feminino (brique) e, nas línguas do tronco tupi, não se aplicam os verbos “ser” e “estar”. Tudo se transforma.

Nesse balaio cênico-sonoro, o espírito convivial manifesta-se por outras ondas que essa equipe formada exclusivamente por mulheres consegue erguer e, no mínimo, encontrar equivalências com aquele desejo de desaguar a pesquisa em espetáculo ao vivo, como sonhado antes do mundo virar do avesso.

Serviço:

Quando: últimas exibições segunda (29) e terça (30), às 20h

Onde: plataforma Sympla

Quanto: grátis

Mais informações no Instagram e no Facebook do espetáculo

Captura da tela Registro do processo de criação de ‘Das paredes’

Equipe de criação:

Música e atuação: Chiris Gomes, Letícia Coura, Nana Carneiro da Cunha, Tetê Purezempla e Maria Bitarello

Produção musical: Tetê Purezempla

Direção de arte: Cris Cortilio

Figurino e adereços: Gabriela Campos

Iluminação: Lúcia Galvão

Vídeo arte e design gráfico: Cecília Lucchesi

Produção gráfica: Brenda Amaral e Cecília Lucchesi

Comunicação: Brenda Amaral e Maria Bitarello

Produção: Bia Fonseca

Texto e direção: Letícia Coura

Jornalista e crítico fundador do site Teatrojornal – Leituras de Cena, que edita desde 2010. Escreveu em publicações como Folha de S.Paulo, Valor Econômico, Bravo! e O Diário, de Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. Autor de livros ou capítulos afeitos ao campo, além de colaborador em curadorias ou consultorias para mostras, festivais ou enciclopédias. Cursa doutorado em artes cênicas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde fez mestrado na mesma área.

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